Afinal há austeridade boa e austeridade má

A austeridade aí está. Assume a forma mais cega. Chama-se inflação. Corta todos os rendimentos por igual e, se nada for feito, de forma permanente. O governo nega. Diz que não há austeridade porque não corta os salários nominais. Mas pensem no seguinte exemplo. Imaginem que vos prometo um salário de 1000 euros e arrendar-vos uma casa por 600. Imaginem também que o ano seguinte vos aumento o salário em 50 euros mas, ao mesmo tempo, também aumento o custo de arrendamento em duzentos. Na prática estou a cortar-vos o salário em 150 euros. Mais do que se vos cortasse o salário nominal em 50 sem aumentar o custo da renda... Quando o primeiro-ministro diz no parlamento que não há cortes, porque isso só acontece quando se diminui o salário nominal, deve achar que o dinheiro vale pelo papel em que se imprime e não por aquilo que se pode comprar com ele. Ou então está apenas a procurar enganar-nos.

A verdade é que, tendo o governo anunciado aumentos dos salários nominais mais baixos do que a inflação, temos cortes: o que vamos poder comprar com esse dinheiro é menos do que antes. Mais, se esses cortes não vierem a ser compensados no futuro, arriscamos a que se tornem cortes permanentes.

Quer isto dizer que o governo devia aumentar todos os salários acima da inflação? Essa é uma questão que, com frontalidade, aquela que faltou ao PM no parlamento, temos de assumir ser difícil. Há quem defenda que não faz sentido esta austeridade salarial pois a atual inflação não é induzida pelos salários, mas sim pela "desglobalização" (a interrupção das cadeias globais de produção) e pela guerra. E é verdade que num contexto em que todos os governos europeus protegem os rendimentos de forma muito acentuada não vai ser uma política de contenção salarial do governo português que vai impedir pressões inflacionistas no espaço económico comum que é a Europa.

Por outro lado, o risco de aumentar muito os salários, para responder à inflação é poder contribuir para ancorar as expectativas inflacionistas, alimentando um ciclo vicioso de inflação. E o governo parece, igualmente, preocupado com a leitura que os mercados podem fazer de uma política excessivamente expansionista para um país como o nosso ainda muito dependente do acesso aos mercados financeiros internacionais. Já lá vão os tempos em que os socialistas ameaçavam fazer tremer as pernas dos banqueiros internacionais.

Neste contexto, compreendem-se as cautelas do governo embora me pareça que, atendendo à natureza peculiar desta inflação, poderia ter sido um pouco mais ousado na reposição dos rendimentos. Aquilo com que concordo seguramente é com a preocupação de proteger mais os rendimentos mais baixos. Num contexto de austeridade como este, essa deve ser a primeira preocupação. Mas não ignoremos também que isso irá agravar a pirâmide invertida que temos na nossa função pública em que é nas funções mais qualificadas que o Estado pior paga em comparação com o setor privado (como é o caso dos médicos, mas não só). Se esta abordagem se justifica em contexto de austeridade, o problema da perda de quadros qualificados na administração e serviços públicos terá de ser abordado de forma séria logo que possível.

Em momentos difíceis não existem soluções fáceis. O problema deste governo é que sempre negou que assim era. António Costa sempre apresentou a austeridade como uma escolha e não uma necessidade. A resistência em a reconhecer vem disso mesmo. Mas tem um custo. Parafraseando um personagem da série Chernobyl: quanto mais tempo escondermos a verdade, maior o custo da mentira.

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