Na semana em que a Rússia invadiu a Ucrânia, o Presidente da AICEP sublinha que "a Europa tem de ter independência energética".
Luís Castro Henriques é licenciado em economia pela Universidade Católica Portuguesa, Mestre pela Universidade de Cambridge e tem um MBA do INSEAD. Integrou o Conselho de Administração da AICEP em 2014, e lidera este instituto desde 2017. Na entrevista desta semana da Vida do Dinheiro, da TSF e do DV,, Castro Henriques fala dos recordes de investimento alcançados em 2021 - uma conquista que atribui à estratégia de puxar pelo talento português -, da confiança de que é possível manter contratos acima de mil milhões/ano, e da participação portuguesa na Expo Dubai.
Vamos começar pelo assunto que está a dominar as atenções do mundo: Rússia e Ucrânia. Como é que tem acompanhado a evolução dos acontecimentos?
Com preocupação, um cenário de guerra e tensão nunca é positivo. E além das consequências humanas tem consequências em termos de expectativas e incertezas. As nossas exportações para Rússia e Ucrânia são menos de 0,5% das nossas vendas globais, não é o que vai alterar a nossa balança exportadora. Mas nas importações já não é bem assim e vamos ver que efeitos terá isto nos custos transversais da economia, nomeadamente da energia, mas também acesso a matérias-primas, agroalimentar, etc. Temos acompanhado de forma próxima. Estamos a acompanhar de perto as empresas.
Há empresas portuguesas a exportar para Moscovo e Kiev, incluindo Amorim, Bosch e Nestlé Portugal. Terão de fazer ajustes?
Depende dos produtos que forem afetados, mas pode haver efeitos pelos meios de pagamento... Esta é uma região a que já estávamos atentos, a tensão não é nova, ainda que tenha chegado a um novo pico e com consequências mais sérias.
Portugal importa sobretudo cereais da Ucrânia, mas os efeitos maiores podem vir na energia, por causa do gás russo...
As matérias-primas são transacionadas a nível global, o preço vai subir para todos. Temos de ver o preço médio do gás russo e o acesso... Dados de 2021 dão uma noção clara disto: os preços dos transportes subiram bastante, a energia continua a subir, mas sempre que há ajuste de preços transversais na Europa, as nossas empresas têm conseguido manter a competitividade. No último ano, as exportações até cresceram 6% face ao pré-pandemia, o que é extraordinário. Portanto, enquanto os efeitos forem transversais mantém-se a competitividade das empresas. Mas sim, tem impacto na estrutura de preços das companhias, nas suas margens, e no fim do dia também para os consumidores, que podem retrair o consumo - sobretudo os do centro da Europa. É para a UE que exportamos mais de 70%...
E pode isto prejudicar a transformação energética?
Pelo contrário. O que isto demonstra é a necessidade de soberania energética. É claríssimo que a Europa tem de resolver esse assunto. Depois há a questão do mundo que queremos ter. E a vantagem é que a transformação energética através das renováveis gera também independência energética.
Mas requer tempo, investimento.
Não tenhamos dúvidas de que vai envolver investimentos muitíssimo significativos pelo mundo fora. É muito importante prever e perceber como vão ser feitos e quem os vai pagar - como será distribuída a fatura pela sociedade. Porque todos queremos um mundo mais verde, com mais independência energética, mas esse desígnio obriga a preparação e a meios de financiamento adequados. E é uma matéria em que a Europa pode liderar.
É comissário da Expo Dubai, que está a chegar ao fim. Há um mês tínhamos mais de 300 mil visitantes. Vamos ao meio milhão?
Vamos. E digo-o com conforto, porque não estamos longe; nos próximos dias vamos lá chegar. Esta Expo é muito impactada pela Covid: teve muitas visitas no arranque, depois um período mais calmo, que é normal, mas quando se chega à segunda metade começa-se a ter um crescimento exponencial de visitas. E nesta isso coincidiu com o Natal, mas devido à Ómicron não se verificou. No Dia de Portugal, a 14 de janeiro, havia muito poucos visitantes, foi preciso limitar muito as pessoas; mas agora começa a estar sempre cheia. Dados globais apontam para mais de 13 milhões de visitas à Expo e no nosso pavilhão estamos a chegar a 500 mil. O que significa algo notável: a notoriedade de Portugal chegou a mais de meio milhão de pessoas em seis meses.
Portugal levava na agenda uma forte componente de negócios, incluindo a loja de produtos, o restaurante. Como é que correu?
