"Tudo o que mexe, corta-se." Exposição mostra ao país o que a censura escondeu durante 48 anos

No antigo edifício-sede do Diário de Notícias, "Proibido por inconveniente - Materiais das Censuras no Arquivo Ephemera", é o retrato de um país "transformado numa fake news".

A entrada é livre e o local simbólico. A censura que amordaçou o país durante 48 anos de ditadura é desmascarada e está à vista de todos em Lisboa , numa exposição que revela "a arma mais eficaz do regime da ditadura". Até 27 de abril.

A censura - instaurada logo após o golpe de 28 de maio de 1926 e que se estendeu até 1974 - exerceu-se sobre a imprensa, a literatura, a arte, a publicidade, todos os meios de comunicação e expressão artística, com o objetivo de silenciar críticas e pensamentos discordantes do "bem comum", criando a imagem de um país ideal, bem diferente do país real, aquele "que não podia vir a público", como explica o historiador José Pacheco Pereira, em entrevista à TSF.

Jornais, livros, revistas, discos, autos, relatórios e publicações clandestinas, oriundos da biblioteca e arquivo de Pacheco Pereira estão dispostos por vários expositores, e 88 gavetas.

O primeiro, "introdutório", mostra como a censura se exerceu sobre tudo, através de cortes feitos na imprensa, de boletins que cobriam o país de norte a sul, com a censura na imprensa local. Aqui se mostra também como além do âmbito político, a censura atuava sobre tudo o que fosse entendido contra a Igreja, sobre questões de costumes, de pobreza, das doenças sociais (como a tuberculose ou a lepra, associadas à pobreza).

À TSF, Pacheco Pereira diz que"tudo era proibido", principalmente o que, na altura, achavam importante para "proteger os portugueses do Mal, das excitações da política, do comunismo, do sexo, da imoralidade, de uma crítica ao senhor Presidente do Conselho aos patrões, aos regedores, aos presidentes da câmara, porque tudo isso era uma perturbação." Tudo era visado pela comissão da censura, "na realidade era transformar o país numa fake news", com vários mecanismos graduais, em que todas as palavras têm um significado "tudo o que mexe, corta-se".

A censura proibia mas também fazia despachos de autorização. A censura atuava com lápis grosso, vermelho numa ponta e azul na outra. A censura " foi a instituição mais eficaz do Estado Novo, porque ainda hoje está viva", considera Pacheco Pereira, que sinaliza o carácter global e pedagógico da exposição "está viva no desprezo pela democracia, pela diferença, pelos partidos, pela política, na apologia do consenso, do unanimismo, tudo coisas que não são democráticas. Criou-se a ideia de que a política é uma atividade menor."

Outros aspetos focados são a existência de "múltiplos censores em ação", como o Ministério da Educação, a polícia, a Mocidade Portuguesa ou o Secretariado da Propaganda Nacional, bem como de "alvos censórios", aqueles autores que eram um alvo privilegiado porque desrespeitavam completamente as normas vigentes.

Um desses casos é José Vilhena, que deliberadamente provocava o regime, desrespeitava todas as figuras da época e fazia caricaturas dos censores: "A censura chegava ao ponto de escrever 'nem que seja para manter o princípio, deve ser proibido'. Os despachos contra o escritor e humorista " são autênticas manifestações de fúrias".

Maria Archer, Simone de Beauvoir, Nita Clímaco, as "Três Marias" e Natália Correia são algumas das autoras mais visadas, entre as mulheres e na música também muitos autores foram proibidos, com a indicação " Inconveniente adquirir ou transmitir ". A exposição seleccionou uma espécie de "play list" que toca as canções silenciadas pelo regime.

Os mecanismos para enganar a censura, recorrendo a pseudónimos ou à ocultação de nomes suspeitos, também se podem encontrar, em nomes como o de Zeca Afonso, a quem a publicação A Mosca se referia como Acez Osnofa (o nome ao contrário). E as publicações clandestinas são aqui apresentadas, através de exemplares como o último número do Avante antes do 25 de Abril, publicações maoistas ou "Cadernos de circunstância", a primeira tentativa de olhar para o país numa perspetiva sociológica", que era proibida no país, como conta Pacheco Pereira.

Há ainda um núcleo totalmente dedicado à censura nos jornais, que se apresenta como uma "metáfora do que era o aparelho burocrático da censura", explicou a curadora Júlia Leitão de Barros.Organizado tematicamente e composto por um expositor com várias gavetas, o visitante pode escolher um tema, abrir a gaveta correspondente, e ver os cortes que foram feitos na imprensa sobre esse assunto.O ano escolhido para este núcleo é 1934.

Valorizar a memória da cidade. É também isto que aqui se procura, com a escolha do local da exposição, em plena Avenida da Liberdade "ter sido um local de jornalismo, onde estes vidros transparentes e grandes convidam a entrar, a centralidade e é também a Avenida da Liberdade e isso tem um peso", diz Joana Gomes Cardoso da Egeac.No antigo edifício-sede do Diário de Notícias, a exposição intitulada "Proibido por inconveniente - Materiais das Censuras no Arquivo Ephemera", tem como comissário o historiador José Pacheco Pereira, e dono do arquivo Ephemera, e a curadoria de Carlos Simões Nuno e Júlia Leitão de Barros.

Numa parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, a EGEAC e a Ephemera, a exposição divide-se em vários núcleos temáticos, que mostram as várias faces da censura: da prévia à que atuava 'a posteriori'; da que censurava, mas fazia critica literária, à elitista; da que atuava através de diversos organismos à que se fazia de invisível. São 8 vitrines e 88 gavetas. Foram 48 anos de ditadura.

Recomendadas

Outros Conteúdos GMG

Patrocinado

Apoio de