Reportagem TSF. Com a Rússia ali tão perto, numa aldeia em silêncio são os girassóis que gritam
Reportagem TSF na Ucrânia

Reportagem TSF. Com a Rússia ali tão perto, numa aldeia em silêncio são os girassóis que gritam

"Lá ao fundo é a Rússia", alerta-nos a condutora enquanto atravessamos os campos de girassóis secos à entrada de Kozacha Lopan. A planta era o motor e sustento desta aldeia situada a três quilómetros da Rússia.

"Não tivemos primavera, nem verão, nem outono. Só fevereiro. Foi sempre fevereiro até eles partirem", afirma Liudmyla Vakulenko, presidente da autoridade administrativa da aldeia, à TSF.

Durante 200 dias, Kozacha Lopan, na região de Kharkiv, esteve sob ocupação russa. Os girassóis ficaram por colher, a fábrica que processava as sementes deixou de trabalhar, as escolas fecharam.

Aqui ninguém fala. Tentámos na mercearia e nada. Tentámos dois homens que caminham na nossa direção. No quiosque, a mesma resposta. Só a presidente da junta de freguesia responde de forma positiva.

"Infelizmente, a terra não foi semeada e a que foi semeada antes da guerra não foi colhida", lamenta Liudmyla Vakulenko, presidente da autoridade administrativa da aldeia. Está sentada no gabinete ainda fortificado.

"Não vivíamos. Só respirávamos. Parece que fomos todos mortos, mas nem sei como descrever isso em palavras", confessa esta antiga professora de Língua e Literatura ucraniana.

Mais de seis meses depois da retirada dos ocupantes, o centro da aldeia ainda é considerado zona militar. Para aqui chegar, só com a companhia obrigatória das forças armadas ucranianas. Durante todo o tempo em que lá estivemos, um misterioso homem - que não podia ser fotografado - parecia comandar à distância todas as movimentações.

Junto à estação da aldeia, as ervas daninhas não pararam de crescer e têm agora mais de um metro. Para elas, o tempo não parou, mas para muitos o fim da linha foi ali. "Eram câmaras de tortura", assegura um militar que nos acompanha.

Liudmyla conta que os ocupantes chamavam ao lugar "o escritório do comandante". Ali, retiravam os documentos às pessoas e diziam-lhe que "tinham de passar mais tarde para os voltarem a receber" e "depois eram interrogados".

"Eles acabaram por libertar o filho, mas do marido não tivemos mais notícias"

Na cave do edifício, em cima de uma mesa, naquilo que as autoridades ucranianas garantem ter sido a sala do carcereiro - uma das salas de tortura dos russos -, estão dois romances e um toque retorcido de ironia: "Quem é culpado?" e "O que fazer?" são dois clássicos da literatura russa.

A autarca conta que mais de dez pessoas da aldeia desapareceram depois de serem levadas para os calabouços e que houve ainda outras que não conheciam nem sabiam de onde eram.

"Não eram só da nossa aldeia, mas também de outras, que por aqui passaram. Nem sequer os conhecíamos", descreve a mulher sem querer apontar um número exato de vítimas: "Eles levavam as pessoas às escondidas. Ainda estamos a fazer exumações e as investigações continuam em curso."

Um dos desaparecidos "foi preso juntamente com o filho". A mulher e mãe "todos os dias ia lá pedir que lhe devolvessem" a família.

"Eles acabaram por libertar o filho, mas do marido não tivemos mais notícias. Não sei porque é que o trataram tão mal. Talvez por ser um veterano da guerra no Donbass", teoriza. Outros moradores que estiveram presos com ele contaram que "quando o atiraram para a cela ele era só um monte de carne".

A TSF contactou a mulher em questão: não quis falar. Já tinha recebido notícias do marido, mas foi aconselhada a não prestar declarações por razões de segurança.

Saindo da estação, atravessamos a estrada de lama e, uns metros mais abaixo, numa cave, está uma cela onde, contam os militares ucranianos que nos acompanham, estavam presas 20 pessoas. A casa de banho eram dois baldes num dos cantos.

Por todo o espaço há garrafas de cerveja vazias, caixas de ovos, latas de conservas e de munições e até um manequim a quem o coração parece ter sido arrancado. "Não toquem em nada", avisa um soldado, "eles tiveram um surto de tuberculose".

Cá fora o lixo amontoa-se. "A nossa aldeia sempre muito limpa, não havia esta imundice", lamenta a mulher de 62 anos.

