A velha e a nova crise académica

Ser estudante deslocado da sua terra natal e colocado em universidades ou politécnicos em Lisboa, no Porto ou em Coimbra tornou-se uma missão ímpar para os alunos e para as famílias. Nunca foi tão difícil encontrar casas para estudantes. As residências públicas sempre foram escassas e o mercado de arrendamento é parco e com preços proibitivos.

Muitas famílias passam necessidades e chegam a endividar-se, formal ou informalmente, para por os filhos a estudar. Fazem sacrifícios acreditando que o elevador social, um dia, vai funcionar. Quando se junta à renda de uma casa o valor das propinas públicas ou a mensalidade de uma faculdade privada - porque, por vezes, a faculdade do Estado fica à distância de um ou duas décimas na nota final ou porque a pandemia inflacionou as notas como nunca -, os agregados ficam com a corda na garganta ou, simplesmente, desistem ou adiam a entrada dos filhos no ensino superior, uma decisão tão penosa para ascendentes como para descendentes.

Na última sexta-feira, assinalou-se o Dia Internacional do Estudante. A nova geração lusitana é a mais qualificada de sempre. A formação e o ensino são armas poderosas para retirar famílias da pobreza. A educação continua a ser o melhor investimento, mas temos todos de acreditar nisso e o Estado tem de fazer a sua parte, seja ao nível das condições de ensino seja de alojamento a preços comportáveis para o comum dos mortais que vem de Freixo de Espada a Cinta para a capital ou para outras cidades grandes. Um dia antes, na quinta-feira, centenas de estudantes saíram às ruas em várias cidades em protesto e pediram ao Governo o fim das propinas, mais alojamento estudantil público e a preços acessíveis, cantinas para os universitários e maior financiamento público no ensino superior.

Os estudantes não são só um garante do desenvolvimento, mas da própria saúde da democracia. Lá fora, lideraram a primavera árabe, onda revolucionária de manifestações no Médio Oriente e no norte da África que começou no final de 2010. Cá dentro, nos anos 60 enfrentaram a ditadura e deram voz e corpo à crise académica. Mais tarde, em 1993, manifestaram-se contra as provas globais no secundário e as propinas no ensino superior e quatro baixaram as calças perante o ministro Couto dos Santos.

Informados e inconformados, os estudantes são o pulsar fresco de uma democracia saudável. Têm conhecimento, argumentos, energia, motivação e inquietação para por em casas velhos paradigmas ou, simplesmente, questionar a razão que leva tantos conformados a dizer "porque sempre foi assim". Foram também os estudantes que sempre lutaram pela liberdade, incluindo a de imprensa, e lideraram movimentos culturais. Muitas vezes quiseram colar aos estudantes o título de rasca. Mas não, a nova geração pode estar "à rasca" e com só uns trocos no bolso, mas não é rasca, tem competências e acumula saber.

A crise académica está quase a fazer 54 anos, pois começou a 17 de abril de 1969. Eclodiu quando não foi permitido aos estudantes o uso da palavra durante uma inauguração do edifício das matemáticas. Os alunos, que já estavam em protesto exigindo a reintegração de professores e a democratização do ensino superior, tomaram conta da sala onde decorria a inauguração. A crise agudizou-se e culminou na prisão de vários dirigentes académicos e a ocupação de Coimbra por forças militares e policiais. À greve e à falta de comparência aos exames pelos estudantes, o governo respondeu não só com detenções, mas com a mobilização para a guerra do ultramar.

Hoje os tempos são outros, o conflito armado é diferente e está a Leste, mas as armas do conhecimento e da palavra são muito mais poderosas. Respeitemo-las dando esperança à geração que tem a responsabilidade de continuar a zelar pela nossa democracia.

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