"O conflito na Ucrânia é a guerra barata que alguém subcontratado está a lutar pelos europeus"

"Mega-Ameaças: dez perigosas tendências que ameaçam o nosso mundo e como sobreviver a elas". É o novo livro do economista Nouriel Roubini, conhecido por Doutor Catástrofe ao ter antecipado a bolha imobiliária nos EUA que resultou na crise financeira global em 2007.

Trabalhou na Administração Obama, é professor emérito da Stern School of Business na Universidade de Nova Iorque, onde vive. Fundou e dirige a Roubini Macro Associates. Serviu na Casa Branca e no Departamento de Tesouro dos Estados Unidos. É dos economistas americanos mais lidos e populares do nosso tempo. Chamaram-lhe Doutor Catástrofe por ter antecipado a crise financeira que o mundo viveu na primeira década deste século. "Mega-Ameaças: dez perigosas tendências que ameaçam o nosso mundo e como sobreviver a elas", um livro que vai "da pior crise da dívida que o mundo já viu à inflação, ao crescimento do populismo, à ascensão de uma nova competição de superpotências entre a China e os EUA, à normalização das pandemias, à crise climática, ao impacto da inteligência artificial.

Está a ser o Dr. Catástrofe ou o Dr. realista quando identifica estas 10 "mega-ameaças" que estão à nossa frente? Algumas delas já estão no horizonte, ou já estão a acontecer, então é uma questão de ser alguém pessimista ou está a ser mais realista?

Não estou a ser um doutor Catástrofe, não estou a falar de ficção científica. Não estou a falar de alienígenas que invadem a Terra ou de cenários de asteroides. Há centenas de livros escritos sobre alterações climáticas, guerras entre grandes potências, sobre pandemias, sobre crise económica e financeira, num ângulo mais político ou mais económico, e eu tento mostrar como estas tendências estão interligadas. Diria que posso dar-lhe dez exemplos sobre como cada uma destas ameaças se está a materializar hoje, e não daqui a dois ou vinte anos. O mundo não está tão em risco desde a Segunda Guerra Mundial. Há um novo conceito no Relatório Global de Riscos do Fórum Económico Mundial que fala em 'megacrise' ou 'policrise'. Não tenho visto, pessoalmente, ninguém falar de tendências que não existem, mesmo que as pessoas tenham opiniões diferentes sobre o quão lento ou rápido o comboio da crise anda, quais são as soluções potenciais para estas tendências, quão prováveis ou improváveis elas são. Estou a falar de coisas que realmente nos afetam. Olhar para isto e dizer "não, essas ameaças não existem", seria alguém que vive num planeta diferente".

Disse: 'Eu poderia dar-lhe 10 exemplos'. Peço-lhe que me dê um ou dois...

No verão passado, tivemos secas do Paquistão à Índia, na maioria dos lugares da Europa, claro no Médio Oriente, África Subsariana, desde o Colorado até à Califórnia, onde há seca há quatro anos. Um terço de todos os vegetais, dois terços de todas as frutas e frutos secos nos EUA são produzidos na Califórnia. Os agricultores são forçados a vender os direitos de propriedade à indústria que produz carne, a maior parte dos preços dos alimentos da rota americana estavam a subir em todo o globo muito antes da invasão russa da Ucrânia, devido à falta de recursos, colapso da agricultura, preços dos alimentos e inflação alimentar. Sinto a dor da classe média trabalhadora com a necessidade de pagar mais pelos alimentos mas, em muitas partes do mundo, a inflação alimentar é a fome das famílias, que centenas de milhões de pessoas já estão a enfrentar. Quando se apanha estas secas, a terra é tão seca que quando de repente chove, passamos de secas extremas a inundações maciças como vimos, por exemplo, no Paquistão, onde centenas de pessoas morreram ou mesmo na Alemanha ou nos EUA ou na América Latina, passámos de um fenómeno extremo para o outro. Os furacões estão a tornar-se mais frequentes. Poderia continuar e continuar com exemplos.

