Algo de estranho tem vindo a suceder na política. Podem multiplicar-se escândalos, crises e certos líderes até podem mesmo perder popularidade, mas não perdem votos. Há vários exemplos de líderes e governos imersos em contestação e insatisfação sem reflexo nas intenções de voto nos respetivos partidos.
Comecemos lá por fora. No Reino Unido, há atualmente um enorme escândalo resultante de revelações feitas por quem era, até recentemente, o mais próximo e influente assessor do primeiro-ministro britânico. Dominic Cummings, assim se chama esse ex-assessor, fez revelações, mediaticamente avaliadas como explosivas, revelando uma gestão da pandemia caótica e onde a obsessão de Boris Johnson pela sua imagem pública prevaleceu sobre o que devia ter sido feito. Cummings fez muitas outras revelações, algumas alegadamente suportadas em documentação e não desmentidas pelo PM britânico. É um retrato muito violento, não apenas de incompetência, mas de falta de caráter. Existem, neste momento, inquéritos em curso para investigar vários comportamentos de legalidade duvidosa do atual primeiro-ministro britânico e de pessoas que lhe são próximas. Independentemente do juízo final que se faça quanto a essas alegações, as expectativas eram que tudo isto teria um impacto negativo no partido de Boris Johnson, os Conservadores. As últimas sondagens revelam, no entanto, um aumento de 3% na vantagem destes sobre os Trabalhistas, que estará agora nos 16%.
Mudemos para Portugal. Após a gestão calamitosa do início do ano, que nos colocou então com os piores dados do mundo na pandemia, a maior queda do PIB da União Europeia no primeiro trimestre e a sucessão recente de pequenos e grandes escândalos ministeriais, muitos esperariam um reflexo disso mesmo nas sondagens. No entanto, as sondagens mais recentes indicam, antes, uma subida do Partido Socialista, levando até o líder da oposição a ironizar que, quantos mais crises envolvem o Governo, mais o partido no poder sobe nas sondagens. Este paradoxo é, no entanto, ainda maior. Os dados do último Eurobarómetro (o principal estudo de opinião em toda a Europa, publicado há poucos dias) indicam que a perda da confiança no Governo foi muito superior em Portugal ao que ocorreu no resto da União Europeia. Enquanto em Portugal essa confiança diminuiu em 14 pontos, no resto da Europa também ocorreu uma queda, mas muito mais modesta, de apenas 4 pontos. Esta insatisfação crescente com o Governo, e com o próprio primeiro-ministro, como indicam outros estudos de opinião, não tem reflexo, no entanto, numa potencial perda de votos.
O que explica que, tal como no Reino Unido, crises e escândalos possam afetar a popularidade de governos e primeiros-ministros, mas não mudem o sentido de voto? Isto é particularmente revelador quando, perante estas crises, a reação desses líderes é não fazer nada. Nem no Reino Unido nem em Portugal qualquer destas crises ou escândalos teve qualquer consequência, para ninguém. Parece que o conceito de responsabilização política está em crise. No Reino Unido, vários comentadores defendem que Boris Johnson faz, quanto ao fundamental, o que disse que ia fazer e que os britânicos não se importam nem com como o faz nem com o resto que faz. Em Portugal, António Costa é visto também como um tático brilhante que mantém a estabilidade política num contexto de crise e vai evitando que se sinta, sobretudo no seu eleitorado base, o pior da crise. Enquanto assim for, ninguém se importa com o resto. A eficácia política no imediato prevalece sobre considerações morais sobre a política, o que conduz a desvalorizar a necessidade de responsabilização pelo que corre mal.
Essa eliminação da dimensão moral e de responsabilidade na política só é possível, no entanto, porque os cidadãos desenvolveram uma visão cínica sobre todos os agentes do sistema político. É o famoso "são todos iguais". É isso que explica que o Eurobarómetro também revele uma enorme queda com a satisfação com a democracia em Portugal, que passou de 2/3 há um ano, para menos de 50%. Uma queda muito superior ao que aconteceu nos outros países europeus.
Os cidadãos não confiam em ninguém na política. De tal forma e a tal ponto que começam a achar irrelevante a hipótese de mudar. Isto é o pior. No fundo, o que esconde a crise de confiança nos governos é a crise de confiança na democracia.