A loja era montada como montra, mas teve de facto tráfego relevante de pessoas a parar, ver os produtos e comprar, ali ou online. O restaurante tem sido um sucesso - e felicito a equipa, o chef Chakal em particular e seus parceiros no Al-Andalus. O restaurante tem uma posição especial na Expo, com varanda sobre o Jubilee Park, e tem imensa qualidade. Está sempre cheio. E isto dá resultados, porque permite apresentar os produtos agroalimentares, cerâmicas, cutelaria... Depois, temos feito no pavilhão divulgações de técnicas clássicas nossas, como a filigrana, e montamos um conjunto de eventos no pavilhão para dar notoriedade ao país. Isto adiciona ao conteúdo expositivo, cujo objetivo é mostrar a diversidade que temos, a abertura de Portugal ao mundo - com impacto direto na nossa equação de competitividade para o investimento. É muito interessante porque nos inquéritos à saída todos dizem que não tinham perceção do que é Portugal no século XXI ou que aprenderam algo sobre nós. É o principal objetivo de uma Expo: chegar a muita gente em pouco tempo e com mensagem clara do que é e quer ser o país.
O Dubai quer também atrair empresas e tornar-se um hub de negócios. Há empresas portuguesas a caminho dos Emirados?
Nós temos uma balança exportadora para o Dubai inferior ao que devia ser e queremos expandir a taxa de crescimento nos próximos cinco anos. Esta Expo trouxe mais interesse. Temos trabalhado muito o agroalimentar, mas também vestuário, peças únicas de mobiliário, design, joalharia e ourivesaria. E nesses setores antecipo grande crescimento. Mas há que ver que o Dubai é um mercado muito competitivo, ainda que tenha duas vantagens óbvias: ser emblemático na região (quem consegue vender ali, conseguirá vender à volta e há países muito interessantes, nomeadamente a Arábia Saudita); e ser um dos principais portos do mundo, e por isso também uma plataforma de exportação. Eu recomendo a muitas empresas portuguesas que querem expandir-se a Oriente que comecem a trabalhar aquela geografia, pois terão compradores que vão distribuir na macrorregião que vai do Paquistão ao Sudão.
Além da Expo, como se tem trabalhado isso?
Fizemos sete semanas temáticas dedicadas a setores que consideramos particularmente competitivos e temos presença em feiras que julgamos de especial relevo - por exemplo, na semana passada foi a Gulf Food e aproveitámos para emparelhar isso com um grande evento com nossos empresários do agroalimentar; e disponibilizámos o pavilhão para usarem sem custos.
E foi possível também captar investimento e turistas?
Claramente. O que nós pretendemos com esta participação é fomentar o investir, viver, visitar e fazer negócios. E as pessoas saíram dali a dizer que querem visitar-nos, que não estavam à espera daquilo. Nesta região do mundo, Portugal tem baixa notoriedade e a que tem está muito associada à nossa História. Os poucos que têm noção de Portugal é a ideia de há 500 anos. O fundamental deste pavilhão era mostrar o que somos hoje, a diversidade do país em termos turísticos mas também a nível cultural, como temos contribuído para arquitetura, etc. e como esta diversidade comprova a nossa abertura como país. É muito importante esta região perceber que estamos abertos a receber visitantes do Golfo.
Em 2021, Portugal atingiu uma fasquia recorde de investimento: mais 229%, um recorde, com 2,7 mil milhões de euros. Este ritmo vai continuar em 2022?
2021 foi fantástico, o corolário de uma estratégia de cinco anos que se definiu em 2015/16. E fico contente, porque os resultados da Agência estão à vista e foram fantásticos. E se tirarmos efeitos extraordinários continua a ser um ano incrível...
Tem impacto do final do PT2020.
Mas isso é sempre assim, o último ano de um quadro comunitário é sempre especialmente bom, quando calculamos médias retiramos sempre o primeiro ano, não o último. Olhando as médias, no QREN tínhamos contabilizado em média uma contratualização de 600 milhões por ano e agora foram mais de 1100 milhões. Em 2017 e 2018 defini que a AICEP iria conseguir contratualizar mais de mil milhões - não era óbvio, era uma aposta, mas conseguimos. E creio que agora precisamos é de continuar a trabalhar acima da média. Porque é óbvio que 2021 foi ano de medalha olímpica...
Portanto, acima de mil milhões?
Acho perfeitamente razoável, é possível. Estamos de novo no primeiro ano de um novo quadro e os primeiros anos são atípicos, pode até conseguir-se muita coisa mas não contratualizar...
