"Big brother is watching you." O autor Dave Eggers nunca se consegue abstrair da certeza de que a privacidade é um bem do passado. No final de 2021, chegou às livrarias o livro "The Every", a sequela da sátira distópica "The Circle", sobre a ubiquidade e o poder - na sua perspetiva, exacerbado - das grandes empresas de tecnologia ou monopólios. Defensor dos negócios pequenos e acérrimo crítico de modelos de negócio como o do Facebook, o escritor norte-americano recusou vender os seus livros na Amazon, que caracteriza como uma empresa "bully". Em entrevista à TSF, Dave Eggers lamenta que as pessoas se sujeitem ao totalitarismo da internet e dos algoritmos, sem se rebelarem para defender as suas liberdades. Nesta conversa, o autor e ativista reflete sobre a inevitabilidade do que ainda pode alcançar esta força omnipresente.
No livro "The Circle" e no "The Every", escreve sobre um mundo onde as pessoas tentam sentir que detêm o poder através de formas de segurança cada vez mais invasivas, mas o efeito parece ser o contrário, com a humanidade a ficar mais enfraquecida. A internet cria uma ilusão coletiva de detenção de poderes?
Não sei se é força, é mais uma ilusão de segurança. Penso que, especialmente no "The Every", estava interessado na troca que se faz entre certeza/segurança e liberdade, e a maior parte das ferramentas que são mais ameaçadoras para nós, enquanto espécie, tem, pelo menos, o objetivo ilusório de fornecer certeza e segurança, através da vigilância e dos dados.
Por isso, todas as perguntas com que a humanidade se tem debatido desde que saímos das cavernas são agora respondidas com números, câmaras, vigilância e dados. Pelo menos, é esta a promessa: que todos os mistérios e questões serão eliminados com estes instrumentos.
Todos nos debatemos com as perguntas das nossas vidas e com o desconhecido, mas cada vez mais as grandes tecnológicas oferecem respostas através de ferramentas duvidosas. Começando com a promessa de que nada nos acontecerá que nós não queiramos e de que nada de inesperado acontecerá novamente, desde que nos submetamos à teia dos dados à vigilância 24 horas.
O que tento explorar é que compreendo a necessidade e o desejo das pessoas de viverem com menos incertezas nas suas vidas, mas penso que já demos tanto poder e já nos submetemos tanto a uma cultura de vigilância que não conseguimos voltar atrás.
Já nos alterámos de forma muito dramática enquanto espécie e vamos tornar-nos irreconhecíveis em dez anos, mais ou menos. O meu trabalho, enquanto romancista, é dramatizar isso, de passarmos a ser outra espécie.
O universo corporativo parece também incomodá-lo... Porquê?
Penso que qualquer sistema que esmaga o espírito do indivíduo deve ser desafiado, seja a forma como a Amazon trata os seus funcionários, seja a vigilância do Governo chinês e a supressão das liberdades. É uma autocracia a usar ferramentas digitais, e todas estas coisas são anti-humanistas. Qualquer sistema que oprime e suprime a liberdade do indivíduo é meu inimigo. Tento tocar em todos esses sistemas em "The Every".
Criar literatura a partir de uma "asfixia tecnológica e económica" é como vingar-se, é como não se dar por vencido, é um ato de resistência, uma forma de dizer que escapou, ou é uma vontade de deixar uma espécie de interpretação histórica deste tempo em que também se rendeu e não teve como fugir?
Não é uma vingança, porque a vingança seria libertarmo-nos destes monopólios através de regulação dos governos. Apenas tenho o poder de escrever um livro e colocar as pessoas a pensar sobre estes assuntos e de tentar entretê-las por algumas horas. Nunca sobrestimaria o poder de um romance, mas ainda tenho liberdade para escrever o que quero escrever e para publicá-lo, através da minha pequena editora. Talvez isso instigue o pensamento. Mas penso que, à medida que formos transferindo toda a nossa comunicação para os suportes digitais e a formos canalizando para uns poucos monopólios, começa a ser uma preocupação e uma interrogação se teremos sempre liberdade para publicar o que queremos publicar. Não gosto de transferir as minhas comunicações para um monopólio privado, e acredito que temos de nos certificar de que temos recursos para publicar livremente, na forma de um livro, de um site ou de um blogue.
