Maryam, mulher coragem em Portugal nos seis meses dos talibãs no Afeganistão

Afegã de 35 anos, jornalista, está em Portugal como refugiada. Por denunciar as violações cometidas pelos talibãs teve de sair do país onde não a deixaram crescer. Entrevista com uma mulher coragem.

Refugiada em Portugal há alguns meses, foi jornalista no Afeganistão onde estão as suas raízes, embora tenha nascido como "imigrante deslocada" em território iraniana. Não acredita que o domínio dos Talibãs, que voltaram ao poder faz esta terça-feira meio ano, continue por muito tempo. Maryam Shahi entende que tudo depende do papel da comunidade internacional. Entrevista na TSF.

Maryam Shahi... Quais são, de quando e de onde são as suas primeiras lembranças do Afeganistão, uma vez que nasceu e cresceu no Irão, como refugiada, filha de refugiados da etnia hazara?

Nasci no Irão e morei no Irão durante 27 anos. Mas nunca fui uma cidadã iraniana porque os meus pais eram imigrantes afegãos. No Irão eu era considerada uma imigrante afegã deslocada. A primeira lembrança que tenho do Afeganistão é aos 11 anos. Os Talibãs chegaram ao poder no Afeganistão uns anos antes do 11 de setembro de 2001. Mas depois dos atentados, vi uma imagem censurada de uma vítima na televisão, a quem os talibãs tinham cortado a cabeça. Não vi imagens das vítimas na televisão do Irão, que havia censura. Chorei muitas horas e dias em privado e pergunto-me como um ser humano pode matar brutalmente um ser humano

Os seus pais deixaram o país porque sentiram que estavam em perigo? Porquê? Por serem hazaras?

Antes de responder à pergunta, devo dizer que meus antepassados foram aqueles que sobreviveram ao primeiro genocídio hazara no Afeganistão no final do século dezanove. Eles abandonaram as suas casas e quintas e fugiram para o centro do Afeganistão, onde também era difícil viver. Após este evento histórico, o meu avô e o meu pai herdaram a pobreza e a imigração. Quando o meu pai era um jovem, os comunistas governaram o Afeganistão e mataram centenas de milhares de afegãos. O meu pai foi preso numa prisão dos serviços secretos chamada "Khad" só porque não queria ser um soldado comunista. O meu pai fugiu da prisão e a sua vida estava em perigo no Afeganistão. Naquela época, os islamitas lutavam contra os comunistas sob o nome de Mujahidin. O meu pai não estava interessado nos Mujahidin e nos comunistas. Na época, os cidadãos afegãos tinham que escolher entre tornarem-se comunistas ou o Islão e Mujahidin.

Se não estivesses em nenhum dos grupos, eras morto ou tinhas de fugir do Afeganistão. O meu pai imigrou para o Irão para salvar a sua vida e a vida da sua família. O fato é que naquela época o Afeganistão tinha-se tornado um lugar de conflito ideológico. O radicalismo islâmico floresceu no Afeganistão após a guerra entre a antiga União Soviética e os Mujahidin.

Também sentiu discriminação no Irão?

Sim, claro, eu não era uma cidadã do Irão. E nunca pensei que o Irão fosse a minha pátria. Sempre pensei em voltar ao Afeganistão. Achei que havia pessoas no Afeganistão que precisavam do meu conhecimento e das minhas capacidades. Eu tinha de ir para o Afeganistão para ajudar a reconstruir a cultura do meu país.

Porque decidiu ser jornalista? Como é que isso aconteceu na sua vida?

É uma pergunta difícil. Eu vivi em discriminação e genocídio durante várias gerações. Na verdade, eu não escolhi o jornalismo; a discriminação é que me trouxe ao jornalismo. Comecei a aprender a ser jornalista aos 17 anos. De repente, uma lei foi aprovada no Irão em que os imigrantes afegãos perderam os seus direitos à educação no último ano do ensino médio, e eu não podia ficar isolada em casa. Arrisquei fazer um curso de jornalismo e depois trabalhei como jornalista freelance e uma vez, naqueles anos, vi o vídeo e o sentimento de um homem do Afeganistão, que tinha familiares que tinha sido violado num lugar de Cabul chamado Afshar, que gritava com profunda tristeza pelos média de todo o mundo: "por favor, ouçam a nossa voz".

