O futebol é muito mais que um jogo, é uma frase famosa. Esta semana confirmámos isso de formas muito diferentes. Ontem assisti com entusiasmo à vitória italiana no Euro, o país que aprendi a amar durante os mais de doze anos que lá vivi. O país que subitamente representava a Europa na final que muitos transformaram num novo referendo ao Brexit. Mas também um país que, tal como nós, aprendeu a perceber que os melhores cidadãos são, por vezes, aqueles que escolhem essa cidadania, como Jorginho por lá ou Pepe entre nós. O futebol ensina-nos estas boas lições, para lá do jogo. Mas também tem muito de mau para lá do jogo. Foi o que também confirmámos esta semana com o processo em redor de Luís Filipe Vieira.
Os tribunais decidirão, no tempo próprio, da eventual responsabilidade criminal do presidente autossuspenso do Benfica, mas o que já se conhece tem consequências de outro tipo.
Este processo começa por reforçar a perceção nos portugueses de que o sistema (o regime) está viciado. Que a proximidade de alguns ao poder político e económico lhes confere vantagens que os outros não têm. Que o sucesso em Portugal não resulta do mérito, mas dessa proximidade. Eis uma das principais razões porque somos um dos países da Europa em que os cidadãos menos confiam uns nos outros e no Estado. Este não é visto como um árbitro isento e imparcial, mas, sim, como ao serviço dessa elite extrativa. Independentemente do resultado final deste e dos outros processos que implicam uma elite económica e política, eles alimentam a perceção deste sistema e Estado viciados.
Combater essa perceção exige uma separação clara entre o poder político e o futebol. Todo o contrário do que o primeiro-ministro, o presidente da Câmara de Lisboa e outros políticos fizeram quando aceitaram fazer parte da Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira, pelas razões que então expliquei num artigo no Jornal de Notícias. Mas esse é apenas o caso mais conhecido de uma prática que inclui a acumulação de cargos políticos e no futebol. Compreendo bem a paixão que o futebol suscita aos políticos, como a qualquer outro cidadão. Mas se os políticos têm direito a essa paixão e os desportistas direito a fazer política, o que não podem é ser as duas coisas ao mesmo tempo. É isso que é suscetível de criar conflitos de interesse e interferências inaceitáveis.
Por último, os factos deste processo voltam a alertar para os enormes riscos de criminalidade económica em que vive o futebol devido à conjugação entre elevados volumes financeiros e insuficiente regulação. Menciono só o caso das transferências de jogadores que envolvem, só em comissões de intermediação, verbas muito avultadas e estão sujeitas a enorme opacidade. O último relatório da FIFA nesta matéria identificava que, num ano, teriam sido pagos, em Portugal, 78 milhões de euros em comissões de intermediação de transferências. É o quarto valor mais alto em termos absolutos. Os clubes portugueses pagam em comissões metade do que investem em novos jogadores, de acordo com esse mesmo relatório.
Estes números pecam por defeito. Há estudos que estimam que o valor será bem mais elevado, mas é difícil de apurar com certeza devido à enorme falta de transparência nesta matéria. A própria FIFA já reconheceu o problema e criou uma task force para lidar com este problema. Esta propôs a criação de uma Clearance House - por onde passariam obrigatoriamente todos os pagamentos, incluindo comissões, tornando públicos os diferentes valores envolvidos e todos os participantes na transação, dos clubes aos agentes - e o licenciamento, formação e regulação da integridade e ética dos agentes. Infelizmente, o que está para aprovação na FIFA fica bastante aquém destas propostas iniciais.
Mas o que ficámos a conhecer também demonstra, mais uma vez, a ausência de escrutínio efetivo ao poder dentro dos nossos clubes de futebol. Como tenho repetido várias vezes, o modelo de governo dos clubes (SADs e associações) concentra excessivo poder nos presidentes e não prevê mecanismos eficazes de fiscalização desse poder e transparência e prevenção de conflitos de interesse. Também aqui a lei devia mudar. Mas, nós próprios, sócios e adeptos dos clubes, também temos poder para impor reformas no governo dos nossos clubes. Comecemos, por isso mesmo, por colocar apenas alguma da exigência que aplicamos ao que se passa no campo ao que se passa fora do campo.