Temos de continuar a favorecer plataformas democráticas, diversas e igualitárias para chegarmos às pessoas. Considero absolutamente desconcertante darmos tanto poder a uma plataforma como o Facebook, que já provou ser uma força maligna no mundo. Ainda assim, usamo-la como plataforma e como um meio de comunicação para disseminar informação. É bizarro, na minha perspetiva. Temos de garantir que temos tantos canais independentes quantos pudermos ter, para que não acordemos um dia só para descobrirmos que todas as nossas escolhas se resumem a uma mão cheia de empresas.
Encara estes livros - "The Circle" e "The Every" - como manifestos ativistas?
Acredito que a ideia de criar uma obra de arte ou uma forma de ativismo não são mutuamente exclusivas. Penso que podemos desenvolver uma peça de arte, ou um romance, que não se obriga a abraçar qualquer causa e que não é certamente propaganda, mas, ao mesmo tempo, podemos usar a arte para uma mudança efetiva, para desencadear o debate. As duas ideias podem existir independentes uma da outra, mas atuando juntas.
No meu percurso de vida, considero que sou um ativista em relação a diversos temas, mas, quando me sento para escrever, tento contar uma história e entreter o leitor. Neste último livro ["The Every"], tento fazer o leitor rir-se, apontando para o ridículo da nossa era, da nossa vaidade humana e das nossas fragilidades. Divirto-me ao fazê-lo, mas, simultaneamente, estou aterrorizado com o ponto em que nos encontramos enquanto espécie e para onde caminhamos. Por vezes, sento-me para escrever cheio de indignação, e isso reflete-se e alimenta o processo de escrita. Outras vezes, estou só a tentar criar uma realidade que entretém. Esses objetivos têm de coexistir. De outra forma, mais vale escrevermos panfletos. Um romance tem a obrigação, acima de tudo, de entreter.
Interpreta a dependência das grandes empresas tecnológicas como uma ditadura ou como uma espécie de religião do século XXI?
Por vezes. Quero separar os vários tipos de tecnologia. Sou um grande fã da exploração espacial, de inovações no transporte aéreo, da NASA, da exploração subaquática, de tantas coisas... Mantenho-me a par e apoio completamente. O que não apoio é a tecnologia alimentada pela vigilância, não apoio o capitalismo vigilante, não apoio suportes digitais utilizados para controlar as populações, para as estudar e secretamente observá-las.
Eu uso tecnologia todos os dias, mas não quero ser usado por ela. Já vemos isso a acontecer em autocracias, e penso que estamos no começo de vermos também este terrível poder de que as ditaduras se podem munir. Penso que estamos a ver em Hong Kong: muitas ferramentas digitais a serem utilizadas para oprimir as liberdades. Acredito que se pode tornar muito pior, exceto se continuarmos a acarinhar o máximo possível de canais independentes de comunicação; temos de insistir nisso.
Nós, consumidores, temos muito poder em democracia para nos assegurarmos que estas empresas são responsabilizadas quando sufocam as liberdades das pessoas e transformam a sociedade em algo muito menos livre. Quando empresas como o Facebook ou Google, ou Twitter, ou Disney, são cúmplices na censura ou ajudam a suprimir essas liberdades em países como a China, os consumidores têm de se expressar. Também temos de fazer escolhas e pensar que, de cada vez que damos mais dinheiro aos monopólios, tornamo-los mais fortes e estamos a consentir com a forma como estes fazem o seu negócio. É um conflito intelectual estranho. Teoricamente discordamos do capitalismo de vigilância. No entanto, continuamos a apoiá-lo, utilizando estes serviços e deixando-os lucrar com a nossa atividade online.
Temos de ser mais conscientes. É muito fácil, em vez de usarmos o Google como browser, usarmos outros motores de busca que não nos vigiam, que não exercem esse capitalismo de vigilância. Porque não usar esses? Penso que temos tanto poder enquanto consumidores para fazer uma escolha tão simples... Se o fizermos, podemos certificar-nos de que o mundo digital será mais diverso no futuro.
