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Um ano vivido com o fantasma do contágio afetou tudo e todos. A cultura não é exceção. A partir de Coimbra, a TSF escuta os relatos de quem vive do setor artístico e procura sobreviver à pandemia.
A viagem começa na Oficina Municipal do Teatro. O espaço é gerido desde 2008 pelo Teatrão, uma companhia profissional que procura estreitar os laços com a comunidade através da produção teatral e artística.
Sentamo-nos na sala pequena - a Tabacaria - com Isabel Craveiro, diretora artística do Teatrão. Recorda o espetáculo "De Portas Abertas", realizado em setembro de 2020. As condições de segurança levaram à restruturação do evento, que acabou por acontecer no Campo da Arregaça. "Ainda assim foi muitíssimo interessante. Foi amplamente participado, os streamings tiveram muita gente a ver", conta Isabel.
Dos espetáculos aos projetos educativos, a adaptação foi a resposta encontrada para muitas das iniciativas do Teatrão. Mas, a princípio, tudo parou. "Numa primeira fase ficámos sem reação", lembra a diretora da companhia.
Do choque inicial à procura de soluções, o Teatrão entrou em contacto com o público e construiu um plano de segurança. Com o fim do primeiro confinamento, voltou a atividade e voltaram as pessoas, agora com medição de temperatura, uso de álcool gel e uma troca de contactos para prevenção de possíveis surtos. Um processo violento, mas necessário.
Ao fim de um ano, a própria forma de pensar a programação mudou. "Na primeira fase nós achávamos que reagendávamos tudo e recolocávamos tudo. Agora é completamente diferente", afirma Isabel Craveiro. "Agora já estamos "bem, se for assim é assim, se não for... há-de ser de outra maneira"".
Apesar das dificuldades, O Teatrão conseguiu repensar a atividade. Os projetos de proximidade foram adaptados, as colaborações mantiveram-se, houve concertos e espetáculos, e os próximos meses estão a ser preparados. Ainda assim, a situação não pode ser definitiva. "Nós não conseguimos pensar a nossa atividade sem o público. Não faz sentido. Nós não fazemos para nós, nós pensamos sempre no outro", explica.
O panorama precário da Cultura é uma preocupação, seja entre estruturas ou trabalhadores. Isabel vê com bons olhos a mobilização do setor, que está a discutir com o governo questões como o estatuto do artista e a criação de uma rede nacional de teatros. No entanto, "Há apoios que foram anunciados para os mais diversos setores como sendo apoios de emergência que ainda não apareceram", lembra. "Há quantas semanas é que a ministra da Cultura foi à televisão anunciar um programa que ainda nem sequer abriu?"
Quando olha à volta, a diretora do Teatrão vê uma sociedade desmotivada e sem capacidade de sonhar com um futuro melhor. Diz que a missão agora é voltar a ligar as comunidades à Cultura. "Há muito trabalho para fazer".
Viajamos até à outra ponta da cidade. No Pátio da Inquisição encontramos o Teatro da Cerca de São Bernardo, casa da Escola da Noite. Outra das produtoras de teatro de Coimbra, viveu muitos dos desafios do Teatrão.
Hoje não entramos pela porta principal. Descemos até à administração, onde encontramos António Augusto Barros, diretor artístico da Escola da Noite.
António recorda, também, o choque do primeiro confinamento. Depois de uma primeira fase em que todos foram para casa, cedo começou a pensar no regresso. Afinal, o trabalho faz-se em palco. "Eu não gosto de fazer o trabalho dramatúrgico à mesa, não gosto de me demorar muito", explica o diretor da companhia.
Os preparativos para o lançamento da nova temporada começaram aí. Garantida a segurança de todos, a Escola da Noite começou os ensaios de "O Palhaço Velho Precisa-se".
Meses depois, o país enfrenta um novo confinamento. Muitas estruturas Culturais têm procurado alternativas digitais para chegar ao público. António não se deixa enamorar pela possível solução. "O online é uma outra coisa, mas é uma coisa a que não queremos resignar-nos", explica.
Depois de um ano com pouco trabalho, a subsistência das estruturas Culturais está em cima da mesa. Nos espetáculos que pode produzir, a Escola da Noite teve uma grande quebra de receitas, motivada pelo corte de um terço na plateia.
