A funcionalização da política e a endogamia governativa

O facto de António Costa ter limitado o campo de recrutamento na recente remodelação do seu governo tem tanto de controverso como de pouco surpreendente. Desde logo porque, paradoxalmente, tendo recentemente iniciado a legislatura com uma maioria absoluta, António Costa e o seu governo dão sinais de fim de ciclo. Na verdade, mais do que o reforço político obtido nas últimas eleições parecem contar os 7 anos de governo. Neste contexto, e após os inúmeros escândalos que têm assolado o governo, a capacidade de recrutamento de nomes fortes da sociedade civil era limitada. Mas, mesmo que existisse, é pouco provável que António Costa a utilizasse. Primeiro, porque as decisões políticas de António Costa são dominadas pela tática política. A sua intuição seria sempre ler a saída de Pedro Nuno Santos como abrindo espaço a uma oposição interna no PS à sua liderança. Ao promover, dentro do governo, nomes próximos de Pedro Nuno Santos procura continuar a prender este ao governo e a limitar o seu espaço de diferenciação. Segundo, e o mais relevante em termos estruturais, é que a funcionalização da política parece estar no centro da cultura política de António Costa.

O caso da ministra da Habitação é apenas o exemplo mais extremo dessa funcionalização da política. Toda a sua carreira profissional decorreu dentro de um gabinete ministerial. A única exceção foi a eleição como deputada, mas, sendo Portugal um país em que os deputados são eleitos em listas coletivas dos partidos, também isso resulta de uma escolha partidária. Não está em causa o facto de ter feito toda a sua carreira no Estado, mas sim de ter feito toda a carreira através de nomeações políticas do seu Partido. Chegou a Ministra sem nunca ter sido sujeita a qualquer avaliação do seu mérito profissional independente do seu partido. Isso não quer dizer que seja incompetente. Mas significa que não temos qualquer forma de escrutínio público sobre a sua competência e adequação às funções. António Costa pode argumentar, no entanto, que quem responde pelo governo, em última análise, são ele e o Partido Socialista. Logo, o que interessa é o juízo que ele faz sobre as qualidades de quem convida para o seu governo e não o que os portugueses pensem deles. O juízo dos cidadãos deve ser feito, sim, sobre a atuação do governo. Há três problemas com tal tese, no entanto.

Primeiro, porque o escrutínio público não se deve limitar ao ato eleitoral, nem sequer à discussão sobre as opções políticas do governo. Deve incluir também os processos de decisão adotados pelos governos, incluindo a seleção dos seus membros e organização interna. Sem poder escrutinar essas dimensões os cidadãos terão menos confiança no governo e sem esta o governo será menos eficaz.

Segundo, esta funcionalização governativa contraria a natureza constitucional e democrática de um governo. Um governo não é um conjunto de "funcionários" ao serviço do primeiro-ministro. O governo é um órgão coletivo em que cada membro tem uma autoridade própria. Decidem sob a liderança de um primeiro-ministro, mas coletivamente, incluindo escrutinando-se mutuamente mas também contrariando, se for o caso, as posições do próprio primeiro-ministro. É por isso que é, desde logo, complicado ter familiares no Conselho de Ministros (há um conflito de interesses natural no escrutínio das propostas legislativas apresentadas por outro familiar por exemplo). Mas é, igualmente, limitador do pluralismo e escrutínio interno ao governo se a grande maioria dos seus membros deverem as suas carreiras ao primeiro-ministro ou dependerem excessivamente deste. Serão ministros com menos autoridade técnica ou política própria para exprimirem posições autónomas e, se necessário até, opostas às do primeiro-ministro.

Por último, esta opção do PM corresponde a uma clara opção por uma cultura política assente na profissionalização da política. Há democracias em que isso é, de facto, a tradição. Em que os políticos são verdadeiros profissionais da política, com carreiras totalmente desenvolvidas nessa esfera. Só que, nos países em que isso acontece com algum sucesso a cultura política impõe uma forte separação entre administração e política. Ou seja, a abertura à sociedade civil e as competências técnicas necessárias a melhores políticas públicas são asseguradas de outra forma. No nosso caso, com uma cultura política em que o controle partidário da administração já é tão forte, a profissionalização da política iria agravar ainda mais este enorme problema.

O filme Os Crimes dos Rios de Púrpura é uma poderosa metáfora sobre os riscos da endogamia numa comunidade académica. A política não é diferente e o primeiro-ministro, e todos nós, devíamos talvez voltar a ver esse filme e refletir sobre isso.

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