Um dos capítulos da obra "The Every", o primeiro, para ser exata, chama-se "Genesis". É uma premonição de que o início do fim está próximo para a Humanidade como a conhecemos? É um livro profético?
Sim. Não o vejo como o fim da Humanidade, mas é o fim de uma era da Humanidade. Penso que estamos a passar por uma experiência radical de mudança da espécie. Passamos da espécie dedicada à liberdade individual de movimento, de pensamento, à liberdade para existir e para viver sem sermos encurralados e controlados... Há 20 anos não havia qualquer possibilidade de, numa frequência diária, sermos fotografados centenas de vezes no espaço urbano. Ninguém consentiria com tal coisa, pareceria horrível. Há 20 anos, nunca consideraríamos enviar uma mensagem através de um canal que soubéssemos que estava a ser lido, analisado e usado para nos vender produtos e estudar o nosso comportamento online, o nosso perfil enquanto consumidor e as nossas preferências. E, no entanto, consentimos com isso todos os dias, de cada vez que enviamos e-mails através do Google e outros servidores que estão a agregar as nossas preferências e hábitos. Todas estas coisas parecem ter ido tão mais longe do que consideraríamos, há 20 anos, como uma ficção científica distópica. Consentimos com ela todos os dias sem sequer pensar muito. Tornámo-nos uma espécie que está simplesmente satisfeita com vigilância 24 horas por dia, e é muito surpreendente ver que não oferecemos praticamente nenhuma resistência.
Mas eu sou sempre um otimista. Estas grandes empresas tecnológicas... O Facebook só tem uma presença forte nas nossas vidas há praticamente dez anos. Os iPhones só circulam por aí desde 2007. Muitas destas coisas são muito recentes, e há um extenso cemitério de empresas tecnológicas que no passado eram dominantes e depois desapareceram. Penso que temos o poder de mudar muito rapidamente, e talvez estejamos mesmo no momento de corrigir alguns destes aspetos.
O Facebook é a primeira empresa que podia desaparecer, porque os seus objetivos são muito contrários àquilo que os seres humanos querem e necessitam. [A empresa] Já mostrou que não tem qualquer respeito pela privacidade e pela democracia. A determinado momento, a Humanidade como um todo dirá que não quer continuar a dar-lhe poder. Estamos numa fase crítica em que, ou estabelecemos regras, regulamentação e linhas vermelhas, dizendo onde isto tem de acabar ou o que é ir longe demais, ou podemos simplesmente submeter-nos a um nível de vigilância, presencial e online, que nos tornaria não muito mais do que ratinhos de laboratório.
O que significa 'desobediência' hoje?
Pode tomar muitas formas. Aqui, nos EUA, depois do homicídio de George Floyd, vimos a desobediência civil no seu melhor. As pessoas protestaram nas ruas, insistiram na mudança, junto dos governos local e nacional, questionaram as estratégias e os preconceitos que criaram raízes dentro do sistema, sobretudo no sistema policial. Tivemos um despertar aqui, nos Estados Unidos, nos últimos anos, e isso é realmente necessário. Tenho-me sentido inspirado com o quão produtivos são os jovens - especialmente - desobedientes.
John Lewis costumava dizer que é nossa obrigação enquanto cidadãos metermo-nos em bons sarilhos. Era o slogan dele: 'Good trouble.' Ou seja, uma forma produtiva de praticar a desobediência civil, que tem de ser pacífica mas provocadora. Temos de não nos calar quando assistimos a algo que é inaceitável.
Quando falamos do mundo digital, deveria ser inerente a característica da igualdade. Deveria ser um lugar em que todos tivessem o direito de falar e de chegar a milhões de pessoas com a sua mensagem online. A minha esperança é de que voltemos a recuperar os objetivos originais da internet, que não eram o lucro de uma mão cheia de bilionários. A internet era um lugar, um mercado de ideias sem o lucro como principal ambição e sem a vigilância como sua ferramenta de exploração das pessoas. Penso que ainda é possível, mas primeiro temos de nos recusar a canalizar todos os nossos pensamentos para plataformas de monopólios capitalistas, a começar pelo Facebook. Qualquer pessoa que ainda use o Facebook, especialmente aqui, nos Estados Unidos da América, está a ajudar uma plataforma que dissemina desinformação, informação antidemocrática, propaganda fascista e ódio; tudo pelo lucro de uma pessoa que não merece confiança: Mark Zuckerberg. A primeira coisa que temos de fazer é deixar de dar força a esta plataforma e mostrar o nosso posicionamento. Este é o primeiro tipo de 'bons sarilhos' em que nos podemos meter.
