"A oposição deve obrigar o Governo a governar bem. E está a obrigar o Governo a governar mal"

David Justino, antigo deputado, dirigente do PSD e Ministro da Educação, é o convidado da entrevista Em Alta Voz.

Daqui a uma semana, o professor vai dar a última aula. Chamam-lhe, na academia, lição de sapiência. Na mesma altura, está nos escaparates o livro "Ensaios sobre o dia seguinte". São estudos e reflexões sobre o mundo, Portugal e a educação. Quase 70 anos depois de ter nascido, o professor que começou por ser economista, depois sociólogo e, pelo meio, passou pela política e pela direção do PSD.

Na dedicatória do livro, David Justino escreve: «aos meus alunos, razão maior para ser professor». Nesta entrevista, acusa o governo de navegar «à vista do Costa» e revela que ainda não viu no PSD uma alternativa.

Começo pela educação e pela dedicatória do seu livro que diz assim: "aos meus alunos, razão maior para ser professor". Isto é, professor uma vez, professor para sempre?

Sim, acho que sim. Julgo que é a marca que levamos e construímos ao longo do tempo, esta relação que construímos com os alunos. Um professor do ensino superior é investigador, às vezes é gestor, mas acho que aquilo que define o meu percurso é sempre esta ligação estreita que tenho com os alunos. Foram milhares de aluno, desde 1976, quando comecei a dar aulas no Instituto Superior de Economia onde estive quatro anos. Passado esse período de tempo, transferi-me para a Universidade Nova de Lisboa, para o departamento de Sociologia, e só interrompi para estar no ministério e, parcialmente, enquanto fui deputado pré-entrada no ministério. Foi o único tempo em que interrompi a docência. E ainda estava como deputado, a concluir a licenciatura, estava Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro, eu já estava lá num seminário livre. Tenho essa necessidade e mais: às vezes tenho a imagem, do 13.º andar, o meu gabinete na 5 de Outubro, tenho a vista para o átrio da minha escola, na Avenida de Berna. Uma das coisas a que tive sempre a tal ligação é precisamente aquele pátio, aquela esplanada, aquele departamento, faz-me falta. Não sei como é que vou lidar, agora vou continuar a trabalhar na faculdade como investigador, mas na parte da docência o limite de idade impõem-se.

Alguma vez fez greve?

Não, nunca fiz.

Pergunto porque estamos a viver semanas de luta dos professores com greves, protestos, alguns dizem que são radicais, mas as causas da luta parecem sempre as mesmas desde há várias décadas. Progressão de carreira, salários, colocação, professores não efetivados, o que é que falhou para ouvirmos hoje o mesmo que ouvíamos há 30 anos?

Eventualmente, pode ouvir-se a mesma coisa, mas a dimensão do problema é diferente. E tenderá a ser cada vez maior à medida que o tempo vai passando, que a situação se vai acumulando, e não se encontram respostas para aquilo que é um problema efetivo.

Mas porque é que não se encontram respostas?

Na altura em que estive no ministério, o professor Júlio Pedrosa, que me antecedeu, deixou-me um estudo sobre projeção das necessidades dos professores por grupo de disciplinas a vários anos. E aquele estudo sugeria que tínhamos um problema: havia professores a mais. Estavam a sair das licenciaturas vários professores, mas o sistema não comportava aquele crescimento. Tendo consciência disso, o que tentei fazer foi uma boa gestão dos recursos disponíveis e tentar que esses professores a mais, de forma progressiva, pudessem integrar e entrar no sistema. A partir daí, devo confessar que não tive problemas graves em termos de discussão sobre a carreira. Aliás, lembro-me perfeitamente de ter tido uma reunião com o então presidente da FENPROF e falámos sobre o estatuto da carreira de docente, disse-lhe que havia coisas que estavam ultrapassadas e que queria a opinião deles para podermos fazer uma atualização do estatuto. O que me foi dito foi, "senhor ministro, nem pense", portanto, mexer no estatuto contava com a oposição deles, isto em 2002. O que aconteceu a seguir foi que não dei especial atenção ao problema da carreira, não creio que houvesse problemas muito graves, excetuando os professores candidatos serem cada vez mais. A única coisa que tinha de fazer era dar prioridade a outras áreas, como seja reorganização do sistema, gestão da rede escolar, e desde a entrada que tinha um problema da revisão da reforma da matriz curricular do ensino secundário e queria focar-me nesses aspetos.

O que está a dizer é que, nessa época, os sindicatos bloquearam uma reforma que o ministro da Educação achava relevante?

Não, não bloquearam. Aquilo nem era propriamente uma reforma, eram ajustes e atualizações de questões relacionadas com o estatuto do docente que precisavam de ser revistas e que, na minha opinião, estaria disponível para receber contributos dos sindicatos. Aquilo que me foi dito foi que era melhor não mexer nisso, porque havia outros assuntos e etc.

Em retrospetiva, há alguma medida que acha que deveria ter tomado e não tomou nessa época?

