Ouça a reportagem com os trabalhadores que ainda protegem a Europa, os turistas e os animais que vivem na zona. Visita a uma cidade abandonada e à última construída pela União Soviética para receber os trabalhadores que minimizam as consequências do acidente.
De tudo um pouco se vende nas duas lojas do lado de fora da cancela que dá entrada para a enorme zona de exclusão de Chernobyl. Camisolas, gelados, ímanes para o frigorífico ou preservativos luminosos, sempre alusivos ao desastre nuclear que há 33 anos assustou a Europa.
Até há duas testemunhas de Jeová, uma religião sempre à espera do fim do Mundo, com uma banca montada à hora em que começam a chegar os turistas.
Os turistas (a quem a agência estatal que gere a zona de exclusão recusa chamar turistas - já lá vamos...) estão entre o entusiasmado, o expectante e o talvez um pouco assustado.
O governo ucraniano e as agências que organizam as visitas garantem que é seguro, mas a radiação é um mal que não se vê e pode ter efeitos que só se sentem muito depois.
Trabalhar diariamente em Chernobyl
Mais ou menos à mesma hora (8 da manhã) a que os turistas saem de Kiev em pequenos autocarros em direção a Chernobyl, numa viagem que vai demorar duas horas, em Slavutych, uma pequena cidade construída a uns 20 quilómetros da fronteira da zona de exclusão, há 3 a 5 mil trabalhadores (depende da época e da fonte...) que fazem diariamente uma viagem de comboio com idêntico destino.
São eles que continuam a trabalhar na central de energia que existe em Chernobyl ou no novo mega sarcófago que custou 2,2 mil milhões de euros e foi pago por 45 países.
A obra deverá selar a central nuclear que explodiu em 1986 e o seu primeiro (e velho) sarcófago que agora está em risco de colapsar e que terá de ser desmantelado.
Os trabalhadores que diariamente protegem o Mundo
Alexander, Serguei e Oleg são três dos que esperam diariamente pelo comboio em Slavutych e todos têm em comum o facto de os pais já terem trabalhado em Chernobyl - Oleg tinha mesmo um ano quando foi retirado de Prypiat, a cidade evacuada depois do desastre.
Serguei espera começar, em breve, a trabalhar no desmantelamento do velho sarcófago que o pai ajudou construir no final da década de 1980.
São eles os novos "liquidadores", nome dado aos milhares de homens e mulheres que depois do maior desastre nuclear minimizaram as consequências para a Europa.
Lucas Hixson, um especialista norte-americano em radiação que depois de alguns anos em Chernobyl criou uma fundação (a Clean Futures Fund) para apoiar quem hoje sofre com o desastre, sublinha que é evidente que as consequências para a saúde ainda se sentem, mesmo que seja impossível ligar de forma precisa algo que uma pessoa fez num determinado dia aos muitos tumores, defeitos de nascimento ou problemas mentais que vão aparecendo no próprio, nos filhos ou nos netos.
No dia em que o entrevistámos Lucas tinha acabado de chegar de uma pequena aldeia, na fronteira da zona de exclusão, onde uma menina tem uma doença congénita grave no coração.
Consequências durante gerações
"Quem fez e ainda hoje faz este trabalho na zona de exclusão de Chernobyl está a proteger o Mundo", sublinha Lucas Hixson, que afirma que muito pouco apoio chega a estas pessoas, sendo que sabemos que os efeitos da radiação se sentem ao longo de gerações.
"Para mim Chernobyl foi algo que fez tão mal ao nosso país...", desabafa Ania Kot, uma jovem de apenas 20 anos mas com discurso de alguém bem adulto e que domina bastante bem a língua portuguesa.
Há 11 anos que Ania vem todos os verões a Portugal num programa social da Liberty Seguros que leva para longe de Chernobyl crianças e adolescentes que vivem em cidades ou vilas perto da zona de exclusão.
O objetivo é que as crianças fiquem algumas semanas fora de um ambiente mais radioativo que o normal que tem, muito provavelmente, a longo prazo, consequências para a saúde.
Além da sua família na Ucrânia, Ania acabou por ganhar uma família em Peniche e pretende viver, de vez, em Portugal, estando a estudar e a trabalhar, em Kiev, para atingir esse objetivo.
Ania Kot estuda turismo e não consegue perceber a publicidade que vê na estrada entre Kiev e Chernobyl para que se visite a zona do desastre nuclear.
Em Chernobyl não existem "turistas", apenas "visitantes"
"Para mim turismo não é Chernobyl", diz Ania, que fica sem palavras quando vê fotos no Instagram de estrangeiros na zona de exclusão a posar como se estivessem em frente a uma praia ou a um monumento.
Chernobyl é hoje a maior atração internacional da Ucrânia e o novo presidente, Volodymyr Zelenski, já apresentou um projeto para trazer ainda mais turistas.
Oleg Nasvit, vice-diretor da agência estatal que gere a zona de exclusão, recusa, contudo, a palavra "turistas".
"Isto não é turismo", explica: "Abrimos esta zona ao que chamamos visitantes. Nós não fazemos publicidade ou tentamos atrair as pessoas. Não divulgamos como uma atração. As pessoas têm o direito de saber o que está a ser feito e conhecer a situação do território. Criámos rotas especiais que são seguras se as pessoas seguirem todas as regras. Se não as cumprirem pode ser perigoso".
Uma semana com o pai na zona de exclusão
Lucas Hixson e Grant Ceffalo, ambos norte-americanos especialistas em radiação, não estão preocupados com as consequências da radiação para os turistas, apesar de existirem sempre alguns riscos, limitados, quando se visita uma zona com estas características.
"Quando levamos pessoas para a zona avisamos que não se foquem apenas na segurança radiológica. Há prédios a cair, pregos, vidros e metal ferrugento no chão. São os perigos mais relevantes. Mas eu não tenho nenhuma preocupação com as visitas. No último outono trouxe o meu pai e passámos, juntos, uma semana na zona de exclusão", conta Lucas.
"A zona de exclusão está cheia de alces, veados, cães, lobos, esquilos... tudo o que possam imaginar. E parece que estão bem... porque os animais não ouviram que estão no fim do fundo", afirma Grant que durante três anos liderou a equipa que fiscalizou a segurança radiológica dos trabalhadores que construíram o novo sarcófago.
"Se forem a Prypiat no verão vão ter problemas em ver coisas porque as árvores são tão grandes e estão tão verdes. Os turistas não estão expostos a nenhum risco significativo", conclui.
Lena, a guia que nos orientou por Chernobyl, sublinha que adora mostrar às pessoas aquilo que se passou aqui porque pode ajudar a perceber os erros do passado e a fazer com o Mundo fique mais seguro.
Roubos e vandalismo
Por entre árvores e edifícios em ruínas da cidade abandonada à força por causa da radiação (mas cada vez mais cheia de turistas), Lena encaminha os estrangeiros, grande parte jovens que descobriram Chernobyl pelos livros da escola, mas sobretudo por uma série de televisão que ficou famosa e de jogos de computador que retratam cenários catastróficos.
Numa velha escola há pelo menos um cenário de máscaras montado de propósito para as fotografias dos turistas e material radioativo que vai desaparecendo como se fosse um souvenir de férias.
"Ainda há dias estava neste sítio uma peça de roupa dos bombeiros" que estiverem em 1986 no combate ao fogo na central nuclear, conta Lena, para desalento dos jovens turistas que a acompanham e que querem medir algo muito radioativo, numa visita constantemente acompanhada pelos "bips bips" dos dosímetros alugados ou comprados pelos visitantes.
"Os objetos radioativos continuam a desaparecer. Não sabemos quem os leva...", explica, dizendo de seguida aos turistas que ainda podem medir a radiação forte no sítio onde estava aquela peça de roupa dos bombeiros.
O turismo está a destruir o coração de Chernobyl?
Para Lucas Hixson, o americano que criou uma fundação para apoiar as pessoas (mas também os cães) que ainda sofrem com o desastre, o turismo está a mudar Chernobyl. Há seis anos que visita regularmente a zona de exclusão e tem mesmo um livre passe para aí entrar sempre que precisa num dos vários projetos que desenvolve.
"Tenho visto nos últimos anos os efeitos do turismo na zona: coisas são roubadas; vidros são partidos; lixo é deixado no chão...", desabafa.
"Não sou contra o turismo na zona de exclusão", afirma Lucas, "mas quero turismo sustentável que permita que as pessoas levem para casa lições importantes sobre aquilo que aconteceu aqui. Sem medidas, em breve não existirá grande Chernobyl para ver. Está a quebrar o coração da zona de exclusão: as memórias que as pessoas deixaram para trás".