Uma jornalista contra a máquina do ódio de Bolsonaro

Um tribunal condenou Bolsonaro a indemnizar Patrícia Campos Mello. É uma das mais premiadas jornalistas no Brasil. O livro "A Máquina do Ódio" é agora publicado em Portugal. Grande entrevista na TSF.

O livro "A Máquina do Ódio" mostra de que forma as redes sociais são manipuladas por líderes. Acompanhando eleições na Índia, nos EUA e no Brasil, mas também campanhas violentas na Venezuela, Nicarágua ou Hungria, a repórter mostra como esse exército de 'trolls' faz guerra contra a verdade. A Máquina do Ódio é também um manifesto em defesa da informação.

Apresentemos a autora. Patrícia Campos Mello é jornalista e escritora brasileira. É repórter e colunista da Folha de S. Paulo. Durante a campanha eleitoral de 2018, denunciou como a campanha Bolsonaro teve financiamentos ilegais nas redes sociais realizados por empresários. Por esta reportagem, foi alvo de perseguições e ataques de ódio. Em setembro de 2019, quase um ano depois da campanha eleitoral, o WhatsApp admitiu pela primeira vez que a eleição brasileira de 2018 teve uso ilegal de envios maciços de mensagens, com sistemas automatizados contratados por empresas.

Patrícia recebeu o Prémio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comité para proteção de Jornalistas (CPJ), o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha e o V Prémio Petrobras de Jornalismo. É comentadora da Band e Band News. Tem formação em Jornalismo pela USP e mestrado em Business and Economic Reporting pela Universidade de Nova York, com bolsa de estudos.

De 2006 a 2010, foi correspondente em Washington pelo Estado de S. Paulo. Cobriu a crise económica americana, a guerra do Afeganistão, as eleições de 2008, 2012, 2016. Na Casa Branca, entrevistou o presidente George W. Bush. Idealizou o premiado projeto "Mundo de Muros", especial multimédia sobre a crise das migrações feito em quatro continentes.

Esteve diversas vezes na Síria, Iraque, Turquia, Líbia, Líbano e Quénia, fazendo reportagens sobre os refugiados e a guerra. É autora do livro "Lua de Mel em Kobane", da Companhia das Letras, sobre um casal, que conheceu na Síria, que sobrevivem ao cerco do Estado Islâmico. Foi também a única repórter brasileira que, em 2014 e 2015, cobriu a epidemia de ébola em Serra Leoa.

É também autora de "Índia - da miséria à potência". É senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). Na próxima semana, vai ser editado em Portugal o livro "A Máquina do Ódio"...

Patrícia, como recebeu a notícia de que o Supremo Tribunal condenou o Presidente a pagar-lhe, a pagar à Patrícia, uma indemnização por danos morais, devido a comentários machistas e degradantes?

Fiquei super feliz com a decisão. É em primeira instância, então ele pode recorrer da decisão, mas, se somarmos essa decisão à do Eduardo Bolsonaro [em janeiro, a jornalista já tinha conseguido outra vitória judicial contra a família do Presidente brasileiro, nesse caso com a condenação de um dos filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, a uma multa de 30.000 reais, cerca de 4.400 euros], é uma ótima sinalização, mostra que nada disso é normal, porque não é normal você ser um Presidente da República, ou o filho do Presidente, um deputado, e ofender e fazer calúnias sobre jornalistas. O valor é pequeno, mas a ideia de facto não era o valor, era mesmo a sinalização, porque isso vinha numa escalada de agressões verbais, e até físicas, contra jornalistas. E, de qualquer maneira, eu vou doar uma parte da indemnização para uma associação de proteção às mulheres, então não era mesmo a questão financeira. Mas ele vai recorrer dessa decisão - se puder, até ao Supremo Tribunal americano.

Vinte mil reais (2900 euros) não pagam os danos morais, os insultos, a campanha de ódio alimentada pelo círculo próximo de Jair Bolsonaro, mas estes casos são também sintomas do momento que o jornalismo no Brasil vive. Um relatório da Federação Nacional de Jornalistas do Brasil (Fenaj), divulgado em finais de janeiro, contabilizou um total de 428 violações da liberdade de imprensa no ano passado no país, entre agressões físicas e verbais e intimidação, o dobro dos casos por comparação com 2019. De acordo com esse relatório, o Presidente Jair Bolsonaro está diretamente ligado a 40% desses ataques. Patrícia, quem acompanha a vida política no Brasil sabe que a relação dos anteriores presidentes, nomeadamente Lula, com a imprensa não era fácil, conheceu momentos de grande crispação, mas com Bolsonaro é diferente, não?