Uma das paredes da divisão em que dormiam os guardas russos foi destruída pela artilharia ucraniana. A presidente da junta acredita que a precisão daquele tiro deveu-se às informações passadas por alguns dos moradores de Kozacha Lopan, como o armazém cheio de munições e alguns veículos blindados estacionados numa quinta à saída da aldeia. "Assim que os orcs colocavam alguma coisa nalgum lugar, os nossos partizans passavam a informação. Sim, houve resistência", assegura com orgulho.

"Eles não tinham medo", começa por apontar, antes de reformular: "Bem, todos tínhamos medo, mas eles encontraram sítios com rede, de onde poderiam entrar em contacto." E esses sítios seriam poucos, já que uma das primeiras medidas das novas autoridades locais foi desligar o acesso à internet e à rede móvel.

Quando os ocupantes encontravam telemóveis, tinham o hábito de os pregar numa árvore no largo principal da aldeia. A falta de informação sobre o que se passava no outro lado do país - em todo ele, na verdade - deixava Liudmyla angustiada. "Isso causa medo, é o medo de não poder falar, estamos tão habituados a telefones. Algumas pessoas perguntavam-me por que estávamos com medo se seríamos alvejados de qualquer das maneiras. Não é assim tão simples. Estávamos sem informações e eles diziam constantemente que Kozacha já não era Ucrânia. Sabíamos que não era verdade, mas por ouvirmos isso constantemente, começámos a entrar em pânico", relata.

"É assim que eles fazem o trabalho sujo: com as mãos dos outros"

Entre as duas câmaras de tortura há um edifício alto com sinais de ter sido bombardeado. Sete pessoas morreram nesta rua, a 17 de março, depois de um rocket ter atingido o local junto ao qual esperavam, numa fila, para receber ajuda alimentar. Foram seis raparigas e um homem mais velho.

Uma das vítimas era a mãe de um rapaz que acabou por ficar ferido. A criança foi levada para o hospital de Belgorod e o pai, que já estava na Polónia, foi autorizado a ir buscar o filho.

Na altura, as tropas russas já tinham chegado há quase um mês e responsabilizaram o lado ucraniano pelo ataque. Mas Liudmyla assegura que os disparos sobre a população partiram dos ocupantes.

"Eles disparavam, mudavam de posição, e voltavam a disparar. Mas nós sabíamos que os ucranianos não podiam disparar de tão perto", conta com o ouvido treinado por um ano de guerra: "Quando aconteceu o primeiro ataque, estavam todos nos abrigos."

A explicação para a estratégia russa era, na sua opinião, simples: tratava-se de desinformação. "Eles diziam-nos: 'Os vossos estão a disparar contra vocês.' Mas era tudo muito rápido. As posições mais próximas das nossas tropas eram Slatino e Derhancy. Se os rockets fossem disparados de lá, voariam mais tempo."

O certo é que o plano deu frutos e "muitos ainda acreditam nessa propaganda". "É assim que eles fazem o trabalho sujo: com as mãos dos outros", acusa.

"Ao todo, acredito terão morrido cerca de 20 civis durante os bombardeamentos que atingiram Kozacha Lopa durante a ocupação", mas a contagem ainda não está fechada: "Todas as informações sobre estes crimes têm de ser recolhidas e apresentadas em algum lado."

Na aldeia havia também quem preferisse colaborar com as forças de ocupação. "Muitos, infelizmente", precisa Liudmyla. A mulher garante que todos esses partiram para a Rússia no dia 12 de setembro.

Nesse mesmo dia, o exército russo abandonou Kozacha Lopan: "Os russos andaram pelas ruas a anunciar, com um megafone, que era preciso partir, porque, em breve, as forças armadas ucranianas iam começar a bombardear e destruir a aldeia." Como presidente da junta, manteve a decisão que já tinha tomado a 24 de fevereiro: não saiu da aldeia.

Alguns dos que partiram fizeram-no assustados com a ameaça de bombardeamento, mas a maior parte dos que fugiram, defende, fizeram-no por terem servido e trabalhado com a autoridade russa. "Eram colaboracionistas. Fizeram uma caravana com muitos autocarros. Mas claro que os russos também os queriam usar como escudos humanos."

Agora estão em Belgorod e "alguns ainda escrevem coisas más nas redes sociais" sobre quem ficou.

Liudmyla Vakulenko não manteve o poder durante a ocupação. "Pediram-me para continuar a ser presidente da junta, mas eu disse não. Estava com medo, claro, mas ter medo não é pecado. Pecado é trair-se a si próprio", conta a autarca, explicando que a recusa valeu-lhe o primeiro lugar na "lista dos nazis" da aldeia.

"Nunca mais falaremos russo. Não existe para nós"

Nas primeiras semanas, as colunas das tropas russas passavam sem parar. Nessa altura, ainda era possível receber ajuda humanitária a partir de zonas controladas pela Ucrânia. Mas pouco depois chegaram as milícias da República Popular de Lugansk.