Alguns deles estão de alguma forma relacionados com o que está a acontecer na Europa de Leste com a guerra na Ucrânia. Como encara este conflito nesta altura?

Se olharmos para lá da guerra na Ucrânia, temos uma depressão geopolítica com potências revisionistas, como a Rússia ou a China, o Irão, ou a Coreia... facilmente o Paquistão... E depois temos o modelo económico, geopolítico, modelo de segurança que os EUA escreveram no Ocidente, desde a Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria entre a China e os EUA é evidente e a guerra da Rússia na Ucrânia não é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, é uma guerra por procuração entre a Rússia e a NATO. Podemos discutir se este conflito vai ficar congelado ou se envolve diretamente a NATO. Um conflito convencional entre os EUA e a Rússia seria pouco convencional. Há duas semanas atrás, li um longo artigo que dizia que a Terceira Guerra Mundial poderia começar com a Rússia e a Ucrânia. Foi escrito pelo Sr. Kissinger, não foi um qualquer lunático. É uma possibilidade. Pelo que sabemos, a Rússia poderia desintegrar-se, como aconteceu com a União Soviética, com cada um a seguir o seu próprio caminho; isso é possível. O colapso da Rússia não é do interesse do Ocidente, porque isso poderia ser um sinal para a China fazer alguma coisa, porque no jogo que se desenrola na Ásia, a China tem disputas recíprocas não só sobre Taiwan, mas também com outros seis ou sete países diferentes, com o Japão, Indonésia, Vietname, Coreia do Sul, Malásia. Estas são o tipo de ameaças geopolíticas que estão a ocorrer hoje em dia. Pelo que sabemos, o Irão tornar-se-á em breve um Estado nuclear, e Israel terá de decidir algo a esse respeito; há em todo o Médio Oriente guerras por procuração xiitas -sunitas, sabe, Síria, Iraque, Iémen, Líbia. Gaza também é um Estado falhado, mesmo que não seja um Estado, entre outros conflitos.

Como devem os países ou governos da Europa Ocidental enfrentar estas ameaças? Quero dizer, por exemplo, num país pequeno como Portugal, há algo que os governos possam fazer para enfrentar estas mega-ameaças que identifica?

Muitas das soluções para estes problemas não são apenas a nível nacional, mas a nível global, porque muitas destas externalidades são externalidades públicas negativas, alterações climáticas, e depois é a segurança, o comércio, a globalização, a agitação económica e financeira. Portugal faz parte da União Europeia e da zona euro. E parte da NATO, que foi alargada a mais dois países. Assim, nesta crise, a Europa tem estado até agora a manter-se unida, num mundo com grandes potências como os EUA e a China. Assim, alguns dos nossos problemas nacionais e regionais, só podem ser resolvidos a nível global, é assim que deve ser. Portugal tem beneficiado imensamente da União Europeia, com fundos, investimento direto estrangeiro e agora com pessoas do setor das tecnologias digitais a virem desfrutar da vida, cultura, o clima. Portanto, Portugal é um exemplo fantástico de integração e normalização europeia.

A recessão na Zona Euro que mencionou, que pode estar à nossa frente, acha que será breve, uma pequena recessão principalmente devido à guerra na Ucrânia, e que depois de haver - eventualmente - um acordo de paz para parar a guerra, essa recessão é ultrapassada? Ou, por outro lado, será uma recessão longa?

Não estou convencido de que essa história vai ser curta, por muitas razões. Primeiro de tudo, as variantes podem até ser estes preços elevados. Agora. a procura de mercadorias como, por exemplo, o zinco, o cobre, o preço destas coisas é tão elevado e crescente, que não creio que a inflação vá moderar-se muito. Estamos a assistir a uma redução nas taxas de participação da força de trabalho, as pessoas reformam-se antes da idade da reforma; o BCE não pode impedir uma taxa de juro de 3% ou superior, os custos de empréstimo para os governos e para muitas pessoas vão tornar-se mais dolorosos. Penso que é mais provável que venha a haver uma longa recessão com stress financeiro que causa contração de empréstimos e até colapso, causa mais bancarrota entre as nações, instabilidade económica e financeira.

