Abbas Gallyamov pensa que Putin subestimou Zelensky. Em declarações à TSF, defende também que a Rússia está na atual situação por causa de erros de avaliação.
Abbas Gallyamov foi durante três anos o autor dos discursos de Vladimir Putin e, por isso, conhece bem o Presidente. Em 2018, apercebendo-se do rumo que o país estava a tomar, decidiu enviar a família para Israel. Passados dois anos juntou-se a ela. O cientista político russo tornou-se um crítico de Moscovo. Com a pressão a aumentar no Kremlin, por causa do avanço das tropas ucranianas, a TSF quis conhecer a análise que faz da situação.
Desde o inicio da guerra, temos ouvido muitas vezes dizer que no ocidente ninguém consegue saber como e por que razão Putin toma as decisões. Porque é que isso acontece?
Acho que não há qualquer dificuldade em percebê-lo. Eles compreendem-no, sabem que está a agir mal e que é uma má pessoa. Não é uma questão de compreensão. É que eles consideram as atitudes dele inapropriadas e inaceitáveis. Neste momento, é óbvio que ele é um tirano, um ditador, tudo o que lhe interessa é manter o poder que está sob ameaça. Na atual situação não é difícil percebê-lo.
Pensa que, quando partiu para esta guerra, ele subestimou a determinação do povo ucraniano e, em sentido contrário, sobrestimou as capacidades das forças armadas russas?
Absolutamente. Ele caiu na armadilha da própria propaganda. Durante muito tempo tentou convencer os russos de que a Ucrânia é um estado que não existe e que a Rússia é muito poderosa. Tanto repetiu que acabou por acreditar nisso. Só que a Ucrânia acabou por ser muito mais forte do que ele pensava.
As avaliações de Putin basearam-se principalmente no que aconteceu quando foi a anexação da Crimeia e a Ucrânia não reagiu. O erro dele foi ver isso como uma característica do país. Não percebeu que não era isso, que se tratava de uma particularidade daquele momento da história, foi depois da revolução. O estado colapsou, um novo estava a ser construído e, na realidade, não havia quem pudesse resistir. As pessoas estavam desorganizadas, todos os políticos estavam ocupados a dividir a autoridade em Kiev, não tinham forças para reagir ao que se passava na Crimeia que é uma zona periférica. É importante, mas é apenas mais região. Putin interpretou isso como uma característica do país e não percebeu que a situação mudou desde 2014, que o novo governo é totalmente legítimo.
Depois da vitória do Zelensky, que ganhou de forma totalmente honesta, não houve qualquer fraude. Os ucranianos começaram realmente a sentir que este era o país deles. Há muitas coisas de que eles não gostam como, por exemplo, a corrupção e, na realidade, antes da guerra a popularidade do presidente era muito baixa. Provavelmente não seria reeleito, mas mesmo assim eles sentiam que tinham uma nação. Bastou Zelensky não fugir e pedir-lhes que defendessem o país. Eles estavam prontos, porque o Estado é forte, é legítimo. É uma questão de legitimidade e Putin não o entendeu.
O segundo erro dele foi subestimar o Zelensky. Erro dele e dos serviços de informação, de toda a equipa. Eles pensaram que Zelensky era como eles que são todos homens de negócios envolvidos com corrupção e dinheiro, incluindo Putin. Todos teriam fugido do país se estivessem na mesma situação que o Presidente ucraniano e, por isso, tinham a certeza absoluta que era isso que ele ia fazer. Estavam certos de que o país ficava desmoralizado sem o comandante supremo e que se rendia depressa como foi com a Crimeia. Houve uma má interpretação psicológica. Não perceberam que ele é totalmente diferente deles. Talvez ele seja corrupto, talvez. Se calhar tem interesses financeiros, não sabemos, mas de certeza que essa não é a principal característica dele.
