James Hannam
Entrevista com James Hannam

Cristãos perseguiam cientistas? "A igreja pensava que o mundo era criação de Deus e estudá-lo era um dever"

Houve tempos, na Idade Média, em que igreja e ciência floresceram, tocando-se, desafiando até o conceito de "inconciliáveis". Depois, seguiram caminhos diferentes, tendo o julgamento de Galileu contribuído para o afastamento e a desilusão mútuas. Este é apenas um dos factos apresentados por James Hannam, em "A Origem da Ciência", o livro que chegou, em versão traduzida, este ano, às livrarias portuguesas.

Na obra, o licenciado em Física na Universidade de Oxford e doutorado em História e Filosofia da Ciência desconstrói os mitos que envolvem a Idade Média num véu de misticismo e superstição, apontando para este período quando o que se pretende é encontrar a génese do que é a ciência moderna. O autor britânico aceitou conversar com a TSF e até adiantou o tema do próximo livro: onde surgiu a ideia de que a Terra é redonda. Uma pista: não foi onde nem quando se pensava, claro está.

Porque escolheu estudar História da Ciência? O que sentia que lhe faltava saber que outras áreas não lhe pudessem elucidar? É uma área importante do conhecimento para compreender o quê?

O que mais gosto de ver desenvolvido na História da Ciência é uma maior consideração pela ciência fora da Europa. Tenho investigado cada vez mais a ciência, não só do mundo muçulmano, mas também da China e da Índia, e até de locais como as ilhas do Pacífico. Cada cultura desenvolve a sua própria ciência e a sua própria forma de compreenderem o mundo.

Como historiador, quando leio sobre como as pessoas, no passado, na China Antiga ou na Coreia, compreendiam o mundo, isso ensina-me muito sobre a cultura chinesa e sobre a forma como a população chinesa se vê a si mesma.

Por isso, uma coisa que a História da Ciência pode certamente fazer é olhar com mais atenção para fora da Europa, para nos ajudar a ver como as pessoas no resto do mundo se veem a si mesmas e à natureza.

Para quem tem um doutoramento em História da Ciência, tempos como este que hoje se vive devem ser interessantes de analisar... Considera que tem uma visão privilegiada porque o consegue ver com distanciamento, olhando para a História?

Penso que os historiadores, por vezes, sentem que a História pode ajudar-nos a compreender o presente. Essa é uma parte muito importante do estudo da História, mas penso que também é importante reconhecer que sou um historiador da Idade Média, e as coisas na Idade Média eram seguramente muito diferentes da realidade atual, no que diz respeito à História da Ciência. Por isso, é importante não fazer muitos paralelismos entre aqueles tempos e este.

O que considerou mais surpreendente neste período de dois anos desde o início da pandemia?

Para mim, o mais importante foi como tão rapidamente os cientistas conseguiram desenvolver vacinas contra o coronavírus. No passado, a ciência demorava muito mais tempo a chegar às vacinas, e ainda mais a testá-las. Desta vez... Bem, eu fui vacinado menos de um ano depois de ouvir falar da Covid-19. Por isso, é realmente incrível o quão rapidamente isso aconteceu, e deveu-se sobretudo aos avanços no conhecimento da genética. Conseguiram sequenciar o código genético do vírus, de uma forma muito rápida.

Isso foi o mais impressionante entre tudo aquilo que aconteceu.

Outra coisa que me surpreende muito é nós ainda não sabermos de onde o vírus surgiu. Penso que isso é surpreendente porque, no caso de pandemias anteriores, foi possível localizar, pelo menos, o animal em que originalmente o vírus apareceu, mesmo que não soubéssemos exatamente como tal aconteceu. Neste caso, nem conseguimos falar muito disso.

Aconteceu algo revolucionário do ponto de vista científico durante esta pandemia?

Aquilo que fomos capazes de fazer, no caso das vacinas, foi absolutamente incrível. O novo tipo de vacinas que a Pfizer desenvolveu tem potencial para ser utilizado para outras doenças. Potencialmente, não só para vírus, mas também para doenças como cancro. Por isso, podemos olhar para este avanço como uma descoberta muito significativa. Tenho a certeza de que isto resultará em prémios Nobel.

Alguma invenção científica da Idade Média foi particularmente útil durante esta crise sanitária?

