Depois de terem fracassado na tentativa de ocupar a cidade de Mykolaiv, as tropas russas tentaram contornar a cidade pelo flanco norte para chegar a Odessa e ao Mar Negro. Pelo caminho, ocuparam várias aldeias.
Na tarde de 5 de março, três helicópteros das forças russas sobrevoaram a aldeia de Kashper-Mikolaivka. Vinte minutos depois, a aldeia foi bombardeada. No terreno ficaram crateras com mais de quatro metros de profundidade. A Rua da Juventude foi devastada. Alla Shapovalovna conta que viveu momentos de aflição: "Nós escondemo-nos num sítio mais seguro da casa e mal fechamos a porta quando ouvimos uma explosão terrível que fez cair o vidro e destruiu a porta."
Quando as bombas russas começaram a cair sobre a aldeia, o marido de Alla estava na rua. Quando as explosões pararam e conseguiu voltar a entrar em casa, começou a gritar: "'Estão vivos, estão vivos?' Foi um milagre ele ter sobrevivido." O pior veio depois. A irmã de Alla, que morava duas casas ao lado, tinha morrido durante o ataque: "Tinha as pernas e os braços partidos. As feridas estavam todas abertas. Era terrível olhar para ela."
Depois de ter visto a rua em que morava ser destruída pelas bombas de Putin, a mulher decidiu mudar-se para casa do filho. Durante dez dias, 16 pessoas moraram no espaço insalubre com pouco mais de dez metros quadrados. "O mais novo era o meu netinho de ano e meio", conta a mulher com o semblante carregado.
Nos três dias seguintes, milhares de soldados e viaturas militares chegaram à aldeia com pouco mais de 200 habitantes. "De repente havia soldados por toda a parte. Começaram por nos tirar todos os telemóveis e os cartões SIM. Revistaram as casas à procura de armas, de nacionalistas e de "Banderas". Diziam que vinham para nos libertar, mas não havia de quem nos libertar. Uma mulher deixou-lhes um pedido. "No caso de encontrarem algum nazi, avisem-nos, porque nós também gostávamos de saber que aspeto têm."
No longo caminho de lama que dá acesso a Kashper-Mikolaivka são visíveis as trincheiras cavadas pelo exército de Putin. "Passaram o tempo todo a cavar trincheiras. Penso que o objetivo era construir aqui uma praça-forte. Construíram uma ponte móvel em baixo, no rio." Enquanto circulavam pela aldeia os militares pediam tabaco e vodka aos locais.
"As poucas pessoas que podiam circular na aldeia tinham de usar uma fita branca no braço ou na perna", conta Alla sem conseguir conter as lágrimas. Quase todos os habitantes da aldeia viveram em caves. "Os russos ocuparam as casas e obrigaram-nos a viver nos subterrâneos. Tínhamos muito medo que eles pudessem atacar as caves, porque sabiam que estávamos lá."
Um dos exemplos é o caso de Serhiy e da família. O homem conta que os militares dispararam para o quarto e para a fechadura de casa antes de entrarem e de o informar de que iam instalar-se na casa. As marcas dos disparos ainda são visíveis. Serhiy e a família viram-se forçados a viver na cave da própria casa e com os soldados russos sobre as cabeças.
Nalgumas das casas da aldeia ainda hoje é visível a inscrição "aqui moram pessoas!" Os soldados russos estacionavam os blindados junto às casas para evitarem ser atacados pelo fogo ucraniano, mas os moradores temiam ser usados como escudos humanos, explica Alla Shapovalovna. Uma mulher que não se quis identificar conta que, quando os soldados chegaram, aconselharam-na a manter a pequena loja da aldeia aberta. "Senão vamos ter de deitar a porta abaixo e fica-lhe mais caro", conta quase em surdina.
A casa de Alla não foi ocupada. "Estava em mau estado por causa do primeiro bombardeamento." Como tinha saído só com a roupa que tinha vestida, voltou a casa três dias depois de os russos terem chegado. "Já tinham roubado tudo: o fogão a gás, panelas, frigideiras, roupa, ferramentas da garagem do meu marido, o meu perfume, também levaram o portátil. Partiram o PC", conta a professora de ucraniano. "Espalharam os livros e os cadernos por todo o lado. As gavetas foram tiradas dos armários. Uma vez mais, levavam tudo: roupa, calçado, loiça, tudo o que lhes saltava a vista. "Tinha comprado duas resmas de folhas A4 e eles também as levaram. Não sei para quê. Tínhamos o carro no quintal e tiraram-lhe as rodas, o rádio, a bateria, partiram o vidro. Pareciam bárbaros."