Mas acredita que esta forma de viver o digital já foi tão longe que é difícil voltar atrás?
Mas porquê? O Facebook é tão recente! Havia o MySpace, havia o Aol, não sei quais eram as plataformas em Portugal há dez ou 15 anos. Provavelmente já não existem também. Mas o facto de o Facebook ser tão recente significa que surgiu muito rapidamente e pode desaparecer muito rapidamente. Não quer dizer que não usemos mais ferramentas digitais, porque penso que usaremos e que isso não vai mudar, mas a forma como as usamos está completamente no domínio do nosso poder. Poderíamos criar uma plataforma nova, sem lucros, tal como a Wikipedia, que não dependesse da vigilância, da recolha de dados, e consequentemente da desestabilização da democracia. Tal como a Wikipedia foi construída, pode haver outras redes sociais construídas assim, e isso pode acontecer da noite para o dia. Pode haver algo que substitua o Facebook como o Facebook substituiu o Friendster. Ninguém com menos de 30 anos ouviu falar do Friendster, mas foi o percursor do Facebook. Penso que é possível que dentro de uns anos ninguém com menos de 30 anos tenha ouvido falar do Facebook. Tenho adolescentes em casa e eles nunca usaram o Facebook. Pensam nele como algo que os avós utilizam. Por isso, temos o poder de abdicar dele rapidamente.
Uma das coisas bonitas do mundo digital é poder mudar tão rapidamente, mas a primeira coisa que temos de fazer é provocar a extinção do Facebook.
A Amazon é também uma empresa a que se opõe. Não quis vender o seu livro na Amazon. Porquê?
A Amazon é um monopólio e viola as leis antimonopólio nos Estados Unidos. Em muitos casos, não paga impostos e faz desconto nos livros a tal ponto que leva à falência os vendedores independentes por todo o país. Também prejudica as editoras. Desde o início, usa preços predatórios para eliminar a concorrência, o que é uma violação da Lei de Defesa da Concorrência. A Amazon tem sido um bully, e eu não gosto de bullies.
Pensei que, como tenho uma empresa pequena que publica os livros, poderia vender este último livro apenas em livrarias independentes, atraindo mais atenção para os seus negócios e mais consumidores. É um pequeno gesto. Tem sido divertido até agora ver essa exclusividade. Talvez atraia alguns leitores até a uma livraria local que normalmente encomendariam online através da Amazon.
A Amazon tem crescido exponencialmente nos Estados Unidos e na Europa.
Está mais preocupado com o totalitarismo das big tech desde a pandemia?
Por exemplo, a Amazon cresceu imenso durante a pandemia, porque as pessoas compravam muito mais a partir de casa. Foi extremamente difícil para os negócios mais pequenos e tornou a Amazon muito mais poderosa.
A pandemia consolidou o poder de alguns monopólios, em particular a Amazon. E isto não ajuda ninguém, exceto a Amazon. Os trabalhadores são extremamente mal pagos. Uma pessoa que trabalhe numa loja de brinquedos real, que interaja com pessoas de carne e osso e que faça parte de uma comunidade perde o seu trabalho e a única escolha é ir trabalhar para a Amazon, onde trabalha cinco vezes mais por metade do pagamento. A Amazon paga apenas 15 dólares [13,30 euros] por hora, o que é abaixo da linha da pobreza. Não se pode viver sozinho e arrendar um apartamento em qualquer parte dos Estados Unidos com esses rendimentos. Por isso, de cada vez que compramos algo na Amazon, estamos a apoiar um sistema que não garante um estilo de vida aceitável para centenas de milhares de trabalhadores. Quanto mais apoiamos estes gigantes, mais contribuímos para a possibilidade de não dignificar a vida para tantos cidadãos que antes tinham a oportunidade de trabalhar no retalho local e agora têm de trabalhar nestes armazéns desumanos.