Em resposta ao pedido de ajuda do setor, o Governo tem lançado várias linhas de apoio para estruturas e artistas. "O ministério tem aberto muitas linhas de apoio... Eu já nem as percebo todas, acho que esse é um dos grandes problemas", afirma António. "Nenhuma delas é satisfatória".
Esta não é a primeira crise do país e da Cultura. O diretor da Escola da Noite recorda outros momentos de dificuldade, e explica que a primeira resposta é um pedido de mapeamento do setor. Considera que esse trabalho já devia estar feito.
Sem ver um rumo para a Cultura e sem saber quando pode reabrir portas, não esconde a mágoa de quem não pode trabalhar. "É triste, é frustrante... Esse desejo interrompido... Mas não há outra solução e isto vai passar", conclui.
Despedimo-nos de António e deixamos o Teatro da Cerca de São Bernardo. O caminho é curto e guia-nos até ao Salão Brazil, espaço gerido pelo Jazz ao Centro Clube. Por esta pequena sala da zona histórica de Coimbra, passa muita da programação musical regular da cidade.
As setas de circulação que agora ocupam os estreitos degraus de madeira levam-nos ao terraço. Aqui, José Miguel Pereira, diretor do Jazz ao Centro, explica que a programação musical foi a atividade mais afetada pela pandemia, entre os períodos de confinamento e as limitações na lotação.
No período de reabertura, o Salão Brazil promoveu cerca de 60 concertos abertos ao público. José Miguel fala de um público que sentia falta de poder assistir a concertos ao vivo e cumpridor das normas estabelecidas. "Não tivemos absolutamente problema nenhum em relação a isso", diz.
A viver um segundo confinamento, o diretor do Jazz ao Centro revela-se preocupado com a sobrevivência das pequenas salas de espetáculos. Sem garantias de quando ou como podem preparar o futuro, teme pelo fim de muitas casas. "Nós não sabemos quantas casas vão resistir no pós-pandemia", diz.
Fala-nos do "Circuito", uma rede que reúne 27 salas espalhadas pelo país, e do exemplo da Sociedade Harmonia Eborense de Évora. Com 172 anos de história, a casa lançou uma campanha de angariação de fundos para evitar fechar portas.
A hipótese de encerramento dos clubes assusta-o. "Cai uma valência fundamental para que artistas possam continuar a apresentar o seu trabalho a diferentes públicos", justifica.
Nos bastidores
O drama dos técnicos de espetáculos tornou-se visível no verão passado. Em agosto, reuniram-se no Terreiro do Paço para pedir atenção e apoios para o setor. Meses depois e a atravessar um segundo confinamento, a situação não melhorou.
Encontramo-nos com Diogo Figueiredo e Guilherme Pompeu. Diogo nasceu numa família de artistas e passou os últimos 20 anos a estudar som. Queria ser ator e apaixonou-se pela luz.
Depois de um ano de quase inexistente atividade, o futuro não parece promissor. "Não sabemos com o que podemos contar", explica Diogo. "Muita gente acaba por mudar de ramo".
As poupanças escasseiam e a sobrevivência leva-os a procurar alternativas. Por agora, Diogo faz uma viagem semanal à Lousã, concelho vizinho, para entregar testes de Covid-19. Já Guilherme continua a receber de um trabalho de limpezas, apesar de estar em lay-off.
A situação financeira que atravessam leva à esperança de que o país volte a abrir o quanto antes. "Esperemos que agora em março reabra outra vez, nem que seja mais dois, três meses para haver umas datas e que caia algum", diz Guilherme.
Sem futuro garantido, o técnico de som está também a estudar agricultura e considera vir a recuperar um terreno familiar para exploração própria. Não quer deixar a profissão, mas sente cada vez mais necessidade de explorar todas as alternativas ao seu alcance.
E abrir pode não chegar para muitos. "São sete cães a um osso", diz Diogo. "Se me disserem que em julho vão abrir festivais, todos os técnicos vão querer fazer festivais. Não vai haver mais nada".
Apesar de todas as dificuldades que sentem, Guilherme e Diogo consideram que a idade os favorece. Ainda jovens, dizem ter um jogo de cintura que outros, mais velhos e com vidas dedicadas à carreira, não terão.
