"A Rússia tem um exército de cibersoldados"
entrevista TSF JN

"A Rússia tem um exército de cibersoldados"

O Diretor do Instituto Português de Relações Internacionais e ex-ministro da Defesa e Administração Interna, Severiano Teixeira, é o convidado desta semana da entrevista TSF/JN.

Os mais desatentos não terão visto a estratégia de longo prazo de Putin, que remonta a 2008 e tem tido da comunidade internacional reações tímidas. A leitura é do diretor do Instituto Português de Relações Internacionais, que já foi titular das pastas da Defesa e da Administração Interna, e alerta para a necessidade de uma cultura de segurança mais consolidada. Incluindo no ciberespaço, onde a Rússia leva "um avanço extraordinário".

A Rússia ocupa Kiev. Imaginava possível esta notícia há uma semana?

Ninguém imaginava, mas isto, no fundo, é a crónica de uma guerra anunciada. A dúvida era se as forças russas ficavam na zona das forças separatistas ou se avançavam. E, portanto, concretizam uma invasão de grande escala como já não assistíamos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Com todas as características da invasão clássica: ataques aéreos para neutralizar a capacidade antiaérea do inimigo, bombardeamentos para cobrir o avanço das tropas terrestres, que se fizeram em três sentidos: do sul pelo lado da Crimeia, a leste pela Rússia, a norte pela Bielorrússia e às portas de Kiev.

Em que momento pressentiu um ponto de não retorno nesta invasão russa?

O momento em que Putin encena, digamos assim, o pedido de ajuda das repúblicas e, obviamente, um pouco antes, o reconhecimento unilateral por parte dele da independência dessas repúblicas. Agora, é preciso dizer que só quem não estivesse atento é que não percebia que há, do lado da Rússia de Putin, uma estratégia de longo prazo. É uma estratégia que vem desde, pelo menos, 2008 com a intervenção na Geórgia e a ocupação da Ossétia do Sul e da Abecásia.

Estivemos desatentos na comunidade internacional em relação a esse primeiro passo?

Naquela altura, faça-se justiça, o presidente George Bush quis reagir e, aliás, previamente integrar a Geórgia na NATO. Não houve consenso com os aliados europeus, particularmente a Alemanha da senhora Merkel. Estive na Cimeira de Bucareste onde esta discussão se tornou acesa. Aliás, a cimeira parou e a senhora Merkel e o presidente Bush negociaram diretamente a um canto da sala e não se chegou a uma conclusão. A estratégia de longo prazo de Putin consolida-se em 2014 com a intervenção e a anexação na Crimeia e agora confirma-se, de uma forma um tanto dramática, com a entrada na Ucrânia. O que Putin visa é a reconstituição da fronteira da Rússia, que quer fazer coincidir com o antigo império czarista. O que o Ocidente tem que ter em consideração é que esta pode não ser a última intervenção de Putin nesse sentido, porque há em outros estados vizinhos de língua russa.

Estamos a falar da Polónia, da Roménia, de estados bálticos...

E da Moldova, exatamente. E mais, é um péssimo sinal e uma coerção inaceitável a declaração de Putin tentando condicionar a adesão à NATO da Suécia e da Finlândia, que são países da União Europeia.

Acredita na capacidade de limitar Putin com as sanções que estão a ser aplicadas?

Nós não temos ainda a dimensão completa das sanções que vão ser aplicadas. As primeiras pareceram-me tímidas relativamente àquilo que é a dimensão da intervenção. Os dirigentes ocidentais disseram que elas iam ser progressivas e proporcionais, no meu entender esta proporcionalidade é tímida do lado do Ocidente. Mas é provável que venham a desenvolver-se. Também é preciso dizer que tudo isto estava, da parte de Putin, premeditado e, portanto, ele é um ator racional e preparou-se no sentido de minorar o efeito económico que as sanções têm na Rússia. Vejamos que foi a Pequim nas vésperas dos Jogos Olímpicos conversar com Xi Jinping e assegurou que parte do gás que não virá para a Europa pode ser absorvido pela China. Desde o princípio do ano, estava a acumular divisas no sentido de melhorar o impacto financeiro.

Estamos a falar de 600 mil milhões de dólares...

