Chama-se Rádio Begum, transmite a partir de Cabul e na internet. Nasceu a 8 de março de 2021, Dia da Mulher. Hamida Aman, que fundou esta rádio no feminino, conta que não são só elas que participam na emissão: eles também. Nesta rádio, a grande bandeira é a educação.
Hamida Aman nasceu no Afeganistão, mas a família saiu do país quando tinha apenas oito anos. Estiveram exilados e Hamida cresceu na Suíça, onde estudou jornalismo e comunicação. De regresso ao Afeganistão, trabalhou na área, em órgãos de comunicação locais. Em 2004, criou a própria empresa de comunicação, uma produtora de rádio e de televisão. Além disso, tem, desde 2012, uma outra rádio que emite para todo o país. A Rádio Begum é a sua segunda rádio.
Uma rádio feita por mulheres e para mulheres, no Afeganistão dos taliban. Como é que isso é possível?
Esta rádio nasceu no Dia da Mulher, em março 2021, portanto, poucos meses antes do colapso do regime anterior e da chegada dos taliban. Criei esta rádio por saber que a situação pode mudar muito depressa, especialmente para as mulheres, e queria ter uma ferramenta que respondesse às necessidades delas, no novo regime. Para mim, a rádio é a melhor escolha. Sou uma pessoa da comunicação e claro que o caminho só podia ser esse. A rádio é muito conveniente, porque é apenas a voz, pode manter-se o anonimato. Quem telefona pode ficar anónimo, e quem responde - o apresentador ou o jornalista - também está seguro, desta forma. Além disso, a rádio é barata, acessível a todos, sobretudo nas zonas remotas, onde falta informação e onde as mulheres sofrem mais.
Há muita gente a pedir o anonimato?
Temos muitos programas em que as pessoas podem ligar. Com psicólogos, que respondem a perguntas, sobre o medo, e tudo o mais. E quando os ouvintes ligam, não precisam de nos dar uma identidade exata. Basta um nome, o problema, e é só voz. Isso já é anonimato.
Têm a permissão dos taliban, mas o que mudou desde a abertura, em março?
A Rádio Begum nunca foi uma rádio política, não temos notícias, nem programas de política, portanto, não tomamos posição nessas questões. É uma rádio que dá informação, serviços e educação às mulheres. Por isso, não mudámos muito, à exceção dos programas de entretenimento. Claro que temos menos música, menos alegria, menos energia, mas, tirando isso, não alterámos muito a nossa programação.
Não têm notícias, mas têm de ler textos. São livres para escrever tudo o que vai para o ar?
Sim, sim! Não temos barreiras desse género. Ninguém nos diz que assuntos devemos abordar ou o que podemos ou não dizer. Não temos esse problema. As rádios e as televisões que têm notícias não devem dar muitas más notícias, como o conflito com o Daesh, por exemplo. Como a nossa rádio é puramente educacional, esse problema não existe.
A vossa rádio tem aulas, sobre temas como a saúde, a justiça social, a psicologia... Como fazem isso? Há mesmo alunos no estúdio? Rapazes? Raparigas? Ambos?
Sim, ambos. Meninos e meninas. Vêm das redondezas, todos os dias, para as nossas aulas gravadas. Organizamos grupos de alunos, grupos mistos. Não é suposto fazermos isso, mas, por agora, estamos a fazê-lo. São meninos! Queremos ter muitas crianças, para recriar uma verdadeira aula.
Não é suposto fazerem-no. É um risco?
Se os taliban aparecerem, vão pedir-nos para não misturarmos meninos e meninas, e vamos pedir desculpa e dizer que não sabíamos. Mas, até agora, ninguém perguntou. Sabe... tentamos não nos limitar demasiado. Somos gente da cidade, de Cabul, portanto, tentamos manter um pouco da nossa liberdade.
Mas no regime taliban o acesso das meninas à educação é muito limitado. Elas podem ir às vossas aulas?
Elas vão, e eu acho que isso não é um problema, porque, agora que as escolas estão fechadas, há muitos bairros onde os professores se organizam, e recebem meninas em casa, para aulas privadas.
A rádio também tem programas em que as pessoas podem ligar. Quem é que liga? E o que é que dizem?
Por exemplo, temos um programa de apoio psicológico. A maioria são mulheres, mas também há homens que ligam. Falam dos problemas do casal, das discussões, das noites mal dormidas, a depressão... Muitos são de Cabul, mas a maioria é das províncias. Mulheres que vivem em locais remotos e que não sabem lidar com esta situação horrível, com o medo e com a insegurança.
