No mercado dos livros de Odessa, uma espécie de feira do livro permanente, que fica abrigada da chuva, do vento e do frio por uma enorme cobertura metálica, que podia ter sido desenhada por Eiffel, há um estranho movimento. Numa das entradas, vários artistas estão reunidos, conversam, tomam café, trocam experiências ideias sobre os últimos trinta dias. No primeiro dia do segundo mês de guerra, a arte voltou a sair à rua. Os trabalhos estão expostos nas vitrinas dessas livrarias. Se as crianças não ficam indiferentes ao conflito, os artistas, por assim dizer, revelam agora a arte na guerra. Enclausurados durante um mês, as criações das últimas quatro semanas recebem agora a luz do dia, a atenção de quem passa e, como sempre acontece com a arte, fazer despoletar a discussão e as leituras de cada traço, cada desenho, cada cartoon, cada mensagem.
Na instalação pousada sobre relva artificial, um «ouriço» - três pedaços de metal soldado, que são utilizados nos chek points, com o objetivo de travar a progressão dos tranques inimigos - de madeira, ganhou um braço mais. São quatro as peças. A última, forma um crucifixo e o autor pintou, a negro, um Cristo. «Ele esteve disposto a morrer para nos salvar. Isto significa que muitos ucranianos também estão dispostos a morrer para nos salvar; e, depois disso, ressuscitaremos mais fortes como pais». Por vezes, a arte precisa de contexto. Denys Nedoluzhenko, de 34 anos, apresenta-se como «artista e músico». A criação de um Cristo crucificado sobre uma peça de guerra não é a única mensagem de choque que o autor quer passar. Ao lado, o corpo de uma mulher grávida. Só o corpo. «É uma homenagem às mulheres grávidas que morreram no ataque à maternidade de Mariupol. A bestialidade dos russos não está só a matar os que estão vivos, também mata os que ainda não nasceram e que seriam o futuro da nossa nação». Engulo em seco. A beleza da pintura, vista pelos meus olhos, não chegaria, decerto, nunca, à crueldade que Denys queria transmitir.
A maioria das obras são cartazes. Desenhos, pinturas, caricaturas. O tridente ucraniano em chamas, mas a resistir. Um prédio destruído que parece sair de um corpo de uma mulher. Putin e Lukashenko, os presidentes da Rússia e da Bielorrússia, de corda ao pescoço, prontos para serem enforcados. Um crânio russo que serve de jarra a girassóis ucranianos. E outros, dezenas de outros desenhos que espalham mensagens de ódio, revolta, angústia. Ou de pedidos de ajuda, paz e fraternidade.
Esta sexta-feira, Odessa ganhou nova vida. Tal como acontece em Kiev, as autoridades pediram aos cidadãos que, sempre que possível, reabrissem negócios, voltassem a trabalhar, fizessem as cidades (re)nascer. Não apenas para que a economia ucraniana dê alguns sinais de existência, mas também para que seja possível recuperar rotinas de antes da guerra, ainda que em novas condições, debaixo de alertas e ameaças constantes. Trata-se de (re)aprender a (sobre)viver em tempo de guerra. Não ficar em casa. Respirar este ar ainda frio de primavera, ocupar o deserto das ruas, vencer o medo, mantendo o cuidado.
Odessa correspondeu.
Denys Nedoluzhenko, continua na conversa. Usa uns óculos de massa com lentes muito graduadas. Barba grande e desalinhada, um gorro, toma café. Conversa com outros, é afável, simpático.
Quem ali está é apenas um homem, descontraído numa manha de sexta-feira. Mas as obras que trouxe para a rua mostram um outro lado. São expressão de ódio e vingança. Noutras circunstâncias, talvez a conversa fosse sobre o seu trabalho anterior, o que faz na música além da pintura, que planos tem para o futuro próximo. Neste estado de guerra, pergunto-lhe o significado da última das três obras que expõe. É um quadro que tem um contador. Os algarismos que escolheu formam o número 1387 9. O último, de cor diferente, dá a ideia de movimento. Está quase a passar para 0. Pergunto-lhe o que significa. Que contagem faz ele, que número é aquele. Responde, sem pestanejar, como se a resposta fosse ser algo «normal». Diz: «Não é o número de dias, horas ou minutos desta guerra. Não quero saber disso, Não conto isso». Então? «É o número de mortos russos. Por isso é um contador. Está a contar o número de mortos russos.» Perante a minha expressão de espanto, que devo ter feito, porque não o interrompi, ele esclarece: «quantos mais russos matarmos, mais perto estamos da vitória.»
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