Em palco
Clara Carvalho é bailarina profissional. Apaixonou-se pelo palco e não mais o quis largar. Clara perde um momento para se reagrupar e tenta descrever a paixão que sente quando entra em cena. "É quase como se fosse um salto de avião, a adrenalina é quase a mesma".
As memórias do primeiro confinamento já estão distantes. Num ano de altos e baixos, conta que a reabertura até trouxe bastante trabalho e que havia uma ansiedade geral para voltar a produzir. Hoje, o cenário mudou drasticamente. "Foi uma quebra de 100%... não estou a fazer nada", conta.
A bailarina explica-nos que a dança, como tantas outras artes, vive da presença. Com o confinamento, os ensaios tornam-se quase impossíveis e muito do trabalho acaba cancelado ou suspenso.
Neste cenário surge a necessidade de sobrevivência. Os pagamentos parcelados que alguns trabalhos lhe conseguiram oferecer não chegam, o que a levou a pedir ajuda junto da família. "Tenho a sorte de os meus pais terem um negócio deles e de me estarem a dar oportunidade de ganhar dinheiro agora", explica Clara.
O futuro preocupa-a. Sente que a Cultura estava num momento de crescimento e que a pandemia vai provocar um retrocesso na hora da retoma. "Não sei quantos de nós, e por mim falo também, é que não vão fazer um standby nas nossas áreas", revela. "Não vamos ter trabalho".
Seguimos até ao Bairro Norton de Matos, onde encontramos Ricardo Jerónimo. Com Joana, sua companheira, criou os Birds Are Indie em 2010. É também um dos responsáveis pela Blue House, produtora de Coimbra que procura agitar o panorama musical da cidade.
Para os Birds Are Indie, 2020 até foi um ano de sucesso. Lançaram um disco com boas vendas e conseguiram dar cerca de uma dúzia de concertos, um "luxo" que poucos tiveram, explica Ricardo.
Na Blue House, a pandemia cedo se tornou uma preocupação. No último trimestre do ano, a produtora associou-se ao município de Coimbra e a várias associações culturais para o programa "Três meses para o futuro".
A iniciativa procurava dar vida à área cultural em tempos incertos, com mais de 80 atividades e o envolvimento de cerca de 200 profissionais. O projeto seria para continuar, mas o novo confinamento foi um travão. "Fomos cancelando de mês a mês", conta Ricardo. "Foram três meses para o futuro seguidos de três meses de vazio".
O músico sente que a Cultura acaba esquecida pela sociedade, apesar de ter estado sempre presente ao longo da pandemia nas mais variadas formas. A sustentabilidade do setor está em risco e os apoios são poucos e chegam tarde. "Há mínimos de existência e de valorização do trabalho", diz. "A Cultura é trabalho, não são hobbies".
O futuro preocupa-o. Diz que "quando esta crise sanitária passar, cairemos em nós numa crise económica", uma situação que vai levar à necessidade de cortes. E aí, Ricardo lembra que a Cultura sofre sempre.
Outra das caras da Blue House é João Silva. Jorri, como é conhecido no meio musical e entre amigos, fez parte da geração que nasceu na ressaca do movimento punk de Coimbra. No final dos anos 90 criou a Jigsaw, aquele que é o seu projeto principal. Fez também parte dos The Parkinsons, toca ao vivo com os Birds Are Indie e colabora com peças de teatro.
Por tudo isto, Jorri tem a impressão digital um pouco por toda a cidade.
No início de 2020, a Jigsaw preparavam uma tour e o lançamento de novo disco. O ataque da pandemia levou ao cancelamento dos planos. "Não nos adaptamos", conta João Silva, para quem "lançar um disco sem o levar para a estrada não faz mesmo sentido".
A falta de motivação não é o único obstáculo ao impulso criativo. "Tenho 3 filhos, as escolas fecharam e a minha mulher é médica", explica João, que por esse motivo deixou a música de parte na lista de prioridades.
O artista sente que, nos últimos anos, tinha existido uma evolução na área do espetáculo. O aumento de profissionalização do setor levou a programação mais atempada e a uma melhoria na qualidade técnica e de produção dos eventos. A
pandemia travou tudo, e o que "já era uma área profissional de risco, passou a ser uma área profissional para sonhadores".
