A quarta maior ilha do mundo é o primeiro lugar da Terra onde mais de um milhão de pessoas mal tem o que comer por causa das mudanças do clima. Com a COP 26 a decorrer em Glasgow, a TSF conversou com Arduino Mangoni , subdiretor do Programa Alimentar Mundial em Madagáscar.
As Nações Unidas estimam que entre 1 milhão e 100 mil e 1 milhão e 300 mil pessoas estejam em grave risco de fome em Madagáscar nesta altura, e que, de entre elas, vários milhares precisem já de assistência imediata. Que retrato pode traçar da situação?
Madagáscar tem aproximadamente o tamanho de França. É um dos países mais ricos do mundo no que respeita a biodiversidade e a recursos naturais. Mas, ao mesmo tempo, é um dos mais pobres, se olharmos para indicadores como a educação, a saúde, a nutrição, etc.
A região mais pobre do país é o sul. Tem mais ou menos o tamanho de Portugal e é, de maneira crónica, afetado, sobretudo, por grandes secas, mas também por ciclones e por inundações. A seca de 2021 não tem precedentes, é a mais severa dos últimos 40 anos e foi agravada por outros fatores como tempestades de areia, insegurança, inflação, as consequências da Covid-19. A pandemia desgastou as oportunidades de trabalho para as pessoas, incluindo no sul.
É uma espécie de tempestade perfeita que atingiu, de forma particular, entre 1 milhão e 100 mil e um milhão e 300 mil pessoas que estão agora numa situação de insegurança alimentar aguda. Perderam as colheitas, a deste ano também, e a situação está a agravar-se muito rapidamente. A época da escassez está agora a começar.
É a altura mais dura do ano para quem vive da agricultura. É o período que antecede a próxima colheita. E, daquilo que vemos no terreno, no que respeita a insegurança alimentar, a malnutrição, para novembro, a situação já é muito má. Por isso, infelizmente, esperamos que continue a piorar até às próximas colheitas, lá para março, abril de 2022.
Quando fala de insegurança alimentar, há vários níveis e milhares de pessoas já estão no mais grave, precisam de ajuda imediata. Como é que sobrevivem?
Sobrevivem com estratégias para enfrentar a crise. Isto quer dizer que muitas deixaram tudo para trás. de certa forma, emigraram. Venderam as terras, as casas, os utensílios de cozinha. E sabemos que, aqui, quando uma mulher vende os utensílios de cozinha, é o último passo antes de ir embora.
Vemos com frequência pessoas a comer folhas de cacos, gafanhotos e outros insetos. Escavam a terra em busca de água, mas a qualidade da água é muito má. O preço da água e de alguns alimentos está a aumentar. Portanto, basicamente, sobrevivem como podem. E os mais afetados estão a deixar as aldeias e a procurar abrigo nas áreas urbanas junto à costa.
E há muitas crianças pequenas entre elas....
As crianças são as mais fracas entre a população afetada. Quando visitamos as áreas mais atingidas ou centros de nutrição, as cenas com que nos confrontamos, partem-nos o coração.
Crianças com poucos meses, poucos anos, centenas delas, em silêncio, não há alegria. A maioria está pele e osso. Trabalhei em muitos países de áfrica - no Congo, na República Centro - Africana, no Darfur - Sudão, e nunca vi crianças no estado em que as vi aqui, no sul de Madagáscar.
As crianças é que estão a pagar o preço mais alto, a suportar as piores consequências desta crise.
Visitou recentemente um centro de nutrição de emergência no sul. quanto pessoas lá estavam e o que lhe disseram?
Em comparação com agosto e setembro do ano passado, agora, o número de novas admissões nestes centros, tanto com má nutrição severa, como moderada... esse número duplicou. Isso é particularmente grave nas crianças e ainda agora estamos no início da época de escassez. Algumas sofrem de edema. Isto quer dizer que, se não forem tratadas, enfrentam um alto risco de morte.
O que lhe dizem os adultos nesses centros?