Temos sempre de recordar que noutros governos anteriores também havia uma animosidade em relação a imprensa (no governo Lula, no governo Dilma,...), mas nada nem parecido com o que estamos a ver no governo Bolsonaro. Obviamente que a imprensa nunca vai ser querida do governante em funções, porque o nosso trabalho - justamente - é encher o saco deles, investigar, questionar, mas o que diferencia o governo Bolsonaro é que são agressões muito personalizadas. Eles escolhem determinados jornalistas, fazem campanhas de difamação, sinalizam os seus seguidores de que o podem fazer também. Funciona como um sinal verde. De cada vez que o Presidente da República ou o filho do Presidente faz uma ofensa, uma mentira, uma agressão contra o jornalista, há milhões de seguidores que se sentem autorizados a fazer isso também. No ano passado, um fotógrafo do Estadão, o Dida Sampaio, foi agredido numa manifestação a favor do Presidente. Bateram-lhe e o Bolsonaro, a princípio, recusou-se a condenar essa agressão. Por exemplo, há dias, houve um encontro dele com os apoiantes ali perto do Palácio da Alvorada, onde ele mora, e um deles estava com uma placa onde estava escrito "Globo lixo". O Presidente da República pegou na placa e levantou-a: "Globo lixo". Temos colegas da Globo que estão na rua e são agredidos, assim é o nosso dia-a-dia. É muito... ele chegou a dizer a um repórter "eu tenho vontade de te dar um murro na boca"... então, é muito pior. Não estou a dizer que os outros eram super tolerantes à crítica, mas o que este governo faz é acima de qualquer coisa. E o facto de o próprio Presidente fazer isso - ele diz as coisas ele, faz as coisas - é muito absurdo.

Como jornalista experiente que é, como vê o atual momento político no Brasil? Bolsonaro pode estar a um passo do impeachment? O presidente do Congresso, Artur Lira, exigiu mudanças no combate à pandemia e avisou que os remédios do Parlamento são todos amargos...

Há uma frase em Brasília que é famosa e que diz o seguinte: o centrão (que é esse centro um pouco amorfo ideologicamente de legisladores) não se compra, só se aluga. Então, o apoio do centrão, que, por exemplo, a Presidente Dilma Rousseff também tinha até certa altura, é uma coisa que pode ser efémera. No entanto, por exemplo, o congresso está a debater o orçamento que vai libertar milhões de reais em emendas para vários legisladores do centrão, então eu acho que, por enquanto, no raciocínio político de líderes do congresso e do Senado, eles estão insatisfeitos com o governo Bolsonaro, porque eles estão a ver um colapso do país, e não só do sistema de saúde, mas não a ponto de um impeachment. Ou seja, ainda estão agraciados e a receber as suas benesses por causa do apoio ao governo, seja em emendas parlamentares, ministérios que tentam alcançar. Agora eles acabaram de conseguir derrubar o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Araújo. Concluindo, eu penso que ainda não há essa insatisfação. No cálculo do centrão, eles têm que não ter mais nada a ganhar com esse governo, mas, por enquanto, eles estão a ganhar. Isso não significa que o congresso não vai apertar. Vemos uma pressão cada vez maior para uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre a gestão da pandemia. Isso é uma pressão muito grande sobre o Bolsonaro, então eu acho que, de facto, há um endurecimento, mas ainda está muito longe. Creio que para um processo de impeachment falta uma coisa básica que é gente na rua, manifestações populares, sentir que a população está contra o governo, não há isso. Estamos no meio de uma pandemia, isso não está a ser feito, só há pequenas manifestações a favor do governo, porque essas pessoas são negacionistas da pandemia, portanto, vão para a rua, agora toda uma grande parcela da população que está contra o governo, eles não vão para a rua, porque não se pode, ninguém o faz a não ser os negacionistas. E, sem haver essas manifestações, populares é muito difícil o Congresso tomar essa medida de começar uma manobra de impeachment.

Porque não haveria apoio popular para isso...

Segundo o último Datafolha, mais de cerca de 54% dos brasileiros acham que a condução do Presidente Bolsonaro na pandemia é má, não deu certo, mas ainda não há uma maioria de pessoas a apoiar a destituição do Presidente. Falta ainda esta expressão popular que, no momento, é tão difícil de se materializar.