Ao fim de um ano de pouco trabalho, as condições agravam-se no meio. João diz que há casos de pessoas a quem falta comida na mesa. "Já não é ajuda para arranjares trabalho, é porque não tens hipótese de conseguir o mínimo de sobrevivência", realça.
Mais do que os apoios diretos, João pede ação para o futuro imediato. Queixa-se de não existirem indicações sobre como pode a área funcionar a curto prazo. Com o constante "ponto de interrogação" que se coloca sobre a Cultura, não tem dúvidas de que o setor vai perder intervenientes.
Na Rádio Universidade de Coimbra mora o Santos da Casa. O programa de música portuguesa mais antigo do país leva quase 30 anos no éter. Com a proposta de "expor o raro", o programa é palco de lançamento para muitos artistas que mais tarde ganham destaque nacional.
Fausto da Silva criou o programa e continua a fazê-lo acompanhado por Nuno Ávila, duas caras regulares nos concertos da cidade e até do país. Hoje, Fausto recebe-nos em estúdio com a perspetiva de quem faz chegar música aos ouvidos do público.
Um dos primeiros sinais a surpreender o locutor foi a quantidade de produção nacional que lhe foi chegando. "Neste momento tenho recebido música que quase não tenho tempo para a passar toda", uma situação pouco habitual para Fausto.
Apesar da surpresa inicial, o fenómeno tem justificação. O locutor explica que, sem a hipótese de levar música para a estrada, os artistas procuraram outras alternativas para dar a conhecer o seu trabalho. Além disso, a nova era digital agilizou os processos. "Há muitos músicos desde os mais pequenos aos maiores que gravaram muita coisa em casa", explica.
Apaixonado pelos concertos ao vivo, confessa que é o que lhe faz mais falta. Até à pandemia, era rara a semana em que não passasse por uma das salas da cidade.
A junção de paixões entre a rádio e a música ao vivo levou-os ao lançamento do Festival Santos da Casa, um evento anual que procura lançar novos músicos portugueses. Fausto conta que a edição de 2020 foi afetada pela pandemia e que acabou por ter apenas a apresentação de um dj set. As dificuldades colocadas pelo novo confinamento levantam dúvidas sobre a edição de 2021, marcada para abril.
Apesar das incertezas, garante que o setor vai renascer no fim da pandemia, até porque há muita vontade no meio. Só não sabe quando vai ser esse momento. "O problema é quando que a gente se vai sentir completamente segura", diz. "Quando acabar o medo eu tenho a certeza que a indústria vai subir".
O futuro da cultura
No futuro estão os mais novos, que também sofrem com as condicionantes atuais. O ensino artístico é hoje feito através de um modelo semelhante ao dos outros níveis de educação, com recurso às plataformas digitais.
Recorremos a Manuel Pires da Rocha, professor no Conservatório de Música de Coimbra e membro da Brigada Victor Jara desde 1977. Recebe-nos em casa, onde acabou de dar uma aula virtual.
"No nosso tempo isso também existia, eu aprendi a tocar guitarra para cantar com os amigos através dos métodos do João Vitória", conta. No entanto, a situação não é desejável, até porque "nós já estamos noutra fase da nossa civilização".
As limitações colocadas pelas plataformas são fáceis de explicar. O som, objeto central do ensino da música, sofre sempre com o modelo. "Mal comparado é como o amor à distância, falta-lhe o toque", explica.
Aos problemas na transmissão de conhecimento, juntam-se outras dificuldades. O professor diz que a crise vivida pelo setor artístico está a levar a desistências. "Foi claro para as famílias que a música pode não dar uma profissão em situação de emergência", justifica.
A conversa ruma a outros caminhos. Quando lhe perguntamos pelas mudanças na forma de assistir a espetáculos, o professor e artista conta-nos que tocou em palcos de guerra. Fala-nos sobre a passagem pela Bósnia e sobre a viagem desde Sarajevo até uma pequena aldeia daquele país. "Com um capacete na cabeça, um colete anti bala e fui tocar com a Lena d"Água a um aquartelamento de militares... é muito pior", diz.
A guerra de hoje é outra. Uma guerra de sobrevivência de um setor que espera por um palco para atuar. Na despedida, Manuel brinda-nos com o violino e o improviso. Um improviso de esperança que é, também, forma de vida para a Cultura.