Que andaram quilómetros e quilómetros a pé para lá chegar; que pedem que chova, senão, vai ser um desastre; que precisam de ajuda para os filhos; pedem comida, água; que os suplementos alimentares que são distribuídos às crianças, não são suficientes.
É o que dizem os pais, as mães, sobretudo. E que é precisa uma intervenção mais alargada, para atender as necessidades deles. Uma intervenção humanitária... comida, água, nutrição, mas também apoio para que possam erguer-se de novo e recuperar a autoconfiança. Acesso permanente a água, acesso a sementes para quem vive da agricultura, oportunidades de trabalho, infraestruturas, melhores escolas e centros de saúde, etc.
É necessária ajuda internacional urgente em Madagáscar?
Sem dúvida! Nos próximos 6 meses, a prioridade é salvar vidas, assumindo que vai chover em novembro e dezembro, e que as pessoas vão poder plantar e que a próxima colheita vai ser boa. Mas, ao mesmo tempo, e em conjunto com o governo, temos de reforçar a resistência das pessoas aos choques climáticos. Esta é, de facto, a primeira fome do mundo, causada pelas alterações climáticas. Em nenhum outro país encontramos as condições propícias à fome, que existem no sul de Madagáscar, por causa das mudanças do clima.
Mas como é que temos a certeza que é essa a causa direta?
Porque vemos que a quantidade de chuva está a diminuir. A chuva é muito rara. As temperaturas estão a subir. Noutros países complexos, como a Etiópia, o Sudão do Sul e o Iémen, onde também temos condições propícias à fome, essa situação deve-se a conflitos - o que acontece em Madagáscar não é isso.
Precisam mais de comida e bens de primeira necessidade ou dinheiro seria mais útil?
Precisamos de dinheiro para poder transformá-lo em alimentos disponíveis localmente, o mais depressa possível. Para os próximos 6 meses, entre novembro e o fim de abril, o Programa Alimentar Mundial precisa de 69 milhões de dólares para preencher falhas e ajudar um milhão de pessoas no sul, com distribuição de comida, incluindo planos de nutrição. O objetivo é tratar e prevenir a má nutrição no sul de Madagáscar.
O que é que espera da cimeira do clima? A situação de Madagáscar está a ser discutida lá?
Sim, o Presidente de Madagáscar esteve na COP26, esteve lá há poucos dias. Temos uma delegação do PAM de outras agências das Nações Unidas. O que está a acontecer no sul pode ser o princípio de um padrão para outros países do mundo, afetados pelas alterações climáticas.
O Presidente esteve lá, mas o que é que ele trouxe? Uma mão cheia de nada? Houve resultados, de facto?
R: Ele e outros chefes de estado assumiram um compromisso para travar a desflorestação. Nos últimos 50 anos, Madagáscar perdeu cerca de metade da floresta. Portanto, este é um passo muito importante, mas não tenho a certeza sobre mais nenhuma ação do Presidente, nesse sentido.
Tem lidado com diferentes cenários de fome. diria que este é o pior que já viu?
Só me recordo de algo semelhante, quando era pequeno e via as imagens da Etiópia, nos anos 80. e, no que respeita às crianças, sim, é o pior. Mas, ao mesmo tempo, há um paradoxo, porque não há uma guerra, um conflito, por isso, em princípio, deveríamos ter feito melhor.
Estou a falar do Programa Alimentar Mundial, da comunidade internacional, do governo. Deveríamos ter conseguido conter esta situação mais cedo. No entanto, os recursos que tivemos até agora - o PAM e todos os agentes humanitários - não chegaram para fornecer alimentos a todos os que precisam.
Portanto, o apelo que hoje faço é que, ajudar o PAM com esses 69 milhões de dólares, pode significar que vamos, finalmente, conseguir dar a essas pessoas toda a alimentação que lhes falta e só isso pode reverter esta tendência, garantir que as salvamos e que chegam de boa saúde à próxima colheita.