A guerra invadiu o hospital de Bucha às 17h00 do dia 24 de fevereiro de 2022: "A essa hora recebemos o primeiro ferido vindo do aeroporto de Hostomel. A 28, se não estou em erro, chegou o primeiro soldado russo. Nesse dia foram quatro feridos."
Com o exército de Moscovo a ameaçar tomar a cidade, a prioridade do diretor deste hospital passou a ser a de retirar os soldados ucranianos já internados naquele mesmo hospital em que o inimigo era agora também salvo.
A 4 de março, o exército russo tomou o hospital. Perante a impossibilidade de retirar, em tempo útil, todo o pessoal clínico da zona ocupada, Anton Dovgopol tomou a decisão de ficar. "Eu, como diretor, não podia deixar a instituição. Éramos 150 pessoas da equipa hospitalar e 280 utentes - feridos, doentes em recobro, grávidas, crianças e tudo mais. A juntar a isto tínhamos pessoas que ficaram com as casas destruídas e, por isso, mudaram-se para o perímetro do hospital", recorda.
E assim ficou, "sem eletricidade, sem água, sem aquecimento e sem comunicações". Nem sequer era possível "distribuir refeições ou medicamentos". Não tinham certezas do que se passava no resto do país. "Havia um rádio que, de vez em quando, ouvíamos. Mas não havia internet."
Anton conta que, ainda assim, o hospital continuou a realizar partos, a fazer cirurgias, e todos os procedimentos médicos possíveis.
A vala comum de Bucha
No meio deste turbilhão, eram sepultados os corpos na primeira vala comum de Bucha. Fala quem o sabe na primeira pessoa.
Enquanto nos mostra um pequeno vídeo, Anton explica que "se vir, perceber bem quem é que os enterrou". Apesar das máscaras e de todas as medidas de proteção, é perfeitamente reconhecível: os píxeis mostram que o diretor do hospital e outros médicos vão descarregando corpos de uma carrinha de caixa aberta.
Antes, já tinha visto o suficiente. Corpos estendidos nos quintais a "serem comidos por animais", cães que "comiam as orelhas dos mortos".
"Tudo isto aconteceu diante dos meus olhos, estes horrores. Uma vez perguntaram-me se não queria escrever um livro sobre isto." Sabia que o quadro era insustentável. Era altura de começar a preparar o próximo passo: retirar todos os doentes para a zona ucraniana.
Os primeiros seriam os então cerca de 50 internados com Covid-19 que estavam a receber oxigénio, um bem que agora igualmente preciso para muitos dos feridos em combate. E os russos queriam retirar-lhes aquele gás de valor quase incalculável.
"Se querem fazer isso têm de nos matar primeiro" foi a resposta dos trabalhadores ucranianos, assegura Anton, acrescentando que apesar terem metralhadoras apontadas nunca abandonaram a instituição. Os doentes acabaram por cruzar a linha para Irpin a 9 de março. "Ainda estão todos vivos e todos com saúde."
Quando os primeiros feridos russos chegaram ao hospital, foram recebidos ao abrigo da Convenção de Genebra, mas os clínicos ainda não conheciam as atrocidades que o exército do Kremlin é acusado de ter cometido em Bucha.
"Enquanto lá estivemos, eles não trataram a região de forma tão brutal. Se não tê-los-íamos estrangulado logo ali, na ombreira da porta. Claro que quando olhávamos para eles, o nosso primeiro desejo era matá-los", confessa Anton, "mas somos médicos e na guerra também há algumas leis. Eu não posso violar as leis da guerra".
Com "dor no coração e lágrimas na alma", os médicos trataram-nos. "Não o queriam fazer, mas eu como diretor tinha de assegurar o cumprimento da Convenção de Genebra e da lei."
Enquanto ocuparam o hospital, as autoridades russas fizeram quatro buscas na instituição, levavam "tudo o que queriam e precisavam", mas também deixavam "sempre colaboracionistas novos".
Quando partiram de vez, os homens de Moscovo deixaram quatro destes colaboracionistas para trás. Anton confessa que não tiveram receberam grande simpatia: "Demos por eles e expulsámo-los do perímetro do hospital."
"Saiam imediatamente"
Anton podia até ter sido, conta, um destes colaboracionistas. Quiseram fazer dele presidente da câmara. Recusou. "Percebi que me tornaria num traidor."