Ele é um ator. O que Putin fez foi dar um palco a este ator. Transformou-o numa superestrela e deu-lhe o mundo como audiência. Um bom ator nunca recusaria este papel. É o melhor papel da vida dele. É dramático como as antigas tragédias do teatro. É um papel com o qual um ator só pode sonhar. Ele aproveitou, assumiu o papel, está a vivê-lo e nesta altura já não é um papel, é a vida dele. Será para sempre recordado assim. Realmente foi Putin quem lhe deu esta hipótese, quem lhe permitiu fazer um discurso brilhante perante o senado e congresso dos Estados Unidos. Ele disse-lhes que não precisava de fugir, de ser retirado, só precisava de armas. Estes foram os dois grandes erros do Kremlin: subestimar o estado, a legitimidade do estado e a pessoa que Zelensky é. Por isso é que estamos nesta situação. Temos uma nação unida que está a oferecer grande resistência.
Quando Putin anexou a Crimeia, a reação do ocidente foi fraca. Putin foi agora surpreendido pela unidade e rápida reação dos países ocidentais?
É claro. Terceiro erro. Primeiro ele pensou que teria uma vitória rápida e total em apenas alguns dias, antes do ocidente poder reagir. Putin e a generalidade dos políticos russos desprezam a democracia, pensam que impede a ação. Pensaram que, enquanto agiam, enquanto ocupavam Kiev e derrotavam o exército ucraniano, os líderes ocidentais estariam a iniciar negociações, ouviriam os parlamentos e antes de estarem prontos para agir tudo estaria acabado. Zelensky fugia, colocavam um novo presidente, talvez Víktor Ianukóvytch (antigo presidente afastado em 2014), e quando tudo estivesse acabado, o ocidente já não iria fazer muito. Já não interessava, a Rússia tinha ganho. Eles queriam repetir a história da Crimeia, mas numa escala maior. Não tenho dúvidas que se naquele momento Putin soubesse que a Ucrânia ia resistir como o está a fazer e que o ocidente seria capaz de se unir e impor sanções tão fortes que afetariam gravemente a economia russa, ele nunca se teria atrevido a fazer o que fez.
Putin está agora sob grande pressão. Até onde pensa que ele poderá ir para ganhar esta guerra?
Até agora tem feito tudo, só lhe falta usar armas nucleares. Penso que ele está tão desmoralizado que é incapaz de mudar a situação de forma drástica, ele não consegue reunir as forças necessárias para ordenar um ataque nuclear. Isso não quer dizer que se sentir que perdeu não o faça. Infelizmente não posso afastar totalmente essa possibilidade porque ele vai perder a guerra, é só uma questão de tempo. Nesse momento, quando perceber que foi derrotado, pode optar por usar armas nucleares apesar de ser muito arriscado. Na verdade, sabemos pouco sobre a coragem dele. Não sabemos se vai conseguir, porque usar essas armas é muito perigoso e acarreta um risco pessoal.
Talvez ele não tenha força para o fazer. Na maior parte do tempo parece que não o conseguirá fazer. Vai manter a estratégia porque é incapaz de a mudar. Vai continuar até ter de parar e, nessa altura, o sistema vai desmoronar-se. Parece que vai ser assim, mas, como já disse, não descarto a hipótese de no último minuto ele ganhar forças suficientes para realizar um ataque nuclear. Se perder a guerra, perde a legitimidade e o poder. Se perder o poder, isso quer dizer que vai para a prisão por todos os crimes em que se envolveu. Criou tantos inimigos que não pode ter a esperança de que o deixem morrer na cama dele.
Se no último minuto Putin optar pelo nuclear, há alguém no Kremlin que lhe possa dizer que é uma loucura, é muito perigoso. Há alguém com essa coragem?
As elites russas continuam a ter medo dele, mas estão totalmente insatisfeitas. Até ao inicio da guerra, os interesses de todos coincidiam. Ele era visto como um fator de estabilidade e todos beneficiavam com isso. Agora Putin é a maior causa de instabilidade e querem que se vá embora porque, pode provocar o colapso total do sistema. Eles não querem isso, mas não têm coragem para agir, todos têm medo dele. Depois de 22 anos com ele no poder, habituaram-se a ver a forma brutal como trata os opositores, aqueles que considera traidores. Têm medo, mas percebem que se não fizerem algo tudo vai ruir.
