"Números do desemprego são ficcionais e podem aumentar muitíssimo"

Em entrevista na TSF um ano depois de ser eleita secretária-geral da CGTP, Isabel Camarinha reflete sobre estes 12 meses de mandato, que coincidem quase na totalidade com a pandemia.

Isabel Camarinha foi eleita secretária-geral da CGTP no dia 15 de fevereiro de 2020. Duas semanas mais tarde, Portugal registava o primeiro caso de Covid-19, e passado um mês o país entrava em confinamento.

Entrevistada na TSF um ano depois do congresso que concretizou a passagem de testemunho de Arménio Carlos para a nova líder, Isabel Camarinha faz uma reflexão sobre os primeiros 12 meses de mandato.

Peço-lhe que escolha uma palavra para descrever este seu primeiro ano de mandato na CGTP.

Não é fácil. Uma palavra dificilmente consegue retratar este ano, mas diria talvez a palavra "exigência". Quando realizámos o nosso congresso, caracterizámos a situação dos trabalhadores e do país e colocámos as nossas orientações e prioridades para a ação da CGTP para este mandato. Com a pandemia, essa caracterização manteve-se mas agravando-se, e a necessidade de resposta às reivindicações também se mantém ganhando até mais atualidade porque os problemas aumentaram e acentuaram-se.

Façamos um paralelo com a área da saúde. As doenças não-covid passaram para segundo plano e isso pode ter consequências graves. Vai acontecer o mesmo no mundo do trabalho? Os problemas não-covid fizeram esquecer os outros, podendo levar a que se perpetuem?

Não fizeram esquecer. Esta situação agravou os problemas que os trabalhadores sentiam, nomeadamente neste modelo de baixos salários e na precariedade, ainda por cima com garantia legislativa. A legislação laboral permite e fomenta até a precariedade dos vínculos e não há uma intervenção no sentido de garantir que um trabalhador que ocupe um posto de trabalho permanente tenha um vínculo efetivo. Houve uma alteração na legislação laboral em 2019 que aumentou a precariedade. Por exemplo, temos o período experimental do 180 dias, que já era gravíssimo quando foi aprovado e que denunciámos. Com a epidemia, os trabalhadores que estavam em período experimental foram todos mandados embora, para além dos que tinham contratos não permanentes que foram os que sofreram mais. O que era já uma situação que exigia uma alteração de política e de rumo foi acentuada pelo problema de saúde pública.

O que é que a pandemia trouxe de pior ao mundo laboral?

Um aproveitamento muito grande para retirar direitos aos trabalhadores. Não cumprir nem respeitar os contratos coletivos e os direitos, em aspetos como a saúde e segurança, e nesta situação isso era o mínimo que se exigia. Mas também nos horários de trabalho, no direito a negociar a contratação coletiva e melhorar as suas condições de trabalho.

Como tem evoluído a sindicalização? A pandemia trouxe alguma alteração?

No congresso fizemos um balanço da sindicalização com resultados muito positivos. Tinha havido sindicalização de mais de 114.000 trabalhadores. Com as preocupações da situação epidémica, com o ataque foi feito aos direitos dos trabalhadores, eles vieram muito aos sindicatos. Houve muito a sindicalização durante o ano de 2020.

Tem números que ilustrem esse fenómeno?

Não temos números fechados porque alguns setores ainda não têm esse balanço. Mas vieram muitos milhares de trabalhadores aos sindicatos.

Como é que olha para os movimentos que, não sendo sindicatos dizem defender os trabalhadores? É o caso, por exemplo, do Movimento Zero nas forças policiais. Hoje mesmo há uma manifestação em que participam vários sindicatos e também o Movimento Zero, como se fosse mais um sindicato, coisa que não é.

Não é, efetivamente. São movimentos que surgem muito de descontentamento, de sentimentos de revolta legítimos, por parte de camadas de trabalhadores que, eventualmente, encontram aí uma forma de manifestação.

Prejudicam o sindicalismo?

Nós não temos sentido que haja enfraquecimento dos nossos sindicatos devido à existência desses movimentos. Sabemos que quando os trabalhadores estão organizados nos nossos sindicatos, quando enfrentam as situações de forma coletiva, os resultados surgem. Os sindicatos são organizações que têm um objetivo de defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores numa perspetiva também de desenvolvimento do país, que articula as necessidades imediatas com uma visão mais geral. Existem, e eventualmente sempre irão existir, movimentações paralelas ou marginais, que não impedem que até muitos desses trabalhadores sejam sindicalizados. Uma coisa não impede a outra.

O desemprego cresceu muito menos do que o previsto, e há quem chame a este fenómeno o "milagre do desemprego". Está estabilizado ou o fim do lay-off vai trazer uma realidade mais dura?

Os números oficiais do desemprego não refletem o desemprego real, porque há um conjunto de trabalhadores que não estão incluídos no desemprego oficial mas que nesta situação económica deveriam estar, porque são trabalhadores ou desencorajados ou que deviam estar à procura de emprego, mas, pela situação de confinamento, não conseguiram, e são contabilizados como inativos. Se somarmos tudo isto, são 752 mil trabalhadores desempregados.

Estes números são então ficcionais?

São ficcionais. Por outro lado, há o risco, se não forem alteradas as opções que o Governo tem vindo a aplicar, de aumentarem muitíssimo quando terminarem os apoios que impedem alguns tipos de despedimentos. Há um período de 60 dias que não responde às necessidades em que continua a manter-se a proibição de despedimentos coletivos e por extinção do posto do trabalho, mas depois não há mais nada. Se não houver investimento nos salários, nem o fim da precariedade e a garantia da manutenção do emprego, a situação vai certamente agravar-se. Está nas mãos do Partido Socialista e do Governo alterarem as opções que têm vindo a tomar.

Quais são o melhor e o pior momento que passou neste primeiro ano de mandato?

O melhor momento é difícil de encontrar....

Não há muitos bons momentos nestes 12 meses?

Posso dizer os melhores momentos. São aqueles em que sentimos que a nossa ação conseguiu resultados. E tivemos muitos desses momentos. Não só resultados de mobilização dos trabalhadores como depois haver uma resposta positiva. O pior momento é esta situação muito grave de saúde e as consequências que ela já teve e poderá vir a ter para os trabalhadores, para as populações e para o nosso país. Temos reivindicações e propostas, consideramos que há formas de garantir que a situação se ultrapassa sem as consequências graves que existem, mas a resposta não vem por parte de quem tem o poder, que neste caso é o Governo, de alterar o rumo que tem vindo a ser seguido. Não é propriamente um momento, mas é o pior que esta situação tem. Mas com a luta e a mobilização dos trabalhadores, vamos conseguir. Temos confiança no futuro e Portugal há de ultrapassar estas dificuldades. Mas isso exige mudança de rumo e investimento para valorizar o trabalho, os salários, manter o emprego, reduzir o horário de trabalho, porque isso já garantiria muito mais emprego e também ajudaria muito nesta situação de proteção da saúde. É preciso garantir serviços públicos e respostas a este momento. E também ao futuro, porque a necessidade de respostas não vai acabar quando acabar a crise epidémica. Precisamos de ter serviços públicos fortalecidos, o que infelizmente não tem acontecido.

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