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A questão ucraniana permitiu à Rússia efetuar uma "projeção de força" robusta para forçar uma nova ronda de negociações com o ocidente, em particular com os Estados Unidos e a NATO, considera a investigadora Sónia Sénica.
"Esta semana de negociações destina-se a permitir a reorganização de um quadro normativo proposto pela Rússia no âmbito de um mecanismo dual, a ser encetado com os Estados Unidos e depois em particular com a NATO, para poder ditar as regras que para a Rússia são o quadro normativo que configura as suas garantias de segurança", assinalou em declarações à agência Lusa a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).
Na segunda-feira, a vice-secretária de Estado norte-americana, Wendy Sherman, reuniu-se em Genebra com o seu homólogo russo, Serguei Riabkov, com resultados pouco palpáveis. Para hoje está prevista uma reunião NATO-Rússia e para quinta-feira um encontro em Viena da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), também sobre as tensões em torno da Ucrânia.

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Apesar das pretensões de Kiev de aderir à NATO e à União Europeia (UE), Moscovo tem imposto "linhas vermelhas" destinadas a conter ao máximo a expansão e influência do ocidente no espaço pós-soviético que considera a sua "zona de segurança" e onde, em particular, se situa a Ucrânia.
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"A questão da estabilização dos regimes é outras das linhas vermelha e neste caso também remete para a questão da Bielorrússia", disse a investigadora.
Na sua perspetiva, o reconhecimento da Rússia com um estatuto de potência, que deve ser respeitada e que deve ser escutada, constitui um objetivo central da atual estratégia do Kremlin.
"O fator diferenciador é que as condições estão de momento reunidas para que a Rússia possa adotar esse passo para uma posição cimeira, de maior força, uma projeção de força mais robustecida", frisou.

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Diversos analistas ocidentais têm sugerido que o Presidente russo, Vladimir Putin, no poder desde 2000, está a tentar "reescrever os tratados do pós-Guerra Fria" ao optar por um "comportamento crescentemente agressivo" com o objetivo de dominar os seus vizinhos e ameaçar a Europa, em particular após a anexação da península da Crimeia em 2014 e com o apoio aos rebeldes secessionistas pró-russos do leste ucraniano, um conflito que se prolonga há quase oito anos.
No final da Guerra Fria, o antigo bloco soviético empenhou-se numa série de acordos diplomáticos que incluíam a perspetiva de cooperação, democracia e respeito pelos Estados que se "autonomizaram" de Moscovo, recordam.
Mas, adiantam, estes acordos estão agora comprometidos pela determinação do "autocrático" Presidente Putin em reforçar a influência do Kremlin sob os seus "vizinhos democráticos" e quando se vaticina uma nova arquitetura de segurança europeia.
Na linha destes argumentos, Putin está a renunciar aos compromissos do seu país, como o Memorando de Budapeste de 1994, no qual a Ucrânia aceitou prescindir do seu arsenal nuclear em troca de promessas de segurança fornecidas pela Rússia e os outros participantes -- incluindo os Estados Unidos -- e Moscovo se comprometeu a respeitar a independência, soberania e fronteiras da Ucrânia.

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Ou o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria entre a Rússia e Ucrânia firmado em 1977, ainda durante o governo do Presidente russo Boris Ieltsin, que incluía o respeito pela integridade territorial e soberania mútuas. Kiev abandonou-o após a anexação da Crimeia pela Rússia.
Pelo contrário, os decisores russos denunciam uma "inaceitável ingerência ocidental" nos assuntos internos dos Estados, ao ponto de provocarem o derrube de governos legítimos.
Para o Kremlin, a Rússia é a parte perseguida, considerando que os Estados Unidos falharam na sua promessa de que a NATO não se expandiria em direção à Europa de leste, um acordo firmado durante as negociações de 1990 entre o ocidente e a União Soviética sobre a reunificação alemã. Assim, a Rússia foi forçada a prevenir-se, como medida de autodefesa, face ao avanço da Aliança em direção a leste.
Desta forma, muitos analistas não hesitaram em utilizar a expressão "doutrina Putin" para descrever a política externa da Rússia desde 2000. Na perspetiva do líder do Kremlin, a desestabilização de regimes políticos e de estruturas do Estado conduz ao caos, aos extremismos, aos nacionalismos radicais e ao terrorismo.
Tem sido ainda notado que o elemento desencadeador que conduziu a Rússia a alterar as suas políticas em relação à integridade territorial e intangibilidade das fronteiras dos Estados na sua esfera de influência foi o reconhecimento internacional da independência do Kosovo em 2008, declarada de forma unilateral.

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Uma abordagem que o Presidente russo explicitou no seu discurso de setembro de 2015 perante a Assembleia geral da ONU, quando questionou "por que motivo os habitantes da Crimeia não têm o mesmo direito que os kosovares do Kosovo, que dispõem do direito à autodenominação", uma decisão apoiada pelo ocidente que implicou uma nova alteração das fronteiras balcânicas.
A necessidade de a Rússia ser considerada e respeitada, em particular no quadro do sistema internacional, sempre constituiu uma ambição por parte da política externa russa e da sua liderança, argumenta a investigadora Sónia Sénica.
"Este é um momento em que as condições estão reunidas, em que a parte russa considera que os Estados Unidos estão numa posição um pouco mais fragilizada, porque neste momento tem um grande competidor internacional que é a China", precisou.
"E está ainda a tentar restabelecer a sua linha de parcerias com os parceiros europeus, após a administração de Donald Trump, e ainda não totalmente robustecida, nem a nível da NATO ou dos relacionamentos bilaterais", adiantou.
Neste contexto geopolítico, a investigadora define a situação da Ucrânia como um "caso paradigmático", pela sua opção pró-ocidental em política externa, por pretender aderir à UE e NATO, mas ainda não reunir de forma objetiva as condições necessárias para essa adesão.

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"Torna-se assim num objeto de contenda entre as duas partes, em particular entre a NATO e os EUA e a Rússia", salientou.
Numa abordagem ao atual processo negocial, admitiu um "eventual desanuviamento com os Estados Unidos, algumas eventuais concessões", mas com a Ucrânia continuando a aguardar por uma adesão à aliança militar ocidental.
"Não penso que esta linha vermelha de não alargamento à Ucrânia em particular consiga ser contornada. Isso deixará a Ucrânia numa posição de permanente fragilidade, porque as suas pretensões são umas, e aquilo que está em cima da mesa é uma outra possibilidade", sublinhou.
E apesar das promessas ocidentais de que Kiev não será "abandonada", na atual ronda de negociações a três fases a própria Ucrânia está praticamente ausente.
"Foi retirada da mesa negocial, é um Estado soberano, é o seu futuro que está em jogo, em negociação, e ainda não está garantido, mas estará apenas na reunião com a NATO, com um representante ucraniano [e no encontro da OSCE]. De qualquer forma será sempre à margem dos dois grandes e principais interlocutores", concluiu.

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