A 11 de março a aldeia foi de novo bombardeada e de novo a partir de posições russas. "Os soldados diziam que as comunicações eram más e que tinham medo de ser alvejados pelos camaradas." Desta vez uma bomba de fragmentação caiu na garagem do filho. O velho Lada e a mota desapareceram. Na fachada da casa são visíveis as marcas do bombardeamento. Mas os estilhaços atingiram também a parede da divisão interior onde se a família se abrigava. Alla mostra uma imagem da Virgem Maria dentro de uma moldura com o vidro partido: "Foi a única coisa que salvei de minha casa. Era da minha avó, não tem ouro nem nada de valor, mas foi ela que me salvou", assegura Alla.
De repente, a 15 de março, o exército russo começou a bater em retirada "pelo mesmo caminho por onde tinham chegado", conta a professora. "Não chegou a haver uma batalha. Foram atacados e saíram muito depressa. Havia muitos deles, escondiam-se atrás dos civis. Trouxeram todo o equipamento que havia à volta da cidade para aqui porque sabiam que as tropas ucranianas não iam bombardear uma aldeia com pessoas. Mas depois o equipamento que foi deixado para trás foi bombardeado pelas munições russas, mesmo aqui, no meio da aldeia."
Os trabalhos de desminagem dos campos e agrícolas em volta de Kashpera-Mikolaivka ainda decorrem, um mês depois de terem começado.
Nos dez dias que abalaram a aldeia, os soldados russos praticaram vários atos intimidatórios: "Um dia começaram a gritar ao megafone 'Saiam das casas com as mãos no ar - bem alto -, com os documentos e se houver um movimento que seja a mais abrimos fogo de defesa.'" Nós saímos e lá estavam eles com uma autometralhadora. Perguntavam quem, da nossa aldeia, levava ajuda humanitária aos militares ucranianos, quem ajudava os soldados.
"Se encontrarmos alguém com um telemóvel damos-lhe um tiro na cabeça sem fazer qualquer pergunta", era outra das ameaças constantes, conta Alla.
Hoje, a bandeira ucraniana esvoaça de novo sobre a escola de Kashper-Mikolaivka. Mas durante a ocupação russa, o espaço serviu de quartel-general dos invasores. "Eles estavam na Casa da Cultura, na escola, nas nossas casas, nas ruas, por todo o lado." Foi para a escola da aldeia que foram levados todos os homens em idade ativa.
"Estão aqui para serem reeducados", conta ter ouvido Vasil, um dos homens que levados para a escola. "Pediram os telemóveis, viam a quem tínhamos ligado. Depois, levavam-nos ao gabinete, onde estava sentado um homem com uma patente mais alta. Ele dizia que tínhamos de contar como a Rússia é boa, que tínhamos que os ajudar."
Essa não foi a única vez que Vasil e os outros homens foram dirigidos para a escola. "Tiraram-nos da cave e levavam-nos com as armas apontadas. Quando chegamos lá vimos que metade deles estavam bêbedos. Não sei o que é que eles queriam de nós. Meteram-nos em linha, com as mãos ao alto. Apontavam as armas e olhavam para nós. Estava cá o marido da minha irmã, eles chamaram-no, perguntaram quem era e de onde. Ele disse que era de outra cidade. Perguntaram porque é que tinha vindo para cá. Ele disse que estava a fugir da guerra. E então eles perguntaram ' E então, conseguiste?' E dizem a seguir: 'E se agora levares nos dentes com a coronha, o que é que vais dizer?' Ele disse que ia dizer o mesmo, porque não tem nada a esconder. Eles olharam mais um pouco para nos e deixaram ir para casa. Não sei o que queriam de nós".
Na hora da despedida, Alla deixa uma inconfidência: " Os meus pais passaram pela Segunda guerra mundial e, mesmo que soe mal, eu estou feliz por eles não terem chegado a estes dias e verem o terror que está a acontecer."
Alla Shapovalovna não tem planos para reconstruir a casa. "Para quê?", pergunta, "enquanto não tiver a certeza que não volta a acontecer tudo de novo não vou fazer nada." Mas espera que a História se repita: "No dia 14 de março de 1944 a nossa aldeia foi libertada dos alemães e no dia 14 de março de 2022 dos ocupantes russos."