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É bicampeão europeu de futsal e campeão do Mundo da modalidade. Sente que é um treinador especial ou teme que a glória possa mudar a sua maneira de ser?
Não, é impossível mudar a minha forma de ser. Pelo menos esses traços de personalidade transmontana, como eu costumo dizer. Recordo sempre um familiar muito especial, o meu sogro, que numa determinada altura me disse: "Agora que vais assumir a seleção, tens que te pôr fino". Depois, dei por mim a pensar que não. Tenho de continuar a ser exatamente o mesmo. Ser como sou é que me trouxe até aqui. Só porque assumo estas funções não vou mudar, tenho de continuar a ser o mesmo.
Essas raízes que transporta contribuem para o modo como gere a equipa?
Sim, um bocadinho. Essa simplicidade e humildade das pessoas com quem cresci na aldeia, o nunca esquecer as raízes, as origens, falamos sempre muito nisso. As famílias de cada um, de onde chegam, lembrar o passado. Se não conhecermos e não respeitarmos o passado, é muito difícil compreender o presente.
Fugiu um pouco à primeira pergunta: sente que é um treinador especial por aquilo que conquistou?
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Sinto-me o Braz, sinto-me extremamente orgulhoso de não me desviar do que acredito, de me manter sempre eu. Sinto, claro, o orgulho de ter influenciado e ajudado muitas pessoas, jogadores e treinadores, a serem melhores. Não só desportistas, mas também a ser melhores pessoas. Se tive essa influência e continuo a ter essa influência, é a melhor medalha que podemos ter na nossa função.
Sentiu a mensagem do presidente da República dizendo que o país se pode inspirar na seleção como um orgulho ou uma responsabilidade acrescida?
Senti muito orgulho de olhar para a equipa, essencialmente olhar para os nossos comportamentos e perceber que foram inspiradores para muita gente. Ou pelo menos que as pessoas se reveem nas boas práticas, nas boas atitudes e nos bons valores. Eu sempre disse que, para vencermos, para acrescentarmos algo mais, há valores e princípios que temos de respeitar.
Essa mensagem é válida para todos os setores da sociedade?
Acho que para todos. Respeitar muito a atividade em que estamos, no nosso caso respeitar muito o adversário, respeitar muito o futsal e ser correto. Eles sabem e eu digo sempre: se forem boas pessoas na vossa atividade diária, é impossível não serem felizes. Estamos numa atividade competitiva, somos felizes quando vencemos, acredito que vamos estar mais perto de vencer com esses comportamentos extremamente positivos, corretos.
Previu que Portugal ia ser campeão do Mundo numa conversa com amigos, logo após a conquista do primeiro Europeu. Disse até que o jogo das meias-finais seria o mais difícil. De onde vem essa confiança e análises que depois se revelam certeiras?
Experiências passadas. Essa conversa foi o óbvio para mim: os quartos de final são o fio onde ficamos ou não até ao fim da competição. Portugal nunca tinha passado das meias num Mundial, por isso supostamente iria ser o jogo mais difícil da minha vida. O objetivo era levar Portugal à final.
Era uma barreira psicológica?
Era. Dizemos que queremos sempre mais, o mais nesse Mundial era estar na final. Por isso, para mim, era muito claro que o jogo da meia-final seria o mais difícil da minha vida. Mas passando o que era muito difícil, não podíamos a seguir ficar pelo segundo lugar. A minha convicção era vencer a final. Acreditava muito. Na altura disse: quando chegar o momento, temos de estar à altura do desafio. Competência temos, é preciso ir buscar algo mais nessa fase, aí é uma questão de confiar totalmente.
Que mensagens procura transmitir nas palestras que antecedem os jogos?
Depende muito do momento que estamos a viver. Foi pública a mensagem antes da final, era mesmo muito difícil falar com eles porque não tinha nada para dizer. Senti-me emocionado, não me controlei muito porque o comportamento foi tão positivo, fomos tão felizes aquele mês todos juntos, que era impossível aquele dia não terminar bem.
O facto de não dispensar um psicólogo faz parte dessa estratégia que valoriza a vertente emocional e mental?