A Patrícia publicou, no último domingo, um artigo na Folha em que revela que um grupo de mais de 300 diplomatas publicou uma carta a acusar a política externa atual de causar "graves prejuízos para as relações internacionais e à imagem do Brasil" e a pedir a saída de Ernesto Araújo da chefia do Ministério das Relações Exteriores... Ernesto Araújo era já um ministro cercado..., ameaçado de demissão devido a pressões da cúpula do Congresso, de militares, do agronegócio e de grandes empresários... Foi a carta dos diplomatas que fez cair o ministro?

Eu acho que foram duas coisas. Por um lado, o Ernesto tinha ido a uma sessão no Senado e tinha sido muito pressionado, porque a chamada bancada agrícola do Senado, mais outros senadores e deputados estavam especialmente descontentes com as agressões do Itamaraty contra a China. A China é o principal comprador de produtos agrícolas do Brasil, estamos no meio da negociação de vacinas e eles é que produzem a maior parte das substâncias ativas das vacinas. Ele tinha ido a uma sessão do Senado e tinha sido muito pressionado, houve senadores a pedir abertamente a saída dele. No dia seguinte, saiu essa carta de 300 diplomatas, que é uma coisa muito fora do comum, porque um diplomata é um funcionário de carreira, eles são muito ciosos da hierarquia, então para fazerem isso...

E para completar, a presidente da Comissão de relações exteriores do Senado, Kátia Abreu, partilhou a reportagem da carta no Twitter. Aí eu acho que juntou tudo isso, Araújo sentiu-se mais emparedado do que nunca e foi agredir a senadora Kátia Abreu, dizendo que ela o tentou pressionar a dar sinais positivos aos chineses no 5G. Isso aí foi o prego no caixão, porque todos os senadores que já estavam contra ele pressionaram o Bolsonaro. Foi uma mistura de pressão do congresso que já existia, ele já era um pouco o bode expiatório do desastre sanitário - já se tinham livrado do ministro da Saúde, agora livraram-se do ministro das Relações Exteriores. Juntou-se pressão do Congresso mais diplomatas que normalmente não se manifestam dessa maneira tão assertiva, e aí como que ficou decidido o destino dele.

Um dos signatários da carta disse à Folha - estou a ler o seu artigo - que, embora insuficiente, a saída do chanceler é fundamental para a reversão da perda de credibilidade do Brasil no cenário internacional e um sinal importante para desbloquear possibilidades de cooperação futuras fundamentais nesse momento de pandemia... Sabemos que, mesmo em tempos políticos de maior convulsão, o Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil, era sempre visto como um farol de estabilidade, uma escola de diplomacia com prestígio internacional... Isso estava perdido com o agora ex-ministro?

Estava! Várias gerações de diplomatas dentro do Itamaraty diziam que tinham vergonha, sempre contavam de colegas de outros países dizendo: "nossa, mas que coisa, como vocês se sentem?!". Eles achavam humilhante essa decadência da influência do Itamaraty, que sempre foi um órgão conceituado de pessoas muito bem informadas. Também o próprio Ernesto Araújo fez uma declaração em que diz: "Tudo bem a gente ser pária internacional, mas somos párias ao lado dos que defendem a liberdade, como os Estados Unidos". Na época, os EUA sob o Presidente Donald Trump; então até se orgulhava dessa posição de pária em que o Brasil ficou. Estamos alinhando com todos esses regimes mais extremos, com a Hungria, com a Polónia, com a Arábia Saudita, e os diplomatas estavam muito deprimidos com isso, vários deles até pediram para ficar colocados em consulados, porque no consulado é uma posição de menos prestígio, a pessoa não tem que sujar a mão para participar na política externa.

A atual imagem internacional do Brasil estava a prejudicar os esforços do país na luta contra a pandemia?