É um americano ou alguém que vive na América, mas que foi criado na Europa. Pensa que a dada altura os EUA estarão a pressionar a Europa a reduzir de alguma forma as suas ligações ou o seu comércio com a China, a fim de manter a Aliança Transatlântica a funcionar?

Há uma série de dimensões. Em primeiro lugar... os americanos disseram aos europeus: "ok, os EUA apoiam a Ucrânia e a Europa contra a Rússia". Número dois, a maior ameaça que o Atlântico Norte enfrenta, a maior ameaça à NATO não vem da Rússia, mas da China. NATO, a QUAD, o AUKUS, são alianças de defesa ocidentais para conter a China. Economicamente, os europeus não utilizam o 5G chinês Huwaei, que faz parte do governo chinês, mas agora os EUA restringiram as exportações de semicondutores para a China, estão também a conceber o TSMC em Taiwan e o SML na Holanda, e os europeus que seguem estas coisas. A UE está farta de estar dependente da energia russa, e do investimento direto chinês, o que a deixa numa situação realmente adversa, aumentando a guerra fria entre os EUA e a China. Trata-se apenas de um exemplo. Hoje é o 5G e os semicondutores, mas amanhã pode ser sobre sistemas de veículos autónomos. Não dentro do carro, mas fora, nas estradas é necessário ter dados recolhidos por muitos sensores para obter uma tabela de dimensões, a fim de garantir que os veículos conduzem em segurança e não batem uns nos outros. Neste momento, a Tesla recolheu dados dos seus condutores chineses, mas a ideia de que os chineses permitirão que Tesla, ou Audi, ou Volkswagen, ou Mercedes Benz, executem os seus próprios veículos autónomos de software na China, está totalmente fora de questão. Pela mesma razão pela qual a Europa não permite que o software chinês funcione nos seus próprios veículos autónomos ao longo do tempo. Por isso, é preciso que analisemos cuidadosamente esta exposição perante a China. Os sistemas ocidentais parecem estar cada vez mais presentes na informação económica, monetária, comercial, de investimento financeiro na EU, não está a alinhar com os sistemas chineses. Assim, vamos ver essa dissociação, essa fragmentação, essa autonomização, essa maior segurança e essas múltiplas cadeias de abastecimento e diferentes blocos. Isso são as coisas para as quais nos devemos preparar, porque elas vão acontecer, quer se goste quer não.

Olhando para o contexto político, mas ao mesmo tempo, olhando para as perspetivas económicas, durante quanto tempo pensa que o Ocidente pode continuar a ajudar a Ucrânia como tem vindo a ajudar até agora?

Creio que apesar das preocupações de que as divisões dentro dos EUA, com os republicanos a controlarem a casa ou mesmo na Europa, não temos outra hipótese senão continuar a ajudar plenamente a Ucrânia. O conflito na Ucrânia é a guerra mais barata que o Ocidente poderia travar contra a Rússia. Estamos financeiramente envolvidos, mas comparemos os custos com os da Rússia, ou das repúblicas da Ásia Central, pelo que não há uma única necessidade de parar, as tropas da NATO não estão lá, são os ucranianos que estão a morrer. Para uma guerra contra a Rússia como esta, é na verdade muito barato. As pessoas não se apercebem que, no fim de contas, se alguém como Orbán continua a empatar sobre energia e há a questão da segurança alimentar, é uma pechincha o que estamos a fazer. Não há ninguém morto no Ocidente, os EUA dirão que o que estamos a fazer no Ocidente é fornecer a segurança à Europa. A segurança dos EUA não está em perigo, a segurança europeia está em perigo. Portanto, é a guerra mais barata que alguém subcontratado está a lutar pelos europeus. E penso que os europeus se apercebem disso. A maioria deles apercebe-se disso e nós continuaremos a apoiar a Ucrânia conforme for necessário.

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