Reportagem TSF. "A diplomacia é criar pontes. A questão é: quão forte é o rio por baixo da ponte?"
Guerra na Ucrânia

Reportagem TSF. "A diplomacia é criar pontes. A questão é: quão forte é o rio por baixo da ponte?"

A presença grega em Odessa é antiga. Para o lembrar basta observar a ânfora com mais de 2000 anos que Dimitris Dohtsis exibe no gabinete. "Foi encontrada durante umas escavações duas ruas aqui ao lado", explica o cônsul-geral da Grécia na Palmira ucraniana.

Talvez por isso, a diplomacia de Atenas tenha sido a primeira a voltar a ter representação na cidade. "Foi uma pequena interrupção de três semanas", conta o cônsul. A reabertura de portas do consulado aconteceu no domingo passado. A cerimónia foi presidida pelo ministro grego dos Negócios Estrangeiros, Nikos Dendias. Nesse dia, ao amanhecer, os rockets russos chegaram à cidade. Mas o governante de Atenas nem por um momento pensou em anular a visita. "Avaliamos os riscos para a segurança, mas também queremos mostrar o nosso compromisso com a Ucrânia e a nossa solidariedade com o povo ucraniano."

Nikos Dendias aproveitou a visita para declarar a vontade de liderar um comboio de ajuda humanitária até ao interior de Mariupol (a cidade de Maria, em grego), cidade fundada por gregos da... Crimeia e que agora Putin reivindica. Por agora não é possível, mas o representante de Atenas insiste que logo que haja condições de segurança o desejo é para cumprir.

Por enquanto, Dimitris Dohtsis passa boa parte do dia a coordenar a distribuição da ajuda humanitária que chega de Atenas. Confessa que não esperava ver-se nestes trabalhos quando há pouco mais de um ano foi designado para ocupar o posto. "É algo que já não esperava ver no século XXI e num país europeu", resume.

As missões no Kosovo e Bagdade deram-lhe experiência para lidar com o novo quadro. "Tornamo-nos muito organizados e muito práticos. Concentramo-nos na essência das coisas, em como podem funcionar, mais do que nas tarefas chatas que as pessoas habitualmente associam à diplomacia." Ainda assim, Dimitris Dohtsis sublinha que as situações não são comparáveis. Em Bagdade, por exemplo, "vivíamos com os geradores elétricos a trabalhar 24 horas por dia. Aqui até temos Wi-Fi no abrigo subterrâneo, apesar de tudo".

Retirar do país cidadãos de ascendência grega é outra das preocupações do cônsul. Até agora, saíram da Ucrânia dois mil portadores de passaporte grego. Mas ainda há muitos. Dimitris confessa mesmo que não sabe quantos são, mas dados de 2001 indicavam que viveriam no país quase cem mil pessoas de etnia grega, boa parte delas concentradas na região de Mariupol. De resto, em várias aldeias da região ainda se fala Ruméika, um dialeto com origem no grego antigo.

Foi precisamente da cidade sitiada pelo exército russo que conseguiram escapar duas famílias que, na véspera, tinham chegado ao consulado. "Derreteram neve para conseguir água, cozinhavam na rua com as balas e os morteiros a passarem-lhes por cima da cabeça. Há pessoas que morreram e durante dez dias não puderam ter um funeral religioso, nem sequer ser sepultadas. Mães que encontraram apenas partes de membros dos filhos depois de um ataque com rockets. As histórias que partilharam partem o coração de qualquer pessoa, mas neles, penso que vai deixar cicatrizes psicológicas."

O diplomata assegura que, como a generalidade da população e da imprensa, não tem muitas informações sobre o que se passa no interior da cidade defendida pelo Batalhão Azov. Mas dá para perceber "que, do ponto de vista humanitário, é uma situação sem precedentes".

Dimitris Dohtsis não acredita que Odessa tenha o mesmo destino de Mariupol. "Não tenho uma bola de cristal, mas penso que não vai acontecer. Vejo as pessoas com a moral muito elevada, vejo as tropas ucranianas muito motivadas."

O diplomata, nascido em Atenas há 48 anos, garante que não sentiu medo quando recebeu a guia de marcha para regressar a Odessa. "Por vezes rezo muito. Essa é a minha principal medida de segurança. Por mais medidas que se tomem, nunca sabemos o que vai acontecer. Portanto, boa vontade e um pouco de fé são coisas que ajudam. Para ser honesto, não tenho qualquer preocupação. Que sera, sera. Vamos jogando à medida que vamos andando. A segurança é uma questão importante, não só para mim e para a minha equipa, mas para as pessoas à minha volta. Ucranianos de origem grega. Ucranianos em geral."

Ainda assim, se as bombas russas caírem sobre Odessa, a Grécia está pronta para ajudar: "Estamos presentes e também estaremos presentes se Odessa precisar de ser reconstruída. De uma forma geral, vamos estar presentes no futuro de Odessa e da Ucrânia." Foi também essa a mensagem que o chefe da diplomacia grega veio trazer à cidade no passado domingo.

A herança grega na cidade não acaba no gabinete do cônsul. Teve vários governadores gregos e agora há um centro grego de negócios, uma rua grega, uma praça e até um museu a funcionar desde o final dos anos 70 do século passado - o Filiki Eteria. Mas os tesouros do palácio onde há 200 anos nasceu a revolução que conduziu à fundação da Grécia moderna (ou do Estado grego) já foram cuidadosamente guardados.

Por agora a Grécia é mesmo o único país, quer da NATO, quer da União Europeia, com representação no Sul da Ucrânia. Mas recusa criticar os aliados. "Depende da vontade de cada país, dos recursos e da logística. Nós estaremos cá sempre."

Afinal de contas, os mais de 20 anos de carreira diplomática pesam nas palavras ao longo de toda a entrevista. Mesmo quando o assunto é a adesão de Kiev à União Europeia. "O povo ucraniano quer ter relações mais próximas com a UE. Penso que os dois lados vão encontrar um modus vivendi, uma forma de continuarem juntos."

Também em relação ao papel das chancelarias no fim desta guerra injusta Dimitris Dohtsis mostra-se cético: "A diplomacia é criar pontes. A questão é: quão forte é o rio por baixo da ponte?"

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