Maha Mamo é hoje uma cidadã brasileira e trabalha como ativista dos direitos humanos
Entrevista TSF

"Os animais tinham mais direitos do que nós." A vida invisível de Maha Mamo, apátrida durante 30 anos

Maha Mamo viveu três décadas sem ter pátria. Filha de sírios, nunca teve direito à nacionalidade, devido ao conflito entre a religião da mãe e a do pai. Hoje, com 35 anos, é uma cidadã do Brasil, o país que a acolheu. Em entrevista à TSF, explica que hoje se dedica a trabalhar com as Nações Unidas, chamando a atenção para a realidade de milhões em todo o mundo que, como ela, não tiveram um país a que chamar "casa".

Como é que se tornou uma cidadã apátrida?

Quando um ser humano nasce, ou consegue a sua nacionalidade pela terra onde nasce - como no Brasil, em que qualquer pessoa nascida no Brasil é considerada brasileira - (...) ou pelo sangue - dependendo da nacionalidade do pai ou da mãe, consegue-se a nacionalidade. No meu caso, os meus pais são sírios. A minha mãe é muçulmana, o meu pai é cristão. O casamento inter-religioso na Síria é inaceitável. Não existe mãe solteira nem pai solteiro, na lei. Eles mudaram-se para o Líbano. Eu, a minha irmã e o meu irmão nascemos no Líbano, mas só se é libanês somente se o nosso pai for libanês. Eu não era nem libanesa nem síria. Eu era apátrida. Nasci sem certidão de nascimento, sem documento nenhum que prove quem sou eu.

Que dificuldades vivia, diariamente, no Líbano, por não ter uma nacionalidade?

Como cidadã apátrida, não se tem direito básico nenhum. Não se tem trabalho, não se tem educação, não se tem saúde. Se eu tinha uma alergia, quando fosse para o hospital, eles não me iam atender porque eu não tinha um documento para apresentar. Então eu entrava sempre com o nome de uma amiga, a Nicole. Essa minha amiga tem um cão - e o cão dela tinha um boletim de vacinação, coisa que nem eu, nem a minha irmã nem o meu irmão alguma vez tivemos. Mesmo os animais tinham mais direitos do que nós, enquanto seres humanos. Qualquer coisa que se queira fazer na vida - desde comprar um cartão para o telemóvel, tirar a carta de condução, ou entrar em edifícios oficiais, qualquer coisa! -, pedem-te identificação. E tu não tens.

Como conseguiu, apesar de tudo, estudar e fazer formação ao nível superior?

Eu consegui, com favores, estudar numa escola arménia, em Beirute, no Líbano. Eu consegui estudar, consegui formar-me. Queria ser médica. Infelizmente, não pude. Não me aceitaram sem documentos. Então eu comecei a ir atrás de todas as universidades, até que uma delas me disse: "Podes estudar". [A universidade] não tinha Medicina. Tinha Gestão e Informática. Perguntaram-me: "O que é que queres estudar?". E eu respondei: "Alguma coisa entre as duas". E, assim, formei-me em Sistemas de Informação. Eu tinha consciência de que a educação era muito importante. Essa consciência levou-me a saber que, mesmo não valendo de nada esse certificado que a universidade me desse, a educação era o mais importante. Foi difícil, mas foi bem claro, que era esse o caminho.

Quando é que teve consciência do que era a sua condição de apátrida?

Para mim, o reconhecimento mesmo da palavra em si - "apátrida", sem pátria -, eu nem tinha. Por muitos e muitos anos da minha vida, eu vivi a achar que era inferior aos outros, vivia meio na sombra. Eu não sabia o que é que era. Comecei a mandar cartas e emails para os governos. No Líbano e na Síria, dizia-se simplesmente que não havia solução. Então, se no Líbano, não tinha solução, e na Síria não tinha solução, comecei a mandar cartas para o mundo inteiro, para qualquer país, a pedir uma solução. Só para saber a quem é que eu pertenço!

Como aconteceu ser acolhida pelo Brasil?

O Brasil, em 2014, abriu as portas para os refugiados sírios. Eu mudei-me do Líbano para a Síria com um documento de viagem que me permitiu chegar ao Brasil legalmente. O Brasil não tinha o estatuto de "pessoa apátrida". Não tinha essa definição. Não tinha um mecanismo para resolver isto, nem o processo de naturalização. A única forma de ficarmos legalmente dentro do Brasil era enquanto refugiados. [Eu e os meus irmãos] pedimos refúgio, e conseguimos refúgio.

Qual foi o caminho que teve de percorrer até ser uma cidadã brasileira?

No meio deste caminho, perdi o meu irmão, numa tentativa de assalto, no Brasil. Ele faleceu como apátrida. Mas conseguimos arranjar uma certidão de óbito. Um apátrida não tem certidão de nascimento, vive a vida nas sombras, vai-se embora, é uma vida invisível. Não se tem a mínima dignidade de ser humano. Para ele, conseguimos, por ele ter sido aceite como refugiado. Ele tinha 26 anos. A morte dele deu-me mais força e determinação por saber que não queria morrer como apátrida. Comecei a falar sobre a minha história, a compartilhar a minha história pelo mundo inteiro, porque as pessoas precisam dessa consciencialização. Se não há definição deste problema, não há solução. E foi assim que consegui, com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), com muita boa vontade do governo brasileiro, da sociedade civil, das pessoas que sentiram comigo e entenderam o que é ser apátrida. Que não é uma decisão minha. Eu não escolhi nascer no Líbano, eu não escolhi os meus pais sírios. A minha única escolha foi querer existir da mesma maneira que qualquer outro ser humano. No Brasil, consegui a minha nacionalidade. E com uma lei - não com uma exceção. Hoje existe [na legislação brasileira] um capítulo todo a falar de apatridia, que define uma pessoa apátrida, que reconhece a pessoa apátrida e também facilita a naturalização. Eu e a minha irmã fomos as primeiras [apátridas], na História do Brasil, a ter a nacionalidade brasileira - a 4 de outubro de 2018.

E o que a levou a tornar-se ativista?

Há uma frase de Martin Luther King que eu gosto muito de usar e que diz que "a nossa vida começa a terminar no dia em que nos silenciamos sobre as coisas que importam". Hoje não há um número específico, não se sabe quantas pessoas são apátridas [as estimativas variam entre 4 e 10 milhões]. Como não há registo, não há números. E como é que vamos saber, sem números, quantas pessoas são? É por isso que hoje eu trabalho como oradora motivacional, a compartilhar a minha história, e a explicar que nada é impossível.

Olhando para Portugal, o que falta fazer, em termos legais e políticos, em relação à apatridia?

A lei de Portugal é muito generosa. Já existem muitas coisas a prever que uma pessoa nasça apátrida, ou que uma pessoa se torne apátrida. Mas ainda falta o estatuto da apatridia. Ainda falta colocar o procedimento de reconhecimento de um apátrida. Quando temos um procedimento de determinação de uma pessoa apátrida, é muito claro entender que a apatridia é muito diferente de ser refugiado e de outros assuntos que combatemos no dia-a-dia. É uma questão específica de ser humano. O artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todos temos direito a uma nacionalidade. Falta só a determinação.

Recomendadas

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de