Este é um orçamento paradoxal: promete distribuir muito dinheiro e assume como grande mérito a redução da dívida e do défice. A razão é a diferença entre a inflação e a proteção de rendimentos. Por muito que o Primeiro Ministro diga o contrário, voltámos a ter austeridade. Se os salários e pensões aumentam menos que a inflação, há um corte do rendimento real que pode ser maior e mais permanente que um corte nominal. Quando o Primeiro Ministro insiste que não há corte pois não se recebe um montante menor de salário ou pensão faz um truque semelhante ao daquelas empresas que não aumentam o preço de um produto, mas diminuem a quantidade no pacote. O preço é o mesmo, mas recebemos menos.
O Primeiro Ministro recusa assumir a austeridade que pratica pois sempre afirmou que qualquer austeridade é sempre desnecessária. Mas esta recusa tem um custo: reforça a enorme falta de transparência da política de rendimentos e orçamental deste governo. Nada de muito novo para quem desenhou uma política de cativações que conduziu, mesmo durante os melhores anos recentes da economia europeia e internacional, ao mais baixo investimento público nas últimas decadas em Portugal. Algo que levou mesmo um artigo académico a argumentar que afinal Portugal não tinha abandonado a austeridade, apenas se tinha transformado numa "austerity by stealth" (em português: austeridade disfarçada). O que é novo nesta nova forma de austeridade disfarçada é que ela voltou a ter de ser uma austeridade dos rendimentos e não apenas do investimento. O problema da falta da transparência é que não conseguimos saber com clareza aquilo que é mais fundamental quando temos austeridade: conhecer o seu impacto distributivo e se protege aqueles com rendimentos mais baixos. Não será por acaso que os portugueses em risco de pobreza aumentaram significativamente.
Dito isto, não quero substituir a demagogia do Primeiro Ministro por outra demagogia. A verdade é que a austeridade continuará a ser necessária enquanto faltar dinheiro ao país e tivermos uma dívida tão elevada para pagar. Não reconhecer isto é querer esconder ao país a realidade em que as nossas escolhas devem ocorrer. Mas essas escolhas existem. Tal como existiam no período da troika. Era e é legitimo discutir as formas, graus e distribuição da austeridade. O que é desonesto é ou negar a necessidade dessa austeridade ou esconder a austeridade que se pratica.
Ora até a discussão sobre o grau de austeridade que seria agora necessário é pouco transparente. De que outra forma a podemos caracterizar quando o Primeiro Ministro, por um lado, argumenta a favor da moderação salarial em Portugal, alertando para o risco de uma espiral inflacionista, e, por outro lado, critica o aumento das taxas de juro do Banco Central Europeu com o argumento de que esta inflação não decorre de uma pressão da procura e do aumento dos rendimentos...
Esta mesma inconsistência é visível no Acordo de Rendimentos celebrado na concertação social. Esta é seguramente uma grande vitória política do governo e António Costa e, em abstracto, algo positivo para o país. O crescimento dos rendimentos tem de ser um objetivo prioritário num país que é na Europa um daqueles em que o salário mediano está mais próximo do salário mínimo e onde uma maior percentagem dos trabalhadores (praticamente ¼) apenas recebe o salário mínimo. Claro que os rendimentos reais não crescem por decreto e o acordo faz bem em relacionar isso com a competitividade. O que mais pode contribuir para aumentar os rendimentos é uma economia mais produtiva e competitiva e que suba na cadeira de valor.
O grande problema do acordo é a sua credibilidade. Os pressupostos em que assenta são bastante otimistas face à realidade atual. O acordo presume uma inflação média de 2% nos próximos 4 anos. Ora, de acordo com o Banco de Portugal a inflação este ano deve ser de 7,8% e o BCE apresentou há poucos dias para toda a zona euro uma taxa de inflação estimada para 2023 de 5,8%. O acordo também assume um crescimento médio da produtividade do trabalho de 1,5% (quando o Conselho de Finanças Públicas aponta para os 1,1%).
O risco, mais uma vez, é discutirmos uma realidade alternativa em vez da nossa. Ora, para podermos sonhar temos de começar por tomar as opções certas com base no que a realidade, e não os sonhos, nos oferece.