A esperança de um regresso sem medo à cidade de Donetsk
Tensão Rússia-Ucrânia

A esperança de um regresso sem medo à cidade de Donetsk

Lina Kushch ainda mantém a esperança num regresso sem medo à sua casa em Donetsk, no leste da Ucrânia, que deixou em 2014, em pleno conflito, para se juntar à família já instalada na capital Kiev.

"O meu apartamento está fechado, uma senhora tem a chave para ver se existe algum problema. Alugámos uma casa em Kiev e não podemos vender o apartamento em Donetsk por ser necessário estar lá pessoalmente, devido às novas leis em vigor e que são diferentes das ucranianas".

Lina Kushch, 55 anos, jornalista, é a atual primeira secretária do Sindicato Nacional dos Jornalistas da Ucrânia, instalado num tradicional edifício da avenida Khreshchatyk que sai da Praça Maidan (Independência) e onde resistem diversos exemplares dos grandes edifícios soviéticos típicos da arquitetura estalinista, estilo "bolos de casamento", alguns com a estrela no topo.

Correspondente regional do diário A Voz da Ucrânia, e ainda de outros periódicos locais, recorda com precisão o dia 1 de março de 2014, pouco após o triunfo da "revolução de Maidan" em Kiev que afastou do poder o Presidente "pró-russo" Viktor Yanukovych, quando a praça central de Donetsk, cidade de um milhão de habitantes e onde nasceu cresceu, se encheu de manifestantes.

"Traziam bandeiras da Rússia, foi o início de manifestações contínuas na cidade. Mas muitas pessoas não eram de Donetsk, nem da região, perguntavam qual a direção da praça principal, ou a paragem dos transportes. Vinham de autocarro da Rússia para participar nos protestos", assegura.

Os seus pais e o filho mais novo, então com 11 anos, tinham abandonado a cidade em maio, alguns dias antes do início da grande batalha pelo controlo do aeroporto, para se juntarem ao filho mais velho do casal que já estudava em Kiev. Com o seu marido, também jornalista, decidiu ficar e tornou-se numa observadora privilegiada.

Logo em 3 de março, assistiu ao cerco ao edifício do conselho regional (o parlamento local), onde fazia a cobertura de uma sessão. Milhares de manifestantes exigiam a aprovação de um estatuto de federação para a região e a realização de um referendo, com o edifício por fim invadido e a sessão interrompida.

Já durante a guerra, em 11 de maio, as duas regiões separatistas pró-russas do leste em rebelião aprovavam em referendo, não reconhecido por Kiev e por margem esmagadora, a criação da República Popular de Donetsk (DNR) e da República Popular de Lugansk (LNR).

"Donetsk era uma cidade muito calma, ninguém acreditava que a situação piorasse a esse ponto. Mas já havia sinais antes do início dos combates, em 26 de maio. Na retaguarda das manifestações estavam soldados russos, sem insígnias. Eram militares ou membros de exércitos privados, muitos dos oligarcas ucranianos tinham segurança pessoal, mas eram verdadeiros exércitos privados".

Apesar de a maioria da população destas industrializadas e ricas regiões do Donbass ser russófona, Lina Kushch indica que a deriva separatista era residual e os seus apoiantes apenas mobilizavam um setor muito reduzido da população. Subitamente, e através "de uma operação bem preparada, com o bloqueio de edifícios, estradas, pontes", tudo mudou.

"Após o desfecho do Euromaidan, aumentou o número dos opositores à revolta de Kiev. Tinham votado em Viktor Yanukovych mas quando ele fugiu da Ucrânia para a Rússia [onde permanece exilado], era difícil encontrar alguém em Donetsk que o apoiasse", em particular entre quem defendia o prosseguimento das relações com a Rússia e contestava a nova opção pró-europeia e ocidental do país, revela.

"Ficaram muito desapontados com a sua fuga, diziam que deveria ter ficado e lutado, e passaram a identificar-se com novos líderes considerados mais fortes, porque Yanukovych tinha deixado de ser o líder, tinha fugido".

Foi uma guerra fratricida. "Lembro-me de exemplos de membros da mesma família que combateram nos lados opostos da linha da frente, vizinhos a combater entre si. As pessoas começaram a procurar quem tinha a mesma perspetiva sobre o conflito", diz.

E começaram as delações, as queixas às novas autoridades, o divórcio definitivo entre os "pró-russos" e os "pró-ucranianos", em Donetsk, no Donbass, um vírus promovido por "minorias agressivas" das duas fações e que alastrou por todo o país.