2022 é atípico porque entra o PT2030 mas também temos um PRR à disposição...
Sim, há muita procura com perfil inovador e isso é muito positivo, mas tudo depende de como vamos contabilizar isso. Comparando o comparável - o PRR tem outras características - é razoável para o horizonte dos próximos cinco anos estar sistematicamente acima de 1100 milhões? Acho que sim. Dá trabalho mas é para isso que cá estamos.
E em que áreas tem havido mais investimento?
Os setores que dominam a nossa curva são claríssimos, é tudo o que tem que ver com metal: desde componentes e automóveis à metalomecânica, máquinas e aparelhos. Portugal tem sido especialmente competitivo na captação de investimento estrangeiro nesses três setores, e só aí falamos de quase 30% da nossa curva de angariação. Diria que aí continuaremos competitivos - teremos de fazer a transição para os veículos elétricos, mas já em 2019 e 2021 tínhamos feito angariação de produtores de componentes para elétricos, de Viana do Castelo a Setúbal.
Por que somos tão atrativos?
O fator de competitividade diferenciador de Portugal é o talento. Temos quadros qualificados, habilitados tecnicamente a todos os níveis e que tipicamente falam mais de duas línguas estrangeiras. Isto é particularmente competitivo - sem uma força de trabalho competitiva não se angaria investimentos inovadores. Por outro lado, demonstra uma população aberta a lidar com o mundo, e se para nós isto é óbvio é importante que os outros o vejam, e de repente, dos serviços à indústria, investigação e desenvolvimento tecnológico, a equação de produção e de trabalho em Portugal passa a ser muito mais competitiva, porque tenho quadros e equipas que conseguem lidar com as várias equipas que tenho pelo mundo, perceber diferenças culturais, falar línguas e articular isto tudo. A larguíssima maioria das empresas que aqui investem são grandes multinacionais com polos de produção pelo mundo. Este é o nosso fator diferenciador, o que nos distingue dos outros. No resto, somos relativamente bons, estamos nos 30 a 40 melhores do mundo, mas isso são condições base de negócio onde temos vantagem: estamos na UE, um dos maiores mercados do mundo, temos condições boas de doing business, como diz o Banco Mundial, temos infraestruturas de telecom e de transportes competitivas e todo um sistema universitário e de investigação particularmente competente. Nós, AICEP, quando vendíamos isto lá fora, colocávamos o talento ao nível dos outros fatores competitivos e a diferença foi essa. Temos um bom produto - se não, não conseguíamos vender -, mas focámos a nossa angariação nas empresas que podiam beneficiar mais deste fator competitivo e isso trouxe resultados.
E essa estratégia ajudou a captar centros de serviços e software?
Sim, isso é muito interessante, porque esses estão fora da contratualização de que falámos, a maioria destes centros tem outro tipo de apoios, não contam para aquele número. Hoje Portugal tem mais de 210 centros, a larga maioria de competências e desenvolvimento de software. Em termos de competitividade e utilização de talento de alto valor acrescentado, claramente beneficiam, o que comprova o fator competitivo diferenciador. E de facto esse negócio também explodiu a partir de 2015: nos dados que temos, mais de metade aconteceu nestes últimos seis anos, a curva exponencia a partir daí. Trouxemos mais de cem novos clientes nessa área. E é interessante a tipologia: nos centros de serviços partilhados, o grau de complexidade das empresas que chegam é cada vez maior, requer quadros mais qualificados. Portugal tornou-se no maior polo de desenvolvimento de software para a indústria automóvel alemã fora da Alemanha. Estes números acrescem aos anteriores: 2021 também foi um ano recorde de novo negócio em centros de serviços, fruto do mesmo trabalho - já o tínhamos batido em 2019 e voltámos a bater, subindo em 30% o número de novos clientes angariados. Essa tendência mantém-se: os números em fevereiro estão perfeitamente em linha com 2021. E mais, os clientes que já cá estavam até antes de 2015 têm migrado serviços cada vez mais complexos ou com competências mais complexas para Portugal. Isto tem efeitos nos postos de trabalho criados: nos contratos assinados no PT2020, a média da criação de emprego é mais do dobro da do QREN. E isso também impacta nos salários.
E vem de que países?