No limite, teve de tomar a decisão de abandonar Bucha em plena ocupação. Tudo começou a 11 de março, em nova visita dos russos ao hospital. Fizeram reféns todos os que estavam no interior.
"Tu vais ser o responsável por restaurar a região", ouviu do oficial russo que liderava o sequestro.
"Não tenho nada a ver com isso", respondeu-lhe Anton.
Perante a nega, o militar de Moscovo perguntou quantas pessoas havia no hospital. Anton respondeu-lhe que eram 50.
Num ato contínuo, um soldado russo engatilhou a metralhadora e apontou-a a outros reféns. O objetivo seria obrigar Anton a render-se. "Foi assim que me chantagearam", aponta.
Na primeira oportunidade que teve, subiu a uma árvore, ligou ao ministro ucraniano da Saúde e explicou "o caso".
Do outro lado ouviu uma resposta curta e clara: "Saiam imediatamente." E assim foi.
"Imagine a cena, cem carros à espera"
A 12 de março, 18 dias depois da guerra chegar ao hospital, bateu a retirada. "Tirámos tudo o que havia de valor, levámos os equipamentos de controlo para os russos não poderem utilizar o hospital para as suas necessidades." Toda a maquinaria que ficou foi inutilizada.
Em poucas horas tudo estava a postos para a partida, mas quando os carros se alinhavam para percorrer o corredor humanitário anunciado pelas Nações Unidas, chegou a notícia que todos temiam: os russos tinham anulado o corredor.
"Imagine a cena, cem carros à espera em frente ao hospital de Bucha. Havia crianças, cães, grávidas, pessoas com incapacidades, reformados", enumera.
A angústia do momento acabou por tomar conta de Anton ao pensar que ia ter de voltar para o hospital: "Os russos iam aparecer lá outra vez, iam nomear-me presidente da Câmara e, se eu não aceitasse, matavam a minha equipa."
Para piorar a situação, as forças russas começaram a ocupar as posições que haviam de ser percorridas pela caravana humanitária. Bombardearam Irpin e a artilharia ucraniana ripostou.
"Havia muita atividade. E eu tomei uma decisão." Se não podiam deixar o hospital através de uma caravana oficial, e depois de fazer as contas à vida, iam fazê-lo por sua própria conta e risco.
"Era impossível ficar", mas não foi sozinho. Todos os que estavam à espera de um corredor humanitário oficial "perceberam que o pessoal do hospital ia partir" e, então formou-se, um corredor informal.
Em vez de deixarem rapidamente a zona, "dei conta de que aqueles carros começaram a seguir-me". Começou assim a fuga: a 5 km/h.
Por ser tão extensa, "até os russos pensaram que era uma caravana oficial". Passou os postos de controlo dos homens de Putin e, quando já tinham percorrido alguns quilómetros, a artilharia russa corrigiu o tiro.
"Devem ter percebido, ou visto, que não havia ninguém no hospital. Nós tínhamos muita importância estratégica para eles. Já imaginou um hospital inutilizado?"
"Médico Honorário da Ucrânia"
Passou menos de um ano desde este episódio. O hospital de Bucha já voltou a funcionar quase em pleno, embora em alguns pontos sejam visíveis as marcas dos explosivos. Quando lá estivemos havia um corrupio de doentes, o pessoal hospitalar já regressou quase todo aos postos de trabalho.
Durante toda a conversa com a TSF, Anton Dovgopol manteve-se sentado. A voz era serena, quase monocórdica, como quem já contou a mesma história uma centena de vezes. Mas os feitos deste médico, feito piloto de caravanas, valeram-lhe uma condecoração atribuída por Volodymyr Zelenskyi: "Médico Honorário da Ucrânia."
É para mostrar a medalha que Anton se levanta pela primeira vez desde que entrámos no gabinete. Está guardada numa vitrina, junto do diploma profissional que nem sempre esteve em uso.
Anton já teve de reorientar a carreira durante algum tempo. Trocou o estetoscópio pela metralhadora, começou a combater, teve de "aprender a disparar".
A 1 de abril, duas semanas depois da partida, o médico já estava de volta ao posto. "Retomámos o trabalho em pleno e, no dia 14, fizemos a primeira cirurgia programada", conta sem que a voz esconda agora o entusiasmo.
A despedida é feita com um sorriso tímido, quase embaraçado: "Bom, é esta a minha história."