O mal é ver que vão bem. Por que os Ornatos (ultra)Violeta têm de voltar a queimar

Esta é a carta que a banda não quereria ler em 2002.

Quando, em 2002, os Ornatos Violeta deram morte súbita a um monstro que ainda precisava de amigos, os adolescentes do princípio do século tiveram dificuldades em ultrapassar o crime à sua porta de um ideal roubado: o de ter, entre o repertório português, uns Radiohead irreverentes que soavam a poesia.

Como eram desta e de outras gerações, pensava-se que estava em suas mãos "o evitar simples da dor", a sentença, o estancar da hemorragia que resultava tão-somente desta "forma de amar" tão intensa e visceral. Manel Cruz, Peixe, Nuno Prata, Elísio Donas e Kinorm tinham prometido, em 1999, que iriam ter "cem vidas mais" para esta "estranha forma de acordar" (os fantasmas do nosso quarto).

"Abre a porta e vê se o mundo ainda é teu." Ao segundo aviso, uma certeza arde nas mãos: a de estarem estes Ornatos ainda mais familiarmente elétricos, fulminantes na forma como atingem os segredos que não são de uma geração só. Ao acender das luzes, o público viu, pôde constatar, que ainda lá estava o objeto raptado nas primeiras horas da sua tenra vida.

Meia-noite no palco principal do MEO Marés Vivas, primeiras horas de luz do dia. Os Ornatos Violeta subiram ao palco como imaginados, melhores do que nunca, mais maduros no que à música diz respeito, mais seguros, mas ainda (ou ainda mais) capazes de um rasgo de fascínio juvenil, "para ver, para dar, para estar, para ter, para ir, para ouvir", para sorrir e voltar a entrar. Algo no bando dos cinco disse bem alto que a aventura não pode acabar assim, em desterro vívido, em memorial lúcido.

Algo em cada um dos músicos que conhecemos por familiar devoção diz que não podem acabar, que os sonhos não podem ter fim. Do outro lado - ou o mesmo deste espelho -, ouve-se dizer que o amor não acabou, tão pouco adornado e tão cheio. Nesta tão precoce e tão pouco estúpida canção que milhares de pessoas ouviram em partilha e individualidade, a roubar para si o sentido próprio, fica ainda tanto para dar, numa conta que não se paga, numa conta em que se acrescenta por escorregar tão bem uma cerveja entre amigos, e outra, e outra depois dessa, como as canções de rock entre os dedos.

Só faltou Vítor Espadinha, mas nem as suas palavras se diluíram no tempo. Ganharam forma e densidade na voz de Carlão e na de todos, sôfregos de uma cidade deserta repleta de memórias agridoces e a palavra Ornatos repetida ao expoente da loucura. Cantar em conjunto foi como dizer bem-vindos a casa, depois de nos forrarem as paredes por anos solitários.

"E tudo fazia sentido, respirar fazia sentido, andar fazia sentido, todo o pequeno pormenor em pensamento perdido." Foi como entrar e arder, como se o tempo não tivesse passado, na mesma química de serotonina de um abraço musical bem gritado no peito. Não são "notícias de fundo" as que lê o público entredentes do teclado, nas cordas do enlace, na percussão de um "mundo fundo".

Manel Cruz, Peixe, Nuno Prata, Elísio Donas e Kinorm de 2002 não quereriam ler esta carta de amor do público, mas as palavras vibraram no vidro até se ouvirem, sem deixar morrer, sem os fazer parar naquele agora e nos agoras repetidos. Ornatos, para que não se esqueçam de tudo o que são capazes. Ornatos, capitães de tantos romances. Ornatos, ainda não é o fim da canção e a pessoa musical una que formam ainda não acabou. Ornatos, percam a noção do tempo para que vos amem devagar.

A "canção do medo" fala ironicamente: milhares de telemóveis iluminados e erguidos para não deixar escapar o momento, daqueles que não havia ainda em 2002, traição sem medida. Ornatos, esta é a carta que não quereriam ler em 2002, e é por isso mesmo que se escreve assim, com a vossa rebeldia adolescente, com as vossas certezas maduras de um amanhã cheio de voltas improvisadas ou ensaiadas à casa que sempre habitaram.

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