Completamente. Há efeitos concretos, hoje em dia, da política externa brasileira. O governo Bolsonaro conseguiu irritar a China e os Estados Unidos. A China, por uma série de agressões, seja do deputado Eduardo Bolsonaro, seja do próprio Ernesto, que chamava o coronavírus de "comunavírus", e por diversas declarações que pediram a cabeça do embaixador chinês aqui; e os Estados Unidos porque o Brasil estava tão alinhado com o Donald Trump que foi um dos últimos países a reconhecer a vitória de Biden. E não só isso: o próprio Ernesto Araújo chegou a escrever numa rede social que as pessoas que invadiram Capitólio no dia 6 de janeiro eram cidadãos de bem e ele também fazia parte desse pessoal que disseminava a desinformação sobre a eleição fraudulenta nos Estados Unidos... Concluindo, o país ficou numa situação em que a China, um dos maiores produtores das substâncias essenciais para as vacinas, tem uma má vontade com o Brasil; e os Estados Unidos sob Biden também, tanto que recentemente o chanceler Ernesto Araújo chegou a dizer que estava a negociar com os Estados Unidos a doação de vacinas excedentes que eles tinham, mas o que aconteceu foi que eles fizeram essa doação para o Canadá e o México, não fizeram para o Brasil. E tivemos outra coisa recente que foi o Robert Menendez, que é o presidente do comité de relações exteriores do senado americano, dizendo que, enquanto o Ernesto Araújo e o Jair Bolsonaro não se desculpassem por terem apoiado a invasão Capitólio, a relação iria continuar envenenada.

O próprio vice-Presidente Hamilton Mourão alertou que o número de mortes no Brasil por Covid - mais de 300 mil - ultrapassou o limite do bom senso... Isto tem significado político nesta altura?

Tem e não tem. É engraçado, o vice-presidente Mourão... ele começou o governo Bolsonaro como se fazendo de um contraponto ao Bolsonaro, ele era o razoável. Quando o Presidente Bolsonaro falava uma coisa bem radical, ele se contrapunha; só que aí ele virou um alvo de todas as campanhas da máquina do ódio, ele é muito boicotado pelo Presidente, então ele começou, pelo menos em público, por exemplo, a concordar com tudo, deixou de ser uma pessoa a fazer um contraponto à política. O que ele falou agora é inesperado diante do comportamento dele nos últimos meses, já que ele estava muito mais alinhado com o Presidente Bolsonaro. Mas eu não diria que é uma coisa chocante.

A polarização Bolsonaro-Lula é o que o Brasil vai ter no próximo ano, ou acredita que ainda possa haver uma terceira via a complicar as contas do atual e do antigo Presidente?

Ótima pergunta. Nós estávamos a ver formar-se no Brasil uma frente ampla unindo centro-direita e centro-esquerda para se posicionar como uma candidatura competitiva contra o Jair Bolsonaro. Com o ressurgimento do Lula, que tem um nível de popularidade brutal ainda (os eleitores lembram-se muito do ganho de rendimentos no governo dele), a hipótese de um candidato do centro ficou muito encolhida, mas, se pensarmos em 2022, se houver uma candidatura forte de centro-direita capaz de chegar à segunda volta com Lula, vencendo o Bolsonaro na primeira volta, isso seria uma segunda volta muito competitiva, teríamos o Lula de um lado e uma candidatura de centro-direita do outro. Porque se ficar Lula-Bolsonaro vai ser de novo uma eleição plebiscitária, embora eu pense que muita gente que em 2018 votou contra o Lula, contra o Fernando Haddad, na verdade, queria livrar-se do PT, e, por isso, votou em Bolsonaro, mas eu acho que muitas pessoas arrependeram-se desse voto. Tudo depende, na verdade, da velocidade da recuperação da economia brasileira, da velocidade da imunização da população, há muito caminho até lá.

O que é o livro "A Máquina do Ódio", que agora vai ser publicado aqui em Portugal?

Originalmente, era uma obra sobre como governos ao redor do mundo estão a usar as redes sociais como forma de manipular o debate público e manipular o eleitorado, muito focado nos casos dos EUA, Índia e Brasil, que são locais onde eu venho cobrindo eleições há algum tempo. O livro ganhou uma outra dimensão quando, em fevereiro de 2020, eu passei a ser atacada pelo próprio Presidente e pelo filho do Presidente, uma campanha maciça online, e isso deixou muito claro como esses governos populistas precisam moldar e manipular as narrativas nas redes sociais de informação distorcida; e, por outro lado, para essa estratégia ser mais eficiente, eles precisam de desacreditar e deslegitimar a imprensa profissional, que é quem vai verificar a informação, quem vai investigar. Então, são duas coisas: ataques contra imprensa/ataques contra jornalistas e desinformação. O livro acaba por ser uma combinação dessas duas coisas.

A "Máquina do Ódio" é também apresentado como sendo um manifesto em defesa da informação...