Perguntei a mim mesmo, por que razão as suas vozes não eram ouvidas. Estou agora com 35 cinco anos de idade. Desde então, tentei, durante mais de uma década, escrever sobre pessoas cuja voz está silenciada. Em 2016, a minha reportagem sobre os mestres do movimento iluminista afegão foi publicada na Euronews.

Muitos afegãos elogiam a Euronews. Muitos meios de comunicação boicotaram as manifestações devido à pressão do Conselho de Segurança do Governo afegão e que a Euronews quebrou esse bloqueio às notícias. E a minha notícia quebrou o embargo de notícias. Lembro-me que foi um grito para os media de todo o mundo. Por favor, ouçam a nossa voz.

Qual era o foco dos seus artigos? Sobre o que é que escrevia?

Durante os anos em que morei no Afeganistão, os tópicos em que me concentrei eram principalmente sobre tabus de género. Uma das minhas maiores preocupações como jornalista era a atenção da sociedade às questões de género que muitas vezes tiraram a vida de mulheres, especialmente mulheres afegãs. Fui a primeira jornalista a escrever uma reportagem com o meu nome verdadeiro sobre a questão da virgindade das meninas no Afeganistão. A virgindade é um dos maiores desafios para as raparigas afegãs, já que muitas são mortas ou rejeitadas pela sociedade afegã por causa da questão da virgindade. Na sociedade afegã tradicional, uma menina deve ter o seu primeiro ato sexual com o seu marido na primeira noite de casamento, e ele deve acreditar na virgindade dela durante o primeiro sexo. Se não esse momento não for válido para ele, acredita-se que ela tenha feito sexo fora do casamento no passado, logo, não é virgem. E o marido vai matá-la, ou divorciar-se dela e ser rejeitada pelas famílias.

Pensei comigo mesmo que deveríamos perder a vergonha de falar sobre este tabu da virgindade. Então, escrevi essa reportagem. O diretor da revista insistiu que o meu nome fosse mantido em segredo, como relatei, para que a minha vida não corresse algum risco. Mas eu insisti que o meu nome fosse incluído na reportagem, porque eu queria quebrar esse tabu em voz alta. E falar também sobre o terceiro género que colocaria em risco as suas vidas. Entretanto, muitos meios de comunicação escreveram sobre o tabu da virgindade e muitas mulheres escreveram e falaram sobre isso. No ano passado, o teste de virgindade foi proibido no Afeganistão.

Depois disso, escrevi sobre outros tabus de género, como menstruação feminina, casos de apedrejamento no Afeganistão e pedir sexo às mulheres em troca de cargos no governo.

Pode falar-nos sobre o ataque suicida do Daesh, no centro de Cabul, em 2016... Foi traumático para si?

Foi traumático. Era uma manifestação de apoio ao chamado 'movimento iluminista' do Afeganistão. A minha vida foi salva por acaso. Poucos meios de comunicação estiveram presentes na manifestação. Eu testemunhei duas explosões na multidão ao mesmo tempo, e snipers dispararam contra a multidão profissionalmente, não podíamos entender, foram disparados tiros contra a multidão. Mas ficou claro que os atiradores eram muito profissionais porque mataram um grande número de pessoas em fuga sem cometerem um erro.

Alguns meses depois, tive ataques de pânico. Fui tratada por um psicólogo durante seis meses e depois fiquei deprimida, comecei agora com acompanhamento psicológico através do método Falun Dafa ("Prática da Roda da Lei" - em tradução literal do mandarim, uma prática espiritual chinesa que combina meditação e exercícios de qigong com uma filosofia moral centrada nos princípios da verdade, compaixão e tolerância). Foi como uma porta aberta na minha vida. Na verdade, superei muitos sentimentos negativos e problemas no meu corpo e tornei-me uma pessoa enérgica e mais forte do que antes. Este método enfatiza os três princípios: benevolência, verdade e paciência; assim devemos ajustar as nossas vidas, de acordo com estes três princípios. O criminoso governo comunista da China tortura praticantes deste método há 20 anos.