É uma pergunta interessante... Houve muitos avanços tecnológicos durante a Idade Média, e provavelmente o mais significativo foi a tecnologia da impressão, que por acaso foi inventada no extremo Oriente. Foi depois aperfeiçoado na Alemanha, a meio do século XV. Penso que isso marca o início daquilo a que chamamos a produção de conhecimento para as massas. Desde essa altura, o conhecimento e a aprendizagem tornaram-se cada vez mais acessíveis. Antes da impressão, se quiséssemos aprender alguma coisa, teríamos de encomendar um livro, o que seria extremamente dispendioso, porque teria de ser um manuscrito.

Quando a impressão foi inventada, os livros tornaram-se muito mais baratos, e as pessoas passaram a ler de uma forma muito mais facilitada; começaram a insistir em ter livros na sua própria língua, por exemplo, em vez de serem em latim. Essa tendência continuou até ao presente. À medida que a impressão foi ficando cada vez mais barata, inventámos a rádio, inventámos a televisão. Claro que hoje temos a internet e temos acesso a tanto conhecimento, na ponta dos nossos dedos, que, sempre que queiramos saber algo, podemos apenas pegar no nosso telemóvel, e ficaremos a saber a resposta quase imediatamente.

Podemos encontrar a semente de tudo isto na Idade Média.

Após a pandemia da Idade Média, as pessoas tendencialmente aproximaram-se ou distanciaram-se da ciência?

A pandemia da Idade Média foi a Peste Negra, do século XIV, que ceifou entre um terço e metade da população europeia, e um número semelhante de pessoas na Ásia e em África também. E a verdade é que, naquele tempo, as pessoas não sabiam o que a pandemia fazia, não sabiam como a curar. Havia muito pouco que a ciência e a medicina daquele tempo fossem capazes de fazer.

Como resultado disso, penso que é verdade que as pessoas se voltaram para outras fontes de conforto, já que não tinham a cura. Viraram-se para a religião, para a magia, porque basicamente não tinham outra escolha.

A ciência e a religião nem sempre estiveram tão distantes. De que forma evoluiu essa relação, se comparar a Idade Média com a atualidade?

Certamente na Idade Média o cristianismo e a ciência eram realmente muito próximos e ligados. A igreja católica foi responsável por iniciar as universidades, que era onde a ciência na Idade Média era desenvolvida. Era necessário ter bases em Física e em Filosofia para alguém se tornar teólogo na Universidade. Eles pensavam que a ciência era o estudo da criação de Deus, e, consequentemente, a base para a religião. Era uma disciplina importante para o estudo da religião.

Na atualidade existe um fosso entre as duas?

Não penso que haja um grande conflito, hoje, entre a ciência e a religião. É certamente verdade que a relação entre as duas mudou. Na Idade Média, o cristianismo era o grande protagonista na relação entre a ciência e a religião. Hoje em dia, a maioria das pessoas diria a ciência é a mais poderosa das forças culturais. Mas não as vejo em conflito. Penso que há certamente casos de conflito, há pessoas religiosas que rejeitam a teoria da evolução, mas a grande maioria dos cristãos, muçulmanos e pessoas de outras religiões no mundo reconhece a ciência e sabe o que é capaz de fazer.

Acredito que é bastante justo dizer que há algo além na humanidade, que há mais moralidade do que apenas a ciência, por isso é importante que a ciência seja mantida ao serviço da humanidade, em vez de a ciência dizer à humanidade o que tem de ser feito.

A religião ainda tem interesse em investir na ciência?

O Observatório do Vaticano ainda está em atividade. O observatório, fora de Roma, ainda está ao abrigo da igreja católica, e muitos cientistas importantes trabalharam lá. Penso que a igreja despende menos dinheiro lá, e muito desse dinheiro é para manter os edifícios. Contudo, a igreja ainda investe em ciência e considera que compreender a ciência é algo de perfeitamente legítimo para uma pessoa religiosa.

É um historiador, escreveu sobre "A Origem da Ciência", mas, sendo este tempo de pandemia tão bem documentado, sente vontade de escrever algo histórico sobre ele, que fique na posteridade, para o seu estudo?

O grande desafio de escrever sobre o presente é que hoje nós pensamos que temos mais informação, mas há muita coisa que de facto não sabemos. Não sabemos e não temos acesso... Há vários aspetos que têm sido ocultados, especialmente na China, relativos à pandemia de Covid-19. Ou seja, não temos acesso a informação que nos poderia dizer exatamente como tudo começou. O Governo toma as suas decisões e não publica necessariamente toda a informação que recolhe até muito depois do acontecimento. A vantagem de ser algo histórico é olhar para um passado e ter acesso a coisas que no momento são secretas, mas que se vão tornando mais acessíveis para os historiadores ao longo do tempo.

Por isso, penso que é muito diferente escrever sobre o presente.