É, sim, um manifesto em defesa da informação, porque hoje em dia temos um problema de cerne, que é não termos uma base comum de factos em que as pessoas acreditam. Hoje litigam-se coisas básicas como a Terra ser redonda. É preciso valorizar o jornalismo profissional (que não é opinião), que ao menos parte do pressuposto de que vai ouvir todos os lados, vai verificar as informações. É uma coisa muito, muito preciosa. Quando começou a internet, celebrámos muito a democratização da informação, todo o mundo podia ser um repórter-cidadão, toda a gente podia chegar diretamente às fontes, isso realmente é uma coisa muito positiva, só que isso foi usado pelos líderes populistas, foi instrumentalizado, e não há mais a figura do gatekeeper da imprensa, ficamos apenas com uma rede onde, se não soubermos procurar, acabamos por ter uma visão parcial e distorcida do mundo.

Entretanto, passaram quase três anos desde as denúncias que a Patrícia fez durante a campanha eleitoral que levou à eleição de Bolsonaro em 2018, com o disparo massivo de mensagens com desinformação sobre a campanha adversária - no caso, a de Fernando Haddad. Sente que já foram tomadas medidas para evitar que o que aconteceu nas eleições brasileiras não volte a acontecer ou corremos o risco de voltar ver situações humilhantes nas próximas eleições, seja no Brasil ou aqui na Europa?

No Brasil, acho que algumas coisas foram feitas. Por exemplo, o Tribunal Superior Eleitoral passou a proibir estes disparos em massa e o próprio WhatsApp passou a processar as agências que vendem esse tipo de serviço, porque isso desvirtua a função original do WhatsApp; então isso foi feito, também há limitação no número de mensagens reencaminhadas quando uma mensagem fica viral; isso tem que ver com a eleição brasileira, mas também tem a ver com linchamentos e a eleição na Índia e em vários lugares. Mas, dito isto, o WhatsApp ou o Telegram ou o Signal, eles têm todos um problema - que é algo muito positivo, por um lado, e muito problemático por outro. O facto de a aplicação ser criptografada, por um lado, é excelente, porque garante a sua privacidade, não vai ser espiado, por exemplo, por um governo, se você for um ativista, ou um jornalista, ou um político. Por outro lado, é praticamente impossível identificar a origem desse tipo de campanha de desinformação. Como é criptografado, não se sabe quem começa a campanha de ódio. É uma coisa muito difícil, tanto que, nas eleições municipais do ano passado aqui no Brasil, voltámos a fazer reportagem sobre isso, mostrando que continuaram a usar os disparos de mensagens em massa e continuam a usar a raspagem de dados das pessoas, que é uma coisa que você consegue descarregar da internet por 300 ou 400 reais (menos de 50 euros), um software super barato em que se consegue extrair nomes e números de telemóveis de pessoas no Instagram e no Facebook. Por exemplo, se eu sou candidato e quero atingir ali um eleitorado que gosta do Benfica, eu vou ao hashtag Benfica e consigo puxar todos esses nomes numa violação de privacidade e aí uso outro software e faço disparos em massa para essas pessoas. Isso ainda é feito, é uma coisa difícil de coibir, mas, independentemente dos instrumentos, a questão é que a tecnologia vai evoluindo. Coisas que eu acho que são ameaça para a eleição do próximo ano, ou para Portugal ou para a Europa: por exemplo, no caso do Brasil, o que se está a desenhar é exatamente aquilo que Donald Trump fez nos EUA, que é acusar que as eleições foram fraudulentas. No Brasil, há meses que o Bolsonaro vem dizendo que, se não houver uma mudança na votação, se não tiver voto impresso, a eleição terá sido fraudulenta, igualzinho ao que o Trump fez, dizendo da eleição dos votos pelo correio. E aí vimos o resultado, no dia 6 de janeiro, no Capitólio. Então, já temos toda essa máquina de desinformação a tentar deslegitimar a eleição a ser montada. Para isso, usam os vídeos que se tornam virais (na Índia isso já era usado). Nos Estados Unidos, na eleição de 2020, eles usaram uma aplicação do Donald Trump para sugar dados das pessoas, fazendo campanhas direcionadas; no Brasil, isso também vai acontecer, vai continuar no WhatsApp, eu acho que tudo isso é sempre um jogo do gato e do rato. Porque, além de ser difícil controlar uma coisa que é criptografada, no caso das mensagens, a tecnologia vai evoluindo e eles vão descobrindo novas coisas para fazer e é difícil conseguir regular isso sem censurar; ficamos sempre naquele binómio liberdade de expressão versus liberdade para manipular e disseminar mensagem de ódio.

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