A pandemia foi muito difícil para os negócios mais pequenos, e espero que vejamos o fim disso em breve. Temos de nos certificar que apoiamos os negócios locais mais pequenos, porque quando eles desaparecerem desaparecem de vez. Em São Francisco, há milhares de montras vazias, de restaurantes, de livrarias, de lojas de brinquedos, de lojas de roupa... Muitos desses encerramentos são explicados pelo aumento de pessoas que compram online. Metade da cidade está vazia. Não é uma cidade vibrante como costumava ser, as ruas não são tão interessantes como eram... Acabamos por ter uma cidade fantasma, à medida que vamos comprando online a partir das nossas casas. Perdemos a vida, o pulso, a cor e a diversidade da área urbana. É uma escolha que temos de exercer. Se queremos biodiversidade económica, se queremos olhar para uma rua e ver várias lojas diferentes, temos de as apoiar, mas penso que as pessoas às vezes não se apercebem de que, para manter a diversidade viva, têm de usar os seus dólares, têm de votar com os seus dólares, entrando e fazendo compras em vez de comprarem a predadores.
A ideia de identidade também mudou e está agora mais focada em características mais superficiais?
Em certa medida, sim. O que mais ouço de adolescentes é que se sentem obrigados a ter duas identidades: a identidade presencial e a identidade online. É mau, pode ser incrivelmente stressante e prejudicial, sobretudo para meninas adolescentes, que têm agora muito mais problemas de imagem corporal, depressão e stress, por causa das redes sociais. Sentem que têm de acompanhar as imagens que vêm online e o que têm de fazer para se assemelharem às celebridades. Penso que os adolescentes que são suscetíveis a isso sofrem graves consequências. O Facebook e o Instagram sabem disso. Fizeram os seus próprios estudos e perceberam o quão prejudicial isto é. Os psicólogos também perceberam que a depressão em adolescentes, especialmente entre as raparigas, tem crescido imenso. Como pais, temos de estar muito conscientes e muito atentos para que os adolescentes saibam o que realmente importa, que são eles e a sua identidade real neste mundo. Esta vida online é uma ilusória, secundária, superficial e idiota. Os mais novos podem sobreviver a isto de uma forma brilhante.
Os adolescentes que conheço são bastante equilibrados, mas têm de lidar com muito stress para gerir mais do que uma identidade. Já é difícil o suficiente ser adolescente se não tiverem de dividir-se entre identidades diariamente e apresentar várias caras em diferentes plataformas. É demasiado o que um jovem tem de gerir, incluindo o fluxo de comunicação, as centenas de mensagens por responder. É pelo menos cem vezes mais do que aquilo com que tive de lidar quando eu era adolescente. Quando era adolescente, tinha duas chamadas por dia. Era essa a extensão da comunicação não presencial. Mas a comunicação não presencial dos adolescentes de hoje exige-lhes cem vezes mais. Não me espanta que não durmam, que andem stressados ou deprimidos.
Como pais, professores, mentores, temos de fazer tudo o que pudermos para os fazer recuar e simplesmente ser jovens e estar no mundo, encorajando-os a viverem mais a sua vida offline e a falar com as pessoas reais, a olhar para a terra e para o céu e nos olhos dos outros. Penso que é possível, mas é difícil, porque a pressão é algo sem precedentes na História humana.
Acredita, por exemplo, que com a tecnologia seja possível um dia atingir-se a fórmula para a moralidade absoluta?
Há várias empresas tecnológicas a trabalhar nisso, e há vários aspetos do mundo digital que tentam impor um código comportamental. Foi uma das coisas que tentei explorar com "The Every". Acredito que tantas pessoas estejam tão receosas agora e vivam com níveis de stress sem precedentes porque vivem tanto das suas vidas online e têm muito medo de escreverem ou dizerem a coisa errada que viverá para sempre online e que nunca conseguirão escapar disso. Isso é demasiado; os castigos para os que têm devaneios são demasiado penosos, o preço é demasiado elevado. É suposto podermos cometer erros e aprender com eles.
