De supérfluo a ridículo, são inúmeros os epítetos atribuídos ao questionário criado pelo governo para, alegadamente, averiguar da integridade dos potenciais candidatos a ministros e secretários de estado. Raros são os elogios. Também não ouvirão um da minha parte, mas, ao mesmo tempo, também não o ridicularizo. Qualquer esforço para trazer mais método ao governo é positivo, particularmente num governo que parece desesperadamente necessitar de algum método e organização. O questionário é, no fundo, uma forma mais sistemática e organizada de recolher informação sobre os candidatos a membros do governo.
O problema é que não foi isso que o primeiro-ministro prometeu nem o que é realmente importante o país discutir.
O primeiro-ministro falou de um mecanismo que iria ajudar a prevenir os casos recentes fazendo uma avaliação prévia de eventuais problemas de integridade, incompatibilidades, impedimentos e conflitos de interesse. Ora, este questionário não é um mecanismo de avaliação, é uma mera recolha de informação ao serviço da avaliação que continuará a ser feita pelo primeiro-ministro. Quanto aos critérios que irão conduzir essa avaliação não sabemos de nada de novo.
Acontece que os problemas que temos tido têm mais a ver com os critérios usados na avaliação ética do que com falta de informação para proceder a essa avaliação. Basta recordar que, em quase todos os casos, o primeiro-ministro começou, já depois de ser pública a informação, por defender que não existia nada que justificasse a demissão dos membros do governo. Na verdade, isto encaixa naquele que, pelo menos até recentemente, era o único critério que sempre apresentou publicamente: apenas a condenação em tribunal interessa, antes disso aplica-se o famoso "à justiça o que é da justiça". Foi o critério que apresentou a propósito de José Sócrates, sobre cujo comportamento ainda hoje o primeiro-ministro recusa pronunciar-se, mesmo meramente do ponto de vista ético e político.
Acontece que reduzir a avaliação ética a uma avaliação de legalidade não faz qualquer sentido. Desde logo porque a avaliação legal compete apenas aos tribunais e são estes que devem também determinar quais as sanções apropriadas. Mas fundamentalmente porque a avaliação ética e de integridade não é um juízo de legalidade, mas sim de se deter as condições para exercer funções públicas. O exercício destas pressupõe uma confiança por parte dos cidadãos que não é compatível com conflitos de interesse ou dúvidas sobre a integridade ética da pessoa em causa. Não se trata de uma inversão da presunção da inocência porque não se trata de um julgamento sobre essa pessoa. Trata-se sim de uma avaliação objetiva sobre se ele ou ela estão em condições de beneficiar dessa confiança dos cidadãos e, em consequência, poderem exercer, com autoridade, as suas funções.
Ora, quanto aos critérios que devem conduzir esta avaliação o primeiro-ministro continua no mais profundo silêncio. A única coisa que ouvimos até agora, a propósito do que será feito com a informação do questionário, é que cada caso é um caso... Sim, cada caso é um caso, mas é possível desenvolver critérios para distinguir esses casos e que sejam suscetíveis de escrutínio público. E é até fundamental que tal seja feito para que não se confundam casos diferentes (até porque não distinguir diferentes níveis de responsabilidade termina, com frequência, na desresponsabilização de todos...).
Dou um exemplo. Já tive de desenvolver critérios desses numa organização internacional e, há três anos, fiz uma proposta, com outros companheiros de partido, para criar uma comissão de ética acompanhada de alguns desses critérios. Uma das coisas mais difíceis é avaliar alguém que está debaixo de uma investigação judicial. Por um lado, é óbvio, pelas razões que acima referi, que a exclusão dessas pessoas não pode ficar pendente de uma eventual condenação pois já antes desta as suspeitas que os envolvem podem ser de tal natureza que impliquem a perda de confiança pública necessária ao exercício das funções. Por outro lado, não deve bastar o simples facto de alguém estar sujeito a investigação. Esta pode ocorrer com base até numa simples denúncia anónima e abrir esta porta levaria a que facilmente se pudesse até manipular a exclusão de certas pessoas. O critério que adotámos (na ausência de outros factos conhecidos) foi o da existência de uma acusação formal ou, mesmo antes desta, de alguma medida de coação decretada por um juiz. A ideia é que uma destas circunstâncias implica que, ainda que a pessoa continue a beneficiar da presunção de inocência, uma autoridade judicial entende que existem pelo menos suspeitas fundadas. Tal é suficiente para a perda da confiança pública. Claro que este critério é suscetível de discussão. O que me custa é ver o país a discutir casos e questionários sem discutir critérios.