Sim, o Jorge (Silvério) está a trabalhar connosco já há alguns anos, é mais uma pessoa extremamente importante na avaliação, na gestão diária, no perceber em que contexto emocional estamos a viver no dia a dia. Para além do Jorge, valorizo muito esse lado humano em todo o staff que trabalha comigo.
Foi uma vitória muito mental, nomeadamente nas reviravoltas?
Foi. É esse bocadinho a mais que eles conseguem ir buscar. No fundo, passar os limites. Todos tiveram algo mais, todos surpreenderam, aí é muito uma questão mental. Mas, acima de tudo, com competência associada, caso contrário não chegamos àquele patamar.
Temeu em algum momento que com o fim da carreira de Ricardinho os títulos deixassem de vir para Portugal?
Sabemos quem é o Ricardo, o que representa para o futsal português e mundial. Teria sempre um impacto enorme. Mas, para nós, sempre foi muito claro que teríamos de continuar e isso já vinha sendo preparado há muito tempo. A sucessão do Ricardo ou a continuação do sucesso não pode ser geracional. Somos um país que adora ter a bola nos pés, temos gente muito talentosa. Temos de os qualificar e proporcionar oportunidades para terem sucesso. Toda a estrutura está a crescer e a qualificar-se. Seria difícil a transição no Europeu sem Ricardinho, mas na altura pensei: são estes os 14 jogadores que tenho. Temos de continuar a jogar como até aqui, como no último Mundial. Aliás, teríamos de acrescentar, se fizermos o mesmo não chega. Saí mesmo de alma cheia deste Europeu.
Nasceu no Canadá mais aos oito anos foi viver para Trás-os-Montes, após o falecimento do seu pai, num acidente de trabalho. Até que ponto estes dois acontecimentos marcaram a sua vida?
Era muito jovem. Passei de uma escola primária com quatro campos relvados para uma aldeia... Mas não senti muito, fui sempre muito feliz na aldeia. Fui feliz na escola primária, fui feliz quando fui para Vilarandelo e depois para Valpaços estudar. Fui muito feliz quando fui para Chaves tentar jogar futebol a um nível de maior exigência e quando segui a opção de Desporto na escola secundária.
Já tem usado a expressão de que vem "de lá de trás das pedras". O que quer dizer com isso? Traduz o esforço acrescido para chegar a outros locais?
Traduz duas ideias essenciais: o orgulho de ser de detrás das pedras e que as pedras não são limitativas de nada.
Não há dificuldades acrescidas para quem cresce no interior?
Se a dificuldade é maior, é uma questão de nos esforçarmos mais. Na aldeia, diziam que tinha um pouco de jeito para guarda-redes e eu pensei: qual é o melhor clube? É o Chaves, por isso é lá que quero tentar. Qual é a melhor faculdade, na altura, de Desporto? É a FADEUF, no Porto. Então é para essa que quero concorrer. Os pré-requisitos são mais difíceis? Então tenho de treinar mais. Não tenho pavilhões de ginástica? Então tenho de arranjar outra solução. Há que olhar muito para as soluções. Tenho um orgulho enorme de ser de detrás das pedras e digo a todos os jovens que essas pedras não podem ser impeditivas. Não temos de ser nós a ter o discurso da interioridade, da distância, o nosso país é tão pequeno.
O discurso da interioridade puxa para baixo?
Um bocadinho. Acho que realça limitações em vez de procurar soluções. Se queria tentar e sempre tentei com o esforço da minha mãe, sozinha, com dois filhos...... Olho para este percurso e digo: não me posso queixar de nada. Fui sempre feliz nas várias etapas, esforcei-me e por isso tenho a ideia muito clara de que, se tens um compromisso, deves dedicar-te de corpo e alma.
Acredita que a regionalização poderia ser positiva para o país?
Acho que muitas vezes não se percebe quem está atrás das pedras. Dá muita tristeza chegar à aldeia e ver o que está a acontecer. As escolas primárias e os campos pelados, que todas as aldeias têm, encontram-se abandonados. A minha aldeia tem um aluno que está no primeiro ciclo. A interioridade não pode ser desculpa, há que encontrar soluções. Mas não me agrada, todos devemos ter as mesmas oportunidades.