"No nosso edifício havia pró-ucranianos e pró-russos, no mesmo espaço... Lembro que um nosso colega que aí vivia, exprimiu a sua forte posição 'pró-Ucrânia', os vizinhos denunciaram-no aos responsáveis da administração e esteve preso duas semanas, foi espancado, tinha problemas de saúde que se agravaram e morreu dois meses depois, sem sair de Donetsk", refere Lina Kushch.

Um conflito violento, com um balanço atual de 14.000 mortos e muitos mais feridos. Situado perto do aeroporto, um edifício de 12 andares onde estavam instalados muitos 'media' de Donetsk foi ocupado pelas forças rebeldes, diversas regiões da periferia foram devastadas, mas a cidade escapou aos combates.

O deslocamento de 1,5 milhões de pessoas para as regiões sob controlo ucraniano, hoje identificadas como "Pessoas Deslocadas" (Internally Displaced Persons, IDF, na sigla em inglês) foi outra das consequências da guerra civil. Entre elas, pelo menos 300.000 decidiram, entretanto, regressar às suas regiões situadas nos territórios separatistas.

A larga maioria das pessoas reinstaladas na Ucrânia ainda não garante qualquer ajuda, mas em alguns casos podem receber uma contribuição destinada ao arrendamento, ou compra, de novo alojamento.

Lina Kushch refere que as crianças até aos 18 anos e os reformados recebem 1.000 hryvnia [cerca de 30 euros] por mês. "E quem tem um trabalho pode receber 442 hryvnia mensais [cerca de 13 euros]. Os desempregados não recebem esta ajuda, (...) mas muitas pessoas também se envolvem na economia paralela...".

Apesar de poder deslocar-se a Donetsk, onde está registada e possui uma casa, Lina Kushch tem optado por não arriscar. Pelo contrário, muitos deslocados continuam a visitar as suas regiões de origem, onde deixaram familiares, amigos, posses.

"Mas desde 2020 que é mais difícil. Até então, podiam atravessar os postos de controlo instalados na 'linha de contacto', entretanto encerrados pelas autoridades de Donetsk e Lugansk devido ao aumento das tensões. Há muitas pessoas que têm de viajar através de território da federação da Rússia", esclarece.

"Partem desde Kiev em pequenos autocarros de oito, dez lugares, entram em território da Rússia e seguem à fronteira com Donetsk e Lugansk. Depois atravessam a fronteira com os territórios não controlados, até ao destino, uma viagem de 27 horas a 30 horas".

Os que obtêm autorização para entrarem "no outro lado" através dos postos de controlo situados na "linha de contacto" e em funcionamento têm previamente de justificar o motivo, esperar pela autorização e optar por segunda ou sexta-feira, num horário determinado.

Uma das mais eficazes formas de "russificação" de Donetsk e Lugansk tem consistido no fornecimento em massa de passaportes à população, que assim obtém nacionalidade russa, entregues presencialmente na cidade de Rostov, junto à fronteira comum, após a apresentação da documentação exigida.

Nas atuais repúblicas populares separatistas vivem pelo menos três milhões de pessoas, mas antes da guerra contavam-se 4,5 milhões na região de Donetsk e cerca de dois milhões na região de Lugansk, informa com uma ponta de orgulho a dirigente sindical. "Sim, era muita gente!".

Donetsk era a maior região industrial da Ucrânia, 10% do total da população do país, mas cerca de 20% do PIB nacional. A grande maioria das exportações também provinham daí, em particular metalurgia e indústria mineira. Apesar do conflito e do seu estatuto separatista, em 2016 permanecia em segundo lugar entre as 24 regiões da Ucrânia em termos de produção de bens industriais.

Lina Kushch revela nostalgia pela região onde nasceu e viveu durante mais de 45 anos. Sabe que esta guerra não surgiu agora, está ativa há oito anos. E que a eventual reintegração das regiões de Donetsk e Lugansk na Ucrânia, que deseja, se vai prolongar por muitos anos.

"A desminagem vai demorar muito tempo, até que esses territórios sejam seguros para as pessoas, e ainda serão necessários muitos anos para que a lei ucraniana volte a vigorar nessas regiões".

Um cenário que se poderá complicar em definitivo com o reconhecimento pela Rússia da independência das duas "repúblicas populares", e que implicará o fim de um moribundo processo negocial.

"Se forem reconhecidas por Moscovo, Putin pode instalar as suas tropas na região. Mas espero voltar à minha cidade, ter o direito de regressar sempre que queira, com a minha família".

Na tarde de segunda-feira, no Kremlin, o presidente russo Vladimir Putin anunciava o reconhecimento das "repúblicas" pró-russas. Horas mais tarde, ordenava a mobilização do Exército para a "manutenção da paz" em Donetsk e Lugansk.

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