Estou interessado no que a História tem para nos contar sobre a atualidade, mas estou interessado de uma forma em que as pessoas têm acesso à verdade e não apenas à ciência que corrobora as suas crenças. Por causa da autoridade que a ciência tem, as pessoas querem que a ciência esteja do seu lado, e penso que isso não mudou desde há séculos.

Mesmo na atualidade assistimos a grandes discussões em torno dos movimentos ambientais, em torno da evolução, das questões do sexo e da identidade de género. As pessoas usam a ciência para reforçar aquilo que já pensam. Não estão a tentar fazer uso da ciência para obterem respostas, mas para provar o que querem que seja verdade. Isso é algo que vemos com mais clareza se olharmos para a História.

Acredita que os ateus poderiam ser menos críticos da religião se soubessem o papel que a igreja católica desempenhou na promoção da ciência durante a Idade Média?

As pessoas deveriam valorizar que, apesar de a igreja católica ter feito coisas más, a igreja também fez coisas muito boas: ajudar ao desenvolvimento da ciência na Idade Média e na idade moderna também foi uma das grandes contribuições que fez. Claro que podemos falar da ciência conseguida pela Ordem dos Jesuítas no século XVII e XVIII, quando cerca de um terço de todos os documentos científicos sobre eletricidade e magnetismo eram redigidos pela Ordem dos Jesuítas. Por isso, penso que seria útil para as pessoas não olhar para isto a preto e branco, porque a contribuição da religião para a História humana não tem de ser automaticamente boa ou automaticamente má.

No entanto, diria, em defesa dos ateus, ou dos que não acreditam em Deus, que só porque o cristianismo teve um impacto positivo na Humanidade, isso não significa que o mundo seja mais bem explicado dessa forma.

A igreja católica abandonou as suas pretensões de provar cientificamente a existência de Deus?

Penso que a igreja católica, em particular, não tem sido muito veemente nem tem estado muito envolvida nos debates científicos, nas últimas décadas. Acredito que isso se deve provavelmente ao reconhecimento de que cometeu erros quanto a isso no passado, sendo o mais notável o julgamento de Galileu, por defender que a Terra girava em torno do Sol. Penso que, por isso, a igreja católica tem algum nervosismo relativamente a envolver-se em debates científicos, mesmo continuando a apoiar a ciência e o trabalho na área da astronomia.

Há algum nervosismo. Acredito que, se quisermos olhar para os pensadores cristãos que estão interessados no uso contemporâneo que a ciência pode ter, no sentido de demonstrar que o universo foi criado por Deus, temos de olhar para a igreja norte-americana e para a igreja evangélica.

Hoje vemos ressurgir muitas teorias que com o tempo foram devidamente rebatidas, vemos inclusivamente surgirem grupos de terraplanistas. mitos que se estabeleceram na Idade Média e que permanecem até hoje?

Há algumas coisas em que as pessoas acreditam acerca da Idade Média que são bastante erradas. Penso que muita gente, pelo menos aqui, no Reino Unido e nos EstadosUnidos, acredita que as pessoas na Idade Média diziam que a Terra era plana, e que a igreja encorajava as pessoas a acreditar nisso, mas não é verdade. Na Idade Média, as pessoas com estudos estavam completamente cientes do formato da Terra, de que é uma esfera. Não estavam preocupados com a possibilidade de caírem nas extremidades da Terra, nem nada do género.

O debate em torno do formato da Terra aconteceu na Europa, mas muito mais cedo do que aquilo que julgamos.

Esse é provavelmente o mito mais comum acerca da relação entre a ciência e a religião. Mas há outros... As pessoas imaginam que a igreja andava a perseguir os cientistas, mas isso não acontecia quase nunca. Ninguém foi queimado por ter pensamento científico. Por isso, não se pode dizer que a igreja estava a tentar prevenir qualquer tipo de descoberta científica.

A igreja encorajava os cientistas a analisarem o mundo natural, porque pensava que ele tinha sido criado por Deus, e que, por isso, estudá-lo era um dever religioso.

É importante limpar a imagem da igreja católica, pelo menos no que diz respeito à relação com a ciência? Acredita que isso pode ter algum impacto positivo na realidade de hoje?

Penso que a própria igreja acredita que, se soprasse a sua própria corneta, por assim dizer, não acreditariam nela. Mas é importante que os historiadores, quando fazem o seu trabalho, sejam honestos, tanto acerca do bom, como do mau. Não devem escolher focar-se na Idade Média para dizer quão errada estava a igreja ou que a igreja estava a impedir o avanço da ciência, ou para dizer que as pessoas eram ignorantes ou supersticiosas. Penso que isso não é justo para as pessoas que tiveram de viver na Idade Média.