Todos estão à espera que alguém dê o primeiro passo. Depois disso, a situação pode desenvolver-se muito rapidamente. O facto de terem medo não significa que ele vá ficar no poder para sempre, porque o regime está cada vez mais fraco. Os ucranianos estão a avançar, estão a expulsar os russos dos territórios que ocuparam. Em algum momento ou ele cai ou os que lhe estão mais próximo terão de agir. Quando Putin estiver mais fraco será mais fácil eles proporem um sucessor. Se o fizessem agora, seria visto como uma tentativa de o afastar, de lhe tirar o poder. Seria um ato pouco amigável. Já quando o sistema estiver prestes a ruir, a mesma ação já não será um ato contra o Putin, mas a oferta de uma solução para o problema.
É claro que muito depende da situação no campo de batalha. Se os ucranianos impuserem uma derrota como a de Kharkiv, em setembro, tudo será acelerado, mas se os russos conseguirem estabilizar a frente, Putin vai sobreviver pelo menos até ao fim do inverno, porque ele tem um novo projeto. É incapaz de ganhar a guerra no terreno, mas tem um novo projeto, ele diz: "Vou congelar a Europa até à morte. A Europa virá a rastejar até mim este inverno. Depois disso seremos os vencedores, porque eles vão deixar de dar armas à Ucrânia e Kiev terá de começar a negociar e aceitar algumas das minhas condições."
É isso que ele quer e foi isso que prometeu às elites russas e ao povo. Então, até março todos vão esperar pelos resultados, mas quando perceberem que eles não existem, que Putin falhou, a legitimidade dele vai baixar rapidamente. Eles vão perceber que o plano falhou e que todo o sistema está prestes a ceder. Nesse momento, são capazes de ir ter com ele com a sugestão de encontrar um sucessor. Nessa altura fica a faltar um ano para as eleições presidenciais e será o momento certo para discutir isso.
Se ele escolher o sucessor, isso quer dizer que o regime sobreviverá?
Não será fácil, mas é possível. Terá de haver mudanças. Deverá ser um processo de democratização como o que Portugal atravessou depois da queda do regime de Salazar e Caetano ou como em Espanha com a queda de Franco. Pode ser um processo frágil, lento mas que vai mudar a natureza do regime. Não será um colapso do sistema como em 1917 ou 1991 com o fim da União Soviética, serão reformas controladas e não uma revolução. É claro que vai requerer muita habilidade dos políticos e o sucessor deverá ser a pessoa certa. Não deve ser da velha guarda como Putin. Nesse caso, seria em vão, porque o sistema colapsava. Tem de ser alguém mais liberal, alguém cujas mãos não estão manchadas com sangue, que não se envolveu nesta guerra. Alguém não ligado aos militares. Pode ser alguém como o presidente da câmara de Moscovo ou o atual primeiro-ministro.
Depois do ataque recente contra a ponte que liga a Crimeia à Rússia, os russos começaram a atacar as cidades com mais intensidade. Pensa que, por essa ponte ser tão importante para Putin, estamos a assistir a uma vingança pessoal?
Absolutamente. Não se pode subestimar a importância desta ponte, a importância simbólica e politica. Não estou a falar da importância a nível militar, que é muita, mas este foi o maior feito dele em 22 anos. É um símbolo de tudo o que alcançou e os ucranianos atacaram isso. É uma grande derrota política. Todos os russos ficaram chocados e, de imediato, se viraram para ele para verem como reagia. Putin não podia ignorar ou evitar uma reação. O que é que ele podia fazer? O nuclear era uma alternativa, mas está escrito que só pode ser utilizado no caso de uma ameaça existencial contra o país. Pessoalmente, a ponte é muito importante para ele, mas não é assim tão importante para a Rússia. É uma ponte regional. Uma ponte grande, mas, mesmo assim, apenas uma das pontes que existem nas 22 regiões. Seria difícil mobilizar a população, os políticos e especialmente os militares para começar uma guerra nuclear por causa da ponte. Não é uma ameaça existencial. Assim não podia usar armas nucleares e a melhor resposta seria derrotar o exército ucraniano, de alguma forma dar a volta à situação e começar a avançar no terreno. Também não pode fazer isso, porque o exército russo não é capaz e assim restou-lhe intensificar os ataques contra as cidades. Claro que esta é uma resposta muito fraca porque não tem nada de novo. Todas as noites, eles atacam cidades, só que, desta vez, foi contra muitas ao mesmo tempo. Foi uma resposta fraca que não revelou força, mas sim fraqueza. Mostrou a incapacidade de Putin em fazer algo diferente.