Sentiu que teve que deixar o Afeganistão por causa do seu trabalho como jornalista? Também escrevia sobre os Talibãs antes de 15 de agosto do ano passado?

Antes dos Talibãs chegarem ao poder no Afeganistão, eu era a diretora de um semanário feminino em Cabul. Tínhamos muitos leitores e muitas reportagens sobre os crimes dos Talibãs, nomeadamente a violação dos Direitos da Mulher.

Além disso, fui repórter do Euronews em Cabul e escrevi algumas reportagens sobre os Talibãs. Quando chegaram ao poder, a minha mãe e o meu pai disseram-me repetidamente que a minha irmã e eu tínhamos que deixar o Afeganistão. Mas não conseguíamos. Quando os Talibãs assumiram o controlo do Afeganistão, a minha mãe ligou-me a chorar e a dizer, "prepara-te para morrer porque os Talibãs vão matar-te". Respondi que não morreríamos. Eu tinha essa forte esperança de que sobreviveríamos.

E agora Maryam, está otimista sobre quem fica no país conseguir resistir e manter algumas das conquistas conquistadas ao longo desses 20 anos?

A capacidade do povo afegão de manter as conquistas de 20 anos depende do tratamento dado aos Talibãs pela comunidade internacional. Porque hoje, mais de 39 milhões de pessoas estão reféns; muitos afegãos morrem de pobreza e fome. Muitas pessoas vendem os rins, os Talibãs só apoiam pashtuns que pensam como eles. E a ajuda global não chega aos outros grupos étnicos do Afeganistão. Muitos afegãos acreditam nos valores universais dos direitos humanos. Mas muitas pessoas afegãs, mulheres especialmente educadas, em particular, estão sob a faca dos Talibãs, mulheres ativistas civis são torturadas frequentemente nas prisões dos Talibãs.

Se a comunidade internacional se calar, sem dúvida serão mortas. É um risco enorme para a comunidade internacional apoiar o governo talibã. Apoiar os Talibãs significa apoiar terroristas. Significa apoiar a deriva da sociedade afegã para o radicalismo islâmico e as consequências perigosas desse apoio ficarão claras nos próximos anos. Os Talibãs não mudaram.

Como chegou a Portugal e em que condições vive?

Deixe-me não falar sobre como cheguei a Portugal agora, por causa da segurança de algumas pessoas no Afeganistão, mas com certeza que, no futuro, falarei sobre as condições de vida em Portugal. Não foram fáceis para mim, mas também não foram extremamente difíceis. Deixámos tudo no Afeganistão. Tivemos a sorte de sobreviver à grande explosão no aeroporto de Cabul. Mas passámos por sangue e suor para sair do Afeganistão. Tenho vídeos do massacre horrível no Afeganistão. Mas não consigo ver. Sempre que penso nos problemas por que passámos, vejo as nossas dificuldades. Mas foram menores do que a extensão da tortura por que passaram os nossos praticantes do Falun Dafa na China. Violaram nas prisões e muitas outras torturas. Eu vivo na residência da universidade e estudo português. Aos domingos, praticamos e estudamos com um grupo de praticantes do Falun Dafa e falamos sobre as violações dos direitos humanos ao povo português. Sabemos que o Partido Comunista Chinês também apoia os Talibãs e foi o primeiro governo a apoiar os Talibãs desde que chegou ao poder.

Espera um dia poder voltar ao Afeganistão?

Sim, eu tenho que voltar ao Afeganistão um dia e acho que os Talibãs não vão conseguir permanecer no poder no Afeganistão por muito tempo. Além disso, nos quatro meses que estou em Portugal, achei o povo português um povo adorável. E estou interessado em comunicar com os portugueses e aprender com eles. Portugal, tal como o Afeganistão, é a minha pátria.

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