O problema é saber porque é que não tomei. Há várias medidas que não tomei, porque só lá estive dois anos e três meses, é tão simples quanto isso. Tinha um planeamento de prioridades, porque quando atacamos tudo ao mesmo tempo o risco é enorme, fiz esse planeamento para quatro anos sem me passar pela cabeça que o dr. Durão Barroso fosse para presidente da Comissão Europeia passados dois anos.

E dessa lista de prioridades quais foram aquelas a que não chegou e lhe deixaram um certo amargo de boca?

Vou dizer-lhe o que consegui fazer e foi muito duro, nomeadamente o reordenamento da rede escolar que teve a ver com o problema do encerramento das escolas do primeiro ciclo. Foi feita e depois teve continuidade com os ministros posteriores. Outro aspeto, era o problema dos agrupamentos, acelerei este processo integrando as escolas secundárias. Outra coisa que tive de fazer, à pressa, mas não creio que tenha ficado mal, porque ainda hoje vigora apenas com pequenas alterações, que é a reforma do ensino secundário. Porque aquilo que me tinham deixado era uma reforma com dois tipos de cursos: tecnológicos e científico-humanísticos. No entanto, havia tudo o resto - ensino da música, ensino de artes, cursos profissionais -, que tinha de ser trabalhado, não podia ser de forma segmentada. Portanto, suspendi a reforma do ensino secundário que vinha do governo anterior e fiz uma abordagem mais holística e integrada das diferentes saídas do ensino secundário.

Portanto, isso foi feito e está neste momento em vigor. Por exemplo, criei as condições para que a escola pública pudesse ter as condições para a oferta de ensino profissional, isso é algo que está consolidado. Onde poderia ter ido um pouco mais além, era na parte do estatuto da carreira de docente, quer em relação às progressões, quer em relação à própria dignificação do estatuto, que não tinha necessariamente a ver com os níveis salariais. Estava condicionado, a despesa estava completamente a disparar, a ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite, teve um papel fundamental e acho que também a ajudei um bocadinho nesse sentido. Já não pedia para descer a despesa, pedia para conter o crescimento da despesa. Havia esse condicionamento e isso, de alguma forma, foi conseguido através de ganhos de ordenamento da rede. Outra coisa que gostaria de ver era a revisão da própria lei de bases do sistema educativo, que vem de 1986 e ainda não foi alterada. Isto é, teve alterações pontuais e propostas do PS, viabilizadas pelo PS e pelo maior partido da oposição na altura, PSD. Apresentei, na altura, uma proposta para uma nova lei de bases para que pudesse orientar todas as políticas que viessem a seguir. Essa foi aquela que não consegui, não foi aprovada no parlamento, o PS acabou por se desvincular dessa revisão, embora tenham sempre acompanhado aquela proposta, mas como estávamos perto de eleições europeias, aquilo que aconteceu foi que se desvinculou à última da hora. E devo dizer que o meu interlocutor era o professor Augusto Santos Silva, uma pessoa que já conhecia há muitos anos. Foi o contexto político, demorámos muito tempo a debater as alterações à lei, nomeadamente naquilo que é a discussão aberta.

E hoje parece que estamos quase na mesma em relação a esses tempos.

Está praticamente na mesma.

No seu entender, qual tem sido o papel dos sindicatos?

Os sindicatos fazem aquilo que têm a fazer e em muitos deles fazem-no bem. Se estivesse no lugar deles, era capaz de fazer o mesmo, o papel deles é contestar as alterações que possam existir ou não. Podemos dizer que não gostamos do Mário Nogueira ou do João Dias da Silva, tudo bem, uma coisa são as relações pessoais, mas tenho de reconhecer que os sindicatos fazem o que têm a fazer. É o trabalho deles e da minha parte não ouvirão conselhos aos sindicatos, isso não faço. Agora, o problema é que, enquanto Mário Nogueira está à frente da FENPROF como presidente, antes disso era presidente do sindicato FENPROF centro, digamos assim, tem muitos anos disto. Já passou por não sei quantos ministros, mas eles mudam eternamente, mesmo que os mandatos tenham vindo a aumentar em termos médios. Mas da parte dos sindicatos, eles conhecem os dossiês, conhecem os pequenos pormenores, além de terem uma ligação muito estreita com a classe, têm sempre vantagem em relação a um ministro novo que chega.

E como vê este novo sindicato S.T.O.P.?

Não tenho informação suficiente sobre o S.T.O.P., mas isto sempre esteve muito polarizado entre as duas grandes centrais sindicais, entretanto, começam a aparecer vários sindicatos independentes, este é mais um deles. De certa forma, reflete um pouco o que se passa a nível do movimento sindical, quer dos movimentos sociais, que é alguma radicalização e polarização política do movimento sindical. Há aqui uma diferença, como os problemas que já foram identificados há muito tempo não têm vindo a ter resposta, o problema vai-se agravando.

Mas há 30 anos que ouvimos falar destas questões, estas coisas não são novas