Acha que a visibilidade pública que tem pode levar a alguma aspiração política?
Muito difícil.
Porquê? Não é fazer tudo bem também na política?
É, e temos essa responsabilidade. Acho que, no nosso país, poderíamos ter muito cuidado nas lideranças. Já perceberam que eu acredito muito em liderar pelo exemplo. É muito fácil definir objetivos e metas, o problema é lembrarmo-nos todos os dias da meta que definimos. E aí é que eu vejo muita malta a esquecer-se.
Vê essa falta de exemplos positivos nas nossas lideranças políticas?
Temos vários exemplos, ou vários casos mediáticos que não são muito positivos.
Sente que seria hoje um homem mais rico se tivesse feito carreira como treinador de futebol?
Não. Nós temos esta paixão pelo futebol e o futebol tem uma história, uma cultura que o futsal não tem e, às vezes, andamos aqui com estas comparações: é comparar o incomparável.
E se lhe aparecesse agora uma oportunidade?
Ah, é diferente. A especificidade é diferente. Do ponto de vista de liderar um grupo, OK, mas é diferente. São plantéis muito maiores.
Gostaria que o envolvimento dos portugueses e o reconhecimento das vitórias fosse maior?
O reconhecimento social já é enorme. Nós, às vezes, invertemos isto. "Ah, os portugueses deviam apoiar mais, é só futebol". E o nosso papel? E reverem-se nos nossos comportamentos? Valorizarmos a nossa atividade? Ser correto com o futsal, ser correto com o jogo. Nós, às vezes, esquecemos isso, mas depois queremos que toda a gente nos apoie. Às vezes, os portugueses têm muito o hábito: que álibi vou arranjar porque aqui não consegui superar? Foi o árbitro. O árbitro? As coisas dependem muito de nós.
Isso é mesmo uma visão muito purista.
Não é purista, é o que sinto. A mim custa-me muito ver comportamentos negativos com o jogo, agressões. Eu já disse isto, na final do Mundial foi decisivo o comportamento inadequado daquele jogador da Argentina. Se ele é correto com o jogo, para nós ainda tinha sido mais difícil vencer. Criou-nos ali uma oportunidade. E só quando há situações destas é que muitas vezes jogadores, dirigentes, treinadores percebem.
Falou do reconhecimento social. Tem havido também reconhecimento salarial dos jogadores?
Tem melhorado. A Liga Placard está com um nível competitivo considerável. Agora, falta muito a valorização do que é nosso. Temos uma série de jogadores internacionais de seleções em vários clubes da Liga Placard, o que há uns anos era impensável. Ter internacionais do Brasil, da Rússia, de Itália, e não só no Sporting e Benfica, mas no Fundão, no Braga, no Modicus, no Quinta dos Lombos, no Elétrico, no Portimonense, isto era impensável e neste momento temos. Agora, temos que fazer o nosso caminho para que valorizem cada vez mais quem está envolvido no futsal e merece. Acho que é óbvio, se são os melhores do Mundo e os melhores da Europa...
Têm que ser remunerados como tal?
Têm que ser mais valorizados na atividade deles.
Falou esta semana na importância de um clube como o F. C. Porto vir a investir no futsal. Há algum contacto nesse sentido?
Não. Mas estamos numa fase de desenvolvimento, já estamos num patamar de sustentabilidade e de estrutura muito boa. E isso é que nos permitiu também ter estes sucessos. Referi isso esta semana, mas não tenho dúvidas de que mais importante ainda são aqueles clubes que ninguém conhece e que têm cento e tal miúdos a praticar, devidamente enquadrados, devidamente estruturados, em clubes com qualidade. O que se passa na base da pirâmide é muito mais importante do que alguns projetos de elite que poderiam surgir.
O futsal vive da territorialização?
Sim. O mapeamento do país em termos de equipas da primeira divisão é muito interessante. O futsal nisso é um bom exemplo. Temos Fundão, Viseu, Portimão. No futsal, devido a algumas estratégias de desenvolvimento, houve esse cuidado de dar oportunidades ao Interior.