Os incentivos estão completamente ligados à indústria: 54% vêm de Alemanha, França e Espanha. A UE representa 70% do investimento angariado, mas diversificámos com investimento relevante italiano, suíço e belga. Onde se deu a transformação maior foi no extra-UE: o maior investidor é hoje a Coreia do Sul. Não era algo de que se falasse há dez anos. São operações tipicamente de engenharia e produção industrial ligadas ao setor automóvel ou a energias renováveis, altamente exigentes. E temos ainda Reino Unido, EUA -não havia grandes movimentos de investimento americano produtivo para Portugal. E conseguiu-se porque passámos a cobrir estes países com uma estratégia diferente, nomeadamente com presença nos EUA e Extremo Oriente. Todo este investimento é angariado peça a peça, é pesca de arpão, não é de rede. E a diversificação é positiva para nós, não só porque cada investidor tem os seus ciclos como porque também os setores são distintos e quanto mais diversificada a nossa balança melhor - sofremos menos com eventos específicos.
Em 2021, com o país a sair de uma crise pandémica, estes valores revelam um tecido empresarial mais resiliente?
Sem dúvida. As nossas empresas sempre reagiram positivamente. Se compararmos com a crise de 2010, a taxa de recuperação de exportações é mais rápida, o que significa que as empresas estavam mais bem preparadas e resilientes. E mais: das que já exportavam para dez ou mais mercados, uma fatia muito grande aumentou os mercados, ou seja, com a preparação e a capacidade de inovação que têm conseguiram reagir de forma rápida e ainda ir buscar outros mercados em pandemia. Isso demonstra competitividade e resiliência.
Não o surpreendeu?
Não, mas eu lido com estas empresas diariamente e tenho bem noção do que são capazes. Hoje o comprador externo, seja a nível de bens intermédios ou de produtos de consumo final, tem uma perspetiva em relação ao produto português de que é bom e competitivo. Isso é uma vitória. Desde 2010, as nossas exportações de bens subiram 1,7 vezes, quase duplicaram, e isso deve-se às exportadoras portuguesas.
Para potenciar o crescimento temos de continuar a atrair investimento, apostar mais nas exportações?
Quais são as nossas opções, dado o nosso nível de endividamento e perfil de consumo? Não conseguimos aumentar o nosso PIB com consumo interno, por isso temos de exportar mais. E temos muito espaço, comparando com outros países da nossa proporção na Europa, para aumentar o peso de exportações no PIB. Em 2019 estávamos em 44%, é razoável trabalhar para chegar a 50% nos próximos três ou quatro anos. E a partir daí temos de trabalhar para, no médio e longo prazo, chegarmos a 70%. O caminho tem de se traçar a partir das exportações. E se queremos ter melhor qualidade de vida, com alto valor acrescentado da nossa hora trabalhada. Daí eu dar tanto valor a estes projetos. Dada a situação de capitalização do país, temos de continuar a atrair investimento estrangeiro. Vencemos o ciclo de 2015 e é inevitável que continuemos. Acho que é o desejo de todos os portugueses. E a verdade é que nós conseguimos. Não há motivo para não continuar. Perguntou-me se é possível continuar acima dos mil milhões e do que eu conheço, digo: porque não?
O PRR e a adesão às Agendas Mobilizadoras são bons pontos de partida para expandirmos a nossa capacidade?
São. O PRR tem uma lógica de trabalho de fileira, de consórcio, e pode ter um impacto muito importante na inovação que os consórcios podem ter nas suas fileiras - com efeito nas exportações. Acima de tudo, o PRR tem de ser visto como um mecanismo de aceleração do que tem sido feito. Obviamente, agora é preciso consolidar e implementar essas agendas. E outra coisa: muitas vezes pergunta-se como se mantém a competitividade - num mundo global, quem parar fica para trás; a dimensão do investimento e o PRR tem alguma na manutenção e no fomento do nosso talento.
A estabilidade garantida pela maioria absoluta ajudará a que este seja o ano da recuperação?
Eu não faço comentários políticos, nunca o fiz. Mas é óbvio que um cenário de estabilidade governativa é algo que os investidores valorizam, os inquéritos mostram-no. Toda a incerteza é má, a estabilidade é boa. Por isso considero que há condições para a AICEP continuar a trabalhar a este ritmo e a superar recordes.
E poderá continuar a trabalhar consigo, visto que o seu mandato termina no final do ano?
Estamos em fevereiro, ainda tenho muito trabalho pela frente, a Expo a acabar em abril, a Hannover Messe em finais de maio junho - será o maior evento de promoção empresarial dos últimos 15 anos e dos próximos dez. É nisso que estou concentrado. E no arranque do novo quadro.
Mas estaria disponível?
Não estou a colocar essa questão neste momento. A vida na AICEP é muito intensa, com muitas frentes de trabalho e esse é um processo de reflexão a fazer mais tarde.