Tenho visto muitos adolescentes que foram humilhados e ficaram com marcas por, aos 17 anos, terem dito algo incorreto. O preço é demasiado alto e o poder do 'digital shaming' é demasiado. Isso não tem que ver com amor, empatia, perdão ou compreensão. Tem que ver com um julgamento permanente que não se coaduna com o melhor que tem o ser humano. Penso que estamos no nosso melhor quando tentamos compreender-nos e perdoar-nos, quando compreendemos o que é o crescimento, que todos erramos. Por acaso, vivemos um momento inflamado pelo mundo digital e que é menos inclinado para o perdão do que era o mundo real há 15 anos. Parece que voltámos ao tempo da censura e das torturas, parece que rodeamos e perseguimos aqueles que achamos que se desviaram do caminho. Penso que crescemos e evoluímos para muito longe disso durante muito tempo, e agora, pelo menos temporariamente, estamos a bater-nos por uma sociedade muito menos complexa e indulgente. Temos de voltar para um lugar em que permitimos que as pessoas cometam erros e que cresçam a partir deles.
Em Sillicon Valley há tantas ferramentas que promovem estes impulsos e que recompensam julgamentos, divisão e ódio. É por isso que os algoritmos do Facebook, e por vezes do YouTube, recompensam com atenção e mais probabilidade de serem ouvidos os que falam mais alto, os mais revoltados e os mais cheios de ódio. É por isso também que devemos regular estas plataformas que lucram com o discurso de ódio.
No entanto, respondendo à sua pergunta, não acredito que na escala de tempo das nossas vidas a tecnologia seja capaz de chegar ao algoritmo ou à fórmula da moralidade absoluta. Mas essa é a ideia no cerne dos livros "The Circle" e "The Every". Essa é a ideia mais distópica do campo da ficção científica: estas empresas criarão algoritmos que regularão a continuidade da espécie humana, dizendo-nos a coisa certa a fazer em cada circunstância. Há uma personagem no livro que deixa de ter livre arbítrio porque já não confia em si mesma e na sua capacidade de decidir corretamente. Os algoritmos dizem-lhe o que está certo e punem-na de várias formas quando ela não faz o que é correto.
Como Deus?
Claro. Os algoritmos tomaram o lugar de Deus. O Homem criou Deus quando inventou a internet. No "The Every", em vez do julgamento nos portões de São Pedro, temos um novo milagre, uma nova forma de dizer às pessoas como elas viveram. É uma aglomeração de números que acumularam ao longo das suas vidas, desde as notas, passando pelas multas de estacionamento indevido, até às avaliações da produtividade, salários, impacto carbónico... Tudo isso é agregado num único número que nos diz se fomos boas ou más pessoas. Penso que estamos a inclinar-nos para isso, penso que é uma inevitabilidade que nos sujeitemos, de facto, a esse número, porque ele elimina a incerteza. Penso que dará um ilusório conforto às pessoas pensar 'bem, eu estou no 829 e qualquer coisa acima do 820 é considerada virtuosa'. Acredito que as pessoas procurarão isso. Nos Estados Unidos, já temos notas de crédito, que são um número de três dígitos que determina se podemos comprar uma casa, um carro ou arranjar um emprego. E esse número é emitido por três empresas que ninguém pode contactar ou desafiar, mas esse número diz às agências e aos bancos se somos ou não um bom cidadão. Ninguém se revoltou contra este sistema nos últimos 50 anos, o que me diz que somos muito complacentes e estamos muito dispostos a submeter-nos a este milagre que é a contabilidade da nossa virtude. Neste caso, não estamos a falar do Governo, mas de empresas independentes. Só que o sistema favorece esse grau de certeza, e penso que os seres humanos também o favorecem, infelizmente. Se o cidadão comum tivesse de escolher entre esperar pelo julgamento de Deus para saber se irá para o céu ou para o inferno, se viveu uma boa ou má vida, ou poder ver, ao longo da sua vida, um número de três dígitos que agregue toda a sua virtude, a maioria das pessoas escolheria ter acesso a esse número.