Já disse que a música, agora com os taliban, mudou. O que passavam antes e o que passam agora?
Antes, tínhamos todos os tipos de música. A maioria afegã, mas também indiana, iraniana. E ocidental também, claro. Muita música pop, muito ativa, muito dançável. Agora, é tudo mais calmo, mais tranquilo. Já não passamos música ocidental. Trocámos por canções afegãs e indianas tradicionais, mais calmas, ou música clássica. Mas, às vezes, muito de vez em quando, entre programas, permitimo-nos ouvir música mais atrativa. Mas muito menos, em comparação com o passado.
Os homens também ligam para os vossos programas. Como é que os homens afegãos, em geral, lidam com a existência de uma rádio para mulheres?
Não têm nenhum problema com isso! Estão felizes por terem uma rádio que responde a perguntas, mesmo que seja para mulheres. Mas, neste momento, os problemas das mulheres e dos homens são os mesmos. Não têm confiança no futuro. Enfrentam os mesmos obstáculos económicos. Por exemplo, temos um programa sobre saúde, em que um ginecologista fala de assuntos de mulheres. É muito comum haver maridos que ligam para falar dos problemas das mulheres deles. É um país e uma sociedade muito puritanos, onde as pessoas são muito conservadoras, e, por vezes, as mulheres não se atrevem a falar de questões ginecológicas. Por isso, são os maridos que perguntam ao nosso ginecologista o que devem elas fazer, para lidar com o problema. É muito engraçado! Dizemos sempre para não nos ligarem, para pedirem às mulheres que sejam elas a ligar, mas, mesmo assim, há alguns homem que telefonam, no lugar delas.
No ocidente, há um estereótipo da mulher afegã. Quem é ela hoje em dia? Como se relaciona com o mundo?
Na verdade, as mulheres afegãs não são tão fracas como a Europa pode pensar. São fortes, são combativas, e podemos ver isso neste momento. Em muitas cidades, nesta altura, são elas que saem à rua para protestar contra o regime taliban e para exigir de volta os direitos perdidos. Neste momento, não vemos homens na rua a protestar contra nada! Só mulheres! São verdadeiramente guerreiras. Basta-lhes ter um pouco de acesso a informação e alguns conhecimentos para tomarem conta da vida própria, como qualquer homem.
A ideia que temos no ocidente é que, agora, com o regime taliban, têm muito menos acesso....
Com os taliban, as que vivem nas cidades são as que sofrem mais. A vida delas mudou muito. No campo, nas aldeias, a mudança não foi tão grande. Já era tudo muito conservador. A partir dos 12, 13 anos, as meninas já não podiam ir à escola. Já era assim tradicionalmente. Nas cidades, elas sofrem mais, porque estão fechadas, não têm trabalho, não veem um futuro risonho e não sabem quanto tempo isto vai durar. Acreditem... são estas mulheres que estão mais deprimidas. Mas o desemprego e a falta de rendimento nas famílias também estão a provocar depressão nos homens.
São tempos de incerteza. Receia ter de fechar a rádio, inesperadamente?
O risco existe, não sabemos. Os taliban são imprevisíveis. Não são unidos, há várias fações entre os taliban. Alguns são mais abertos, mais flexíveis, mas há um ramo que é muito conservador e que gostaria de restringir mais a comunicação social. Há uma luta interna na organização. Esperemos para ver quem ganha. Por isso, não conseguimos prever o futuro. Por agora, continuamos. E o maior problema que enfrentamos é a falta de receitas na nossa rádio. Depois, veremos o que fazer, se daqui a 15 dias ou um mês nos disserem que temos de fechar. Acho que isso só vai acontecer se proibirem totalmente as mulheres de sair e de trabalhar.
É uma sombra em cima de vocês?
É uma sombra, mas tenho esperança de que não aconteça. Estive em Cabul com o porta-voz dos taliban e ele foi muito incentivador. Disse que precisamos deste tipo de rádio. Que as mulheres afegãs precisam de entender os seus direitos, porque os abusos são muitos. Por isso, esta rádio é muito importante. Ele foi muito encorajador, tentou dar-me esperança e disse-me que o regime vai fazer o melhor para nos apoiar. As palavras são dele.
E o que quer dizer Begum?
Begum refere-se a uma mulher nobre. Originalmente, dizia respeito à mulher do Marajá, no Império Mongol. A palavra era usada especialmente na Índia, mas também a usamos no Afeganistão e no Irão, quando se fala das mulheres nobres. Gosto do nome, porque dá à mulher um certo ar de princesa.