Em Portugal, o discurso dos fundos europeus é quase totalmente dominado pela obsessão com a capacidade do país gastar, e rapidamente, todos os fundos.
Desde a aprovação do PRR (a famosa bazuca) que o foco da discussão é se o país tem capacidade de executar tanto dinheiro em tão pouco tempo? É a pergunta que os jornais fazem, a que o PM responde com o seu habitual otimismo, o Presidente transforma em desafio e a oposição em fonte de críticas. O mesmo se acontece com os outros fundos europeus. Os governos vangloriam-se das taxas de execução, as oposições criticam alegados atrasados.
Até o risco de desperdício dos fundos é apresentado como o risco de os deixar por gastar e não de os gastar mal.
O primeiro absurdo é que este debate se concentra num dos poucos aspectos em que o país tem sido bem sucedido. Temos sido, consistentemente, um dos países com melhores taxas de execução e de mais rápida absorção dos fundos. Em vez de discutirmos onde temos de melhorar, discutimos assim aquilo em que nunca tivemos problema.
Isto não representa apenas um desperdício de esforço intelectual. Contribui para que não se debata seriamente aquilo que temos de melhorar: como gastar melhor os fundos. Pior, a pressão para gastar tudo e rapidamente aumenta os riscos de gastar mal. Depressa e bem não há sempre quem...
Esse é o verdadeiro desperdício dos fundos que nos devia preocupar: gastar os fundos em projetos, públicos e privados, que não trazem verdadeiro valor acrescentado aos serviços públicos e sociais ou à economia.
Isto não conduz apenas a desperdiçar em maus projetos recursos que podiam ser usados para financiar bons projetos. Traz custos ainda maiores. Os apoios a maus projetos empresariais distorcem a concorrência penalizando os bons projetos empresariais. E os investimentos em equipamentos públicos desnecessários ou pouco prioritários podem gerar enormes custos de operação. Paradoxalmente, e ao contrário do que ouço com frequência, pode ser um desperdício maior gastar os fundos em projetos deste tipo do que não os gastar de todo!
Acresce que a falta de recursos do Estado, e o seu desvio para despesa corrente, fez com o investimento público tenha caído a pique (mais baixo nos governos de António Costa do que durante o período da troika...) e que os fundos europeus se tenham tornado o único recurso disponível para investimento público. O peso dos fundos europeus em % do investimento público passou de 30% em 2010 para quase 85% hoje em dia: não há praticamente investimento público que não decorra dos fundos (os restantes 15% devem corresponder em boa parte à denominada contrapartida nacional). Isto tem outras consequências negativas.
Primeiro, coloca os fundos sobre uma enorme pressão para suprir os buracos orçamentais nacionais, em vez de se concentrar onde poderiam realmente ter um efeito multiplicador na economia. Segundo, a pressão orçamental do Estado vai fazer com que este capte uma percentagem maior dos fundos em vez de os usar para as empresas e cidadãos. Os dados recentes que indicam que a quase totalidade do PRR foi até agora usada para financiar projetos públicos confirmam isto mesmo. Terceiro, os fundos europeus passaram a monopolizar as prioridades de investimento público. Os fundos europeus foram concebidos para apoiar os Estados na prossecução de políticas de coesão e desenvolvimento associadas a grandes objetivos europeus. Ora, os Estados têm especificidades próprias que justificam a existência de objetivos de investimento complementares aqueles que orientam os fundos europeus. Os fundos europeus não existem para substituir as políticas nacionais de investimento, mas sim para complementar estas. É assim em todos os Estados, mas deixou de ser assim entre nós.
A todos estes riscos acresce um outro: a associação tóxica entre um Estado partidarizado e uma economia e sociedade civis profundamente dependentes do Estado. Isto aumenta imenso os riscos de transformação dos fundos num mecanismo rentista. Mesmo sem corrupção os riscos de captura dos fundos por critérios de proximidade ao poder em vez do mérito são significativos. E com um tecido empresarial descapitalizado torna-se difícil garantir que os fundos são usados para promover ou salvar as empresas que o merecem e não as empresas próximas do poder. A confiança nisso exigiria que a máquina do Estado encarregue da distribuição dos fundos fosse independente do pode político e partidário.
Gastar bem e não gastar depressa devia ser o foco das nossas discussões. Isso exige discutir os incentivos associados à seleção, contratualização e avaliação dos projetos. Exige também debater o modelo de governo dos fundos. Muitos de vós sabem que durante dois anos e meio tive responsabilidades nesta matéria no governo Passos Coelho no âmbito do PT 2020. Introduzimos muitas novidades. Podíamos talvez ter ido ainda mais longe nas alterações do modelo de governo, mas a estrutura de incentivos foi substancialmente modificada para melhor na minha opinião. Passou a ser regra premiar ou penalizar de acordo com o sucesso ou insucesso dos projetos, medido com base nos resultados concretos atingidos e não na sua mera execução. Uma das minhas enormes frustrações é que ninguém se tem preocupado em saber se essas alterações continuaram a ser implementadas pelo atual governo e, se o foram, se funcionaram ou não. Na verdade, nem as obrigações de transparência que tinham ficado estabelecidas e permitiriam ter hoje algum conhecimento foram cumpridas. O governo atual promete agora mais transparência. A ironia é que promete menos do que o que estava no PT 2020 e não cumpriu.
Preferia muito mais debater tudo isto do que as taxas de execução, mas, ou muito me engano, ou continuaremos a debater um problema que não temos para continuar a evitar debater um problema que a muitos interessa continuar a ter.