Foi então que as linhas de comunicação ficaram definitivamente cortadas. Os ocupantes trataram de alimentar os 1800 moradores que ainda restavam na povoação.

"Primeiro, uma vez mostraram-se para as câmaras, disseram que as autoridades ucranianas trouxeram a fome, e eles próprios distribuíam comida diante das câmaras. Davam grandes sacos. Mas foi só para as câmaras. Trouxeram ensopado, massas, trigo, ao que parece açúcar - deram de tudo um pouco. Nas últimas semanas da ocupação voltou a melhorar. Mas não havia produtos de limpeza doméstica: sem papel higiénico, sem fraldas - e tivemos aqui, mais de 100 crianças."

Muitos dos soldados que ocuparam Kozacha Lopan vinham da região do Donbass. Por isso, Liudmyla tem dificuldade em considerá-los russos. Mas quando perguntamos se são, então, ucranianos a resposta sai ríspida: "Não, lamento, mas não. Nem todos podem ser chamados de ucranianos, só porque vivem no território da Ucrânia."

Durante a entrevista ouviam-se explosões ao longe, mas Liudmyla garante que não teme o regresso dos ocupantes. "Os nossos rapazes estão aqui, vocês viram-nos. Eles não vão deixar que nos ofendam outra vez. E, para além do mais, Kozacha está localizada numa planície com colinas em volta. Agora os nossos veem tudo." Mas do lado russo também há uma colina.

Na parede do gabinete há um calendário de 2023 bilingue russo-ucraniano. A presidente da junta garante que o pormenor lhe tinha passado despercebido. É a faísca que a leva a dizer o que lhe vai na alma.

"Obrigado, nem tinha reparado. Vou tirar. Nunca mais falaremos russo. Não existe para nós. Com certeza vou aprender a falar inglês, vou aprender francês, vou aprender alemão, qualquer idioma. Mas vou esquecer esse. Afinal, temos tudo, sem a Rússia, temos tudo. Vamos sobreviver e viver ainda melhor, agora temos um incentivo. Unimo-nos, ficámos mais fortes, entendemos quem é quem. E se a maioria dos colaboradores já foi embora, a quem se quiser ir embora e se atrasar e não tiver tempo de fugir, deixem-nos ir. Tudo ficará bem. Então, será melhor para nós reconstruir o país e amar a nossa pátria. Não teremos nada a ver com eles. É tudo. Eles não existem para nós. Não são sequer uma nação. Vou tirar esse calendário."

Desocupada ou não, Kozacha Lopan continua a situar-se a três quilómetros da Rússia. Perguntamos como é viver tão perto de um território que é, agora sem sombra de dúvida para Liudmyla, inimigo.

"Antes da guerra, não entendíamos bem o que estava a acontecer. Aparentemente, eles não eram nossos 'vizinhos', mas 'bons vizinhos'. Definitivamente não eram", começa.

A autarca cita um ditado eslavo - "até que o trovão troveje, o homem não fará o sinal da cruz" - para tentar explicar a tentativa daqueles dois povos - russo e ucraniano - viverem em aparente insignificância um para outro.

"Vivíamos e não incomodávamos ninguém, mas eles vieram para aqui de lá do outro lado. Aguentámos 2014, com a Crimeia e o Donbass. Se as pessoas apoiarem, é deixá-las ir para a Rússia. Mas não vamos dar a nossa terra. Porque se dermos terra a todos, não vai sobrar nada."

Na aldeia, antes da invasão, a vida corria normal, pouco ou nada notaram: "Eu nem acreditava que os carniceiros viriam até nós. Mesmo nos dias 22 e 23 [de fevereiro de 2022], não percebi que eles estavam tão próximos de nós e quem eram. Infelizmente, só a guerra nos abriu olhos para quem eles são."

A guerra continua. Os campos em torno ainda estão semeados de minas por colher. O mercado da aldeia está fechado, as bancas enferrujadas. Os moradores, como quase vinte milhões de pessoas na Ucrânia, ainda vivem da ajuda humanitária. Chegaram a viver seis mil pessoas na localidade, antes da guerra.

Sem eletricidade, os que ainda ali moram procuram acumular lenha para ultrapassar o inverno. Mas Liudmyla já pensa no futuro. Depois do recuo das tropas russas, mandou plantar 50 pinheiros e 40 carvalhos.

"Foram 200 dias de tanta humilhação. Como chamar-lhe? De trevas. Mas a vida continua", afirma.

E continua, mesmo que os sinais da ocupação russa continuem presentes. Um deles tem uma águia bicéfala e três cores: rosa, azul e vermelho. É a bandeira da república popular de Kharkiv. É só uma recordação.

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