Roberto Martínez e a arte de contar as palavras e dominar os gestos de um cruyffista

O autor da biografia de Roberto Martínez publicada na Bélgica fala do novo selecionador português como um "comunicador nato". A relação com Ronaldo pode ser a primeira grande prova, mas Martínez sempre se mostrou leal aos jogadores em quem confia.

Roberto Martínez mostra um sorriso enquanto escuta cada pergunta. Parece gostar que o coloquem à prova, mas dificilmente deixa escapar algum pormenor que o comprometa. A imagem que deixou na conferência de apresentação como novo selecionador português confunde-se com a marca que deixou no longo período como selecionador belga.

O jornalista belga Benoit Delhauteur descreve Roberto Martínez como um líder que que confia nos jogadores, e que vai com eles até ao fim, mesmo contra opiniões contrárias - em especial da imprensa. Delhauteur escreveu "Roberto Martínez - Portrait et confessions d'un entraîneur d'exception" (Roberto Martínez - Retrato e confissões de um treinador de exceção), um livro publicado na Bélgica antes da participação da seleção local no Campeonato do Mundo de futebol de 2022, no Qatar.

A liderança do novo selecionador - mas sobretudo do líder e treinador de futebol - é colocada à prova a partir do primeiro dia em Portugal com uma grande questão: Cristiano Ronaldo vai estar nesta nova fase da seleção nacional portuguesa?

"As conversas que manteve com Cristiano Ronaldo vão manter-se entre eles", assegura Benoit Delhauteur. É importante registar que o novo selecionador fez questão de ir à Arábia Saudita conhecer Ronaldo, falar com o capitão - e melhor marcador de sempre do futebol internacional -, sobre o papel do jogador no novo ciclo. Seja qual for a decisão, Delhauteur garante que Roberto Martínez vai procurar que o assunto não se torne um caso, após a primeira convocatória, esta sexta-feira, 17 de março.

"O selecionador vai ser sempre muito astuto, muito cauteloso ao medir o impacto de tudo o que faz e diz. Mas quando tomar uma decisão vai fazê-lo expressando-se de uma forma muito clara", explica o editor de desporto RTBF. Por uma questão defesa própria, do papel de selecionador, mas também de blindagem do grupo de jogadores com o qual vai trabalhar nos próximos anos.

O exemplo belga para a gestão de Ronaldo, com uma exceção

"Roberto Martínez sempre foi muito fiel, muito leal na relação com os capitães de equipa, com os melhores jogadores, mesmo quando estes jogadores se tornam mais velhos. Por exemplo com Verthogen, com Alderweireld, apesar das muitas críticas de que foram alvo, continuaram sempre a ser opção durante o mundial. Outro exemplo, Nacer Chadli, um jogador que já tinha passado a melhor fase, mas estava sempre na equipa. Isto porque o treinador constrói uma relação forte com os jogadores", descreve Benoit Delhauteur.

Eden Hazard, Kevin de Bruyne, Romnlu Lukaku podem atestar a confiança de Martínez, mesmo num momento de fim de ciclo, de dúvidas sobre o momento das maiores estrelas de uma geração dourada. "Com Ronaldo ainda está por construir uma relação. Há que ver o que vai acontecer no início. Na Bélgica tivemos o exemplo de Naingolan, que acabou por ter uma má relação com o selecionador porque fumava, porque não respeitava as regras. Isso é algo que Martínez não aceita. Mas no caso de Ronaldo é diferente, porque ele é muito profissional. Veremos como lida com ele".

Um comunicador nato, de palavras contadas

"Para já, o que precisam de saber sobre Roberto Martínez é que importante perceber sobre ele é que há uma grande diferença entre o que ele diz nas conferências de imprensa, e aquilo que ele faz, o que diz e faz, dentro do grupo, dentro federação. Ele esteve em Inglaterra, esteve na Premier League, e lá, aprendeu a medir as palavras. Não quer dar quaisquer pistas aos adversários, nem mesmo algum detalhe", avança o autor da biografia de Martínez.

Nos momentos de maior dificuldade, Martínez tende a não perder a pose. "Mostra-se sempre muito calmo, mesmo quando as perguntas o perturbam, quando uma questão explora algum aspeto negativo sobre o trabalho dele. Ele vai mostrar-se sempre calmo, esconder as emoções. É astuto, inteligente, vai encontrar uma resposta que, mostrando-se sempre calmo e sorridente, vai dizer, 'sim, ok, e blá, blá, blá'. Até que o jornalista diga 'não respondeu à minha pergunta'. É um mestre da comunicação. Não é fácil para os jornalistas lidar com isto, mas ao fim de algum tempo vão saber como lidar com ele, como ler entre linhas o que quer dizer".

A capacidade para perceber como lidar com a opinião pública - e os efeitos que cada palavra pode ter também nos jogadores, ouvintes cada vez mais atentos -, vem da experiência de Martínez como jogador e treinador no futebol britânico.

"Ele tem aquele estilo de jogo "de um espanhol cool", que gosta de um futebol técnico, de posse. Mas aprendeu a criar uma receita que mistura o futebol inglês, com um futebol técnico, adaptado a um contexto inglês. Algo que se percebe também na forma de agir, essa mistura de culturas, algo que fez dele mais rico, mas também mais aberto à mudança, à adaptação".

Cruijff como referência, três centrais como opção, mas apenas uma das possibilidades

Essa capacidade adaptação tem também um impacto na forma como apresenta as equipas. Se na Bélgica optou por adaptar o modelo para aproveitar a abundância de defesas centrais de elite - Kompany, Vertonghen, Vermaelen, numa primeira fase na Bélgica -, mas essa ideia não se tornou um dogma.

"Diria que o estilo se mantêm próximo do futebol do Barcelona, com Johan Cruyjff como a maior influência, mas, ainda assim, com algumas das coisas que foi retendo do futebol britânico. É algo complexo em termos de filosofia, não tão próximo de uma ideia rotulada, mas que acaba por estar mais próxima da vontade de ter a bola como base para tudo".

A proposta é ofensiva, e procura encantar os adeptos. "Promove um futebol ofensivo. Em termos estatísticos é o melhor treinador da história do futebol belga. Por isso, enquanto funcionou, foi positivo".

Até que deixou apresentar resultados. "Ele sentiu que a Bélgica estava numa mudança de ciclo, apesar de ter tido a oportunidade de continuar. Não me surpreende que tenha conseguido convencer os responsáveis da federação portuguesa. Quando chegou á Bélgica foi muito convincente. Disse na altura, "eu vejo este, aquele e aquele problema e esta é a minha solução". Deve ter dito o mesmo à federação portuguesa", explica.

Apesar das críticas sobre a eliminação precoce no Mundial de 2022, Benoit Delhauteur garante que Roberto Martínez saí ileso do final de percurso na Bélgica. "Para mim, foi mais culpa dos jogadores, que já não estavam tão motivados, já não se sentiam comprometidos com o projeto. Há várias explicações para isso, mas Martínez foi muito criticado quando, para mim, a maior responsabilidade foi dos jogadores".

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