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Cem anos de humilhação. É um capítulo com muita História que os chineses ainda não viraram, e agora aguardam o momento e as oportunidades certas para uma reviravolta. "André Malraux, em 'Condição Humana', conta o que se passava numa concessão inglesa. Havia uma placa à entrada da concessão que dizia: 'Proibida a entrada a chineses e a cães.'" As concessões eram lugares, dentro de Xangai, Cantão ou Pequim, "dados a países externos, e, dentro dessas concessões, a soberania e a legislação eram iguais às dos países".
"A China foi muito humilhada, principalmente no século XIX. Era uma potência defensiva, com a ocupação de Hong Kong", conta à TSF o general Garcia Leandro, antigo governador de Macau e especialista em questões estratégicas.
Não é, por isso, de estranhar, para o general, que, em 2021, no centenário do Partido Comunista Chinês, tenha sido referida a "humilhação de cem anos", tendo por base a narrativa de que dez potências mundiais "exploraram a China" (a Rússia, o Japão, os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Dinamarca, a Itália...)
"Sofreram essa humilhação, engoliram, engoliram, engoliram, engoliram, e agora chegou a altura de eles dizerem 'agora também é a nossa vez'", analisa o general Garcia Leandro, numa altura em que o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros inicia uma viagem a quatro países da costa leste africana. Trata-se de uma viagem de grande importância estratégica para Pequim.
Ouça os destaques da entrevista.
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O antigo governador de Macau considera que esta visita é mais um passo nas ambições da China na definição de uma nova ordem mundial, e que vem reafirmar um desejo com raízes históricas muito profundas. "O projeto da China é um projeto global: da China para fora, porque verdadeiramente a China foi um país com muita importância, e é o país com a maior população do mundo", sustenta Garcia Leandro.
Um projeto "global" cujo alcance é inegável, salienta o especialista em questões estratégicas. Com uma população de 1 bilião e 400 milhões de pessoas, "nunca nenhum Governo governou tanta gente como a China".
Esta viagem do governante chinês sela mais um passo para "uma nova ordem mundial, em que, em vez de ser a Europa, os Estados Unidos ou a Rússia a ter mais poder, seria a China".
"Uma Faixa, Uma Rota" é a ligação da China ao mundo, mas sobretudo à Europa, através de quatro vias terrestres e duas marítimas. "O Atlântico Sul não tem uma grande influência norte-americana, e a China quer aproveitar esses buracos." A ideia é firmar acordos de parceria, sem esquecer que a base naval no Djibuti, instalada em 2017 para garantir apoio logístico aos contingentes chineses que atuam em missões das Nações Unidas em África e também para apoio às operações contra a pirataria no Golfo de Aden e na costa da Somália, é um ativo valioso nesta luta pela influência. Recentemente, foi divulgada a intenção chinesa de instalar uma nova base, desta vez na costa atlântica do continente africano.
Garcia Leandro acredita que o momento apresenta grandes oportunidades para o Estado asiático que um dia construiu um império. "Estamos a ver os Estados Unidos cheios de dificuldades. Parece que aquele país ainda não acabou a guerra civil. Estão numa fase que não é ascensional, a China está numa fase ascensional."
"A China ainda está muito atrasada em termos de qualidade de vida", admite o antigo governador de Macau, que vê, ainda assim e sem sombra de dúvidas, o país a alcançar um aumento do PIB mundial, em 2040 ou 2050 - outros especialistas até apontam para mais cedo -, que o levará a um posto de liderança económica.
* e Catarina Maldonado Vasconcelos