Isso significa que havia uma preparação por parte da Rússia para o impacto das sanções. De todo o modo, vamos ver como elas se desenvolvem e a extensão que vão ter. A médio prazo, isso pode ter um efeito sobre a economia russa que é importante, sobretudo se atingirem dois alvos. O primeiro é a elite cleptocrática russa. Essa elite vive obviamente dos benefícios do regime de Putin, tem as suas propriedades, os seus ativos, nas economias ocidentes, em Nova Iorque, em Londres, em Paris, e se vir congelados os seus bens, congelada a sua mobilidade, acabará por ficar descontente com este tipo de política e também pressionar Putin. Também temos que ter em conta como é que se vai desenvolver a frente interna na própria Rússia. Neste momento, temos protestos que são sobretudo de discordância ideológica com a intervenção, mas no momento em que isso começar a afetar também o bolso dos cidadãos e a sua vida quotidiana, pode engrossar.

O Tratado da Aliança, que prevê uma espécie de um por todos e todos por um, é uma salvaguarda para os países que são membros da NATO, mas não será também uma forma de a Aliança lavar as mãos em relação ao que se passa com os não membros?

Bem, é evidente que o artigo 5.º protege os membros e, por isso, será muito mais difícil, ainda que Putin possa ter essa tentação, intervir nos membros da NATO. Não quer dizer, e isso já aconteceu, que não o faça através de guerra híbrida, de ciberataques etc., etc. Mas, de facto, uma intervenção clássica, deste género, não é previsível. A curto prazo.

Porque é que diz a curto prazo?

Porque nós não temos ainda a dimensão do que significa esta intervenção na Ucrânia e o que é que Putin vai fazer desta vitória militar. E, depois, que consequências é que isso tem em dois níveis. Primeiro, na arquitetura de segurança europeia. Em segundo, sobre a própria ordem internacional.

Em 1999, durante 78 dias, a NATO bombardeou a então República Federal da Jugoslávia ao abrigo do direito internacional humanitário, sem mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Está fora de hipótese uma ação militar contra a Rússia?

A acreditar naquilo que os estados-membros têm dito e que o próprio secretário-geral da Aliança disse não parece ser uma equação que esteja em cima da mesa. Agora, fora da Aliança não quer dizer que não pudesse haver algum membro que, a título de Estado soberano, pudesse ajudar a Ucrânia. E isso teria, do ponto de vista ético, colocado o Ocidente de uma outra forma.

Houve falta de coragem nesse sentido?

Do ponto de vista ético, é precisamente isso. Acho que a reação do Ocidente é tímida, em termos proporcionais, face à dimensão da invasão. Os ocidentais têm tido, desde 2008, uma estratégia de curto prazo e uma estratégia reativa. E os ocidentais têm que responder tendo em conta os três grandes objetivos na estratégia de longo prazo de Putin. O primeiro tem a ver com o afastamento da democracia das fronteiras da Rússia, com aquilo que é para ele a prova de que a democracia liberal não funciona e que o seu regime, dito iliberal e que eu diria um regime autoritário, tem muita maior eficácia. Está a querer prová-lo do ponto de vista internacional. Em segundo lugar, redesenhar toda a vizinhança próxima e voltar àquilo que era o império dos czares. E há um terceiro objetivo, que é reverter a arquitetura de segurança e reverter os princípios da ordem internacional liberal saída do final da Guerra Fria.

E como fica o posicionamento e a possibilidade de uma ação militar se caírem mísseis, por exemplo, em território polaco ou nos bálticos?

Se caísse um míssil num dos países da Aliança Atlântica, acho que não havia qualquer dúvida sobre qual seria a reação, porque o artigo 5º obriga todos os membros a reagir a um ataque. Um ataque a um é um ataque a todos. E naturalmente a Aliança Atlântica seria obrigada a reagir.

Isto obriga certamente a redefinir o papel da União Europeia e em concreto da Defesa Europeia...

Há um efeito eventualmente positivo desta intervenção na Ucrânia: uma dramática tomada de consciência de que a guerra voltou à Europa e a ameaça russa está ativa. Nós estamos geograficamente protegidos, mas os povos da UE e da NATO como a Polónia, os países bálticos, a Roménia, que estão na fronteira, têm medo. E o medo é poderosíssimo do ponto de vista da criação da coesão e da identidade. Esse fator pode ser importante no reforço do vínculo transatlântico. A NATO, que passava uma certa crise de identidade, neste momento não tem nenhuma dúvida de que tem um inimigo às portas de casa.

São esperadas deslocações massivas de ucranianos. A tragédia humanitária vai somar mais dificuldades à capacidade de resposta da União Europeia?

Sim, esse vai ser mais um dos desafios. Ouvi uma entrevista do dr. António Vitorino, responsável nas Nações Unidas pelas migrações, em que estimava que pudesse haver um fluxo de refugiados da ordem dos três milhões, para mais do que para menos. Isso vai criar imediatamente uma pressão nos países de acolhimento, e nós tivemos um pequeno ensaio há uns meses atrás, com a questão da Bielorrússia.

Ouvimos o primeiro-ministro demonstrar disponibilidade para acolher refugiados. É uma declaração que o orgulha ou que poderá ser politicamente precipitada?

Acho que é eticamente louvável e corresponde, aliás, aos valores da União Europeia e ao universalismo que Portugal sempre tem tido de abertura e acolhimento a outros povos. Louvo essa atitude do primeiro-ministro e espero que ela se concretize.

Socialmente, poderá haver alguma quebra de solidariedade à medida que se sintam, nos preços e no nosso quotidiano, os efeitos deste conflito?

A situação de guerra e a carência energética que se vai, provavelmente, agravar com o fim, ou pelo menos a redução, de fornecimento de gás russo à Europa vai ter efeitos económicos. Em Portugal, felizmente, estamos um pouco ao abrigo disso, porque Portugal importa muito pouco, mas não estaremos ao abrigo do efeito global sobre a economia europeia. Não creio que essas dificuldades se reflitam diretamente na capacidade de acolhimento ou na atitude que os portugueses têm relativamente aos imigrantes e aos refugiados.

Habituámo-nos a desvalorizar os riscos militares e a um certo esvaziamento das nossas Forças Armadas. Este é o momento em que ficam evidenciados os perigos desse desinvestimento?

Indiscutivelmente. Os europeus sempre manifestaram, se virmos os eurobarómetros ao longo do tempo, apoio à defesa europeia, à necessidade de haver autonomia da defesa europeia, mas quando se trata de pagar essa defesa, as suas opiniões são mais reticentes.

Há uma cultura de paz mais consolidada?

Há uma cultura de paz mais consolidada, há uma cultura de segurança menos consolidada do que acontece nos Estados Unidos. Esta tomada de consciência vai tornar evidente a necessidade de a Europa ter capacidade de defesa. Uma das consequências que eu acho que vão ser positivas nesta crise é o reforço da relação transatlântica, depois o reforço da coesão europeia e, finalmente, essa capacidade de criar uma defesa europeia mais sólida, mais robusta, que ponha a Europa ao abrigo de qualquer ameaça. Sobretudo porque pode haver circunstâncias em que os Estados Unidos não tenham interesse em intervir e a Europa tem que ter capacidade para se defender.

E o país deveria equacionar o regresso do serviço militar obrigatório?

Não penso. O serviço militar obrigatório é histórico, é evolutivo. Não quer dizer que não possa vir no futuro a equacionar-se uma situação em que isso se justifique. Neste momento, não penso que seja o caso.

A ciberguerra será o próximo desafio para a humanidade? Um relatório internacional da Microsoft revela que já no ano passado o segundo país no Mundo mais afetado por ciberataques, logo atrás dos Estados Unidos, foi precisamente a Ucrânia.

Indiscutivelmente. Nós estávamos habituados a olhar para três teatros de guerra: a terra, o mar e o ar. Neste momento, o ciber é um quarto teatro de guerra que tem que ser encarado com a mesma seriedade, e se calhar agora com maior urgência, do que todos os outros. A NATO, naturalmente, está a fazer um grande investimento nesse sentido, a União Europeia também. E nós em Portugal seguimos essa tendência, mas há um enorme caminho a fazer de investimento, do ponto de vista tecnológico, do ponto de vista organizativo, de colaboração entre os estados e as companhias privadas.

Na segunda-feira começam negociações em Nova Iorque, para ser redigida a primeira convenção da ONU contra o cibercrime e, curiosamente, a proposta de redação que está em cima da mesa é da autoria da Federação Russa.ng>

A Rússia tem, nesta matéria, um avanço extraordinário, tem um exército de cibersoldados, vamos dizer assim, li que andaria à roda dos 30 mil. Muitos dos ataques que têm sido perpetrados, quer contra as eleições em países democráticos, quer nestes casos na Ucrânia, têm um efeito muito importante pela disrupção que exercem nas sociedades. Além da parte militar, podem afetar, desde a saúde à segurança social, todos os domínios da nossa vida em sociedade.

Surpreenderam-no as fragilidades demonstradas pelo presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, falando em distribuir armas às populações e pedindo que as pessoas lancem cocktails molotov?

A desproporção de poder militar entre a Rússia e a Ucrânia é uma coisa enorme. Não há nenhuma possibilidade de resistência séria se não houver uma outra aliança, um outro país que possa ajudar. A reação do presidente Zelenski pode ser encarada no sentido de procurar elevar o moral da sua população, mostrar que tem dignidade na resistência, que não cede. Vejo mais nesse sentido do que verdadeiramente defender-se do poder militar russo. Mas deve dizer-se que é uma posição de dignidade, de patriotismo.

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