Quais são as teorias da conspiração que prevalecem no tempo? Se olhar para os dias de hoje, acredita que algumas das que estão a ser formuladas estão a ganhar raízes de futuro?

Como, por exemplo, dizerem que as torres gémeas caíram por um plano secreto da CIA?

... Como negar que a pandemia existe, que o aquecimento global é uma realidade...

Acredito que a maior parte das teorias da conspiração é resultado do funcionamento da política daquele tempo. As pessoas acreditam nelas porque estão preocupadas com o que o Governo diz ou está a fazer ou está a encobrir. À medida que as políticas se alteram e o ambiente muda, as pessoas avançam para novas teorias, porque normalmente são crenças do seu tempo e do seu espaço.

Havia muitas ideias estranhas na Idade Média sobre como o mundo iria chegar ao fim, e todas desapareceram com o tempo, gradualmente, porque o mundo não chegava ao fim, mas também porque as prioridades das pessoas mudaram.

Mas hoje continua a haver negacionistas do Holocausto. Pode haver negacionistas desta pandemia no futuro, por exemplo?

Certamente é possível. É interessante, porque o negacionismo do Holocausto não começou até ter passado muito tempo desde a Segunda Guerra Mundial. Ninguém negava o Holocausto em 1948. Foi mais tarde que o antissemitismo começou a usar o negacionismo do Holocausto, e penso que isso se deve e está mais relacionado com a política contemporânea do que com o que as pessoas pensam sobre o que aconteceu na Grande Guerra. Por isso, as causas para a negação do Holocausto são causas relacionadas com o presente e não do passado.

Por isso, se as pessoas, no futuro, tiverem razões políticas para formularem a teoria da conspiração de que a pandemia não aconteceu ou de que foi um grande esquema, isso será um resultado do que está a acontecer naquele tempo e não do que acontece nos nossos tempos.

Na atualidade vê o Ocidente tão aberto ao conhecimento e à ciência produzida no Oriente, como era no passado?

Provavelmente somos. Acredito que ainda somos bastante interessados naquilo que acontece no mundo islâmico. O que acontece é que diferentes partes do mundo tornaram-se mais ou menos poderosas ou ricas, comparativamente com outras. As influências e a sua propagação vão mudando. Na Idade Média, nos anos 1000, o Oriente era muito mais rico, muito mais bem-sucedido e poderoso do que a Europa, por isso era muito natural que a Europa fosse tão influenciada e recebesse tantas ideias do Médio Oriente.

Na maior parte do século XX, os Estados Unidos foram o país mais poderoso e influente, porque tornaram-se muito bem-sucedidos naquela época. Talvez no século XXI nos aperceberemos de que vamos ser mais e mais influenciados pelo que está a acontecer no Oriente, como na China, na Coeia... A minha filha é uma grande fã de música pop coreana. Por isso, é muito provável que o Oriente volte a ser a mais influente parte do mundo, dentro de poucos anos.

Esta pandemia fez com que o mundo olhasse para a China como menos desenvolvida cientificamente, mesmo que isso não seja verdade?

A ciência chinesa - a ciência chinesa moderna - é muito desenvolvida, na verdade. Cresceu muito rapidamente ao longo das últimas décadas. Penso que há perguntas abertas acerca da relação entre a ciência chinesa e a origem desta pandemia em particular. Mas penso que a maior parte da ciência desenvolvida hoje na China é fruto da que é desenvolvida no Ocidente.

Quando os chineses pensam no seu mundo, a sua visão é muito colorida por aquilo a que chamariam de tradicional. É um híbrido entre a ciência ancestral chinesa e a ciência ocidental moderna, o que é uma combinação muito interessante.

Quanto à pandemia, acredito que tem havido um encobrimento da sua origem na China. Não forneceram a informação de que precisávamos para compreender de onde veio, e isso é muito lamentável, porque temos de prevenir que volte a acontecer. O problema na China não é a população, mas o facto de terem um Governo comunista. Não é uma democracia nem um país liberal, infelizmente.

Qual é o seu interesse maior neste momento e que o está a fascinar em termos de investigação? Qual é o tema do seu próximo livro?

Já quase terminei um livro sobre a história da ideia do globo, sobre a história de como foi descoberto que a Terra era redonda, no Antigo Egito, e de como essa ideia se espalhou para todo o mundo, através da Europa, Médio Oriente e Índia, e logo a seguir a China, até ao presente. Espero que esse livro seja publicado, pelo menos em inglês, no decurso do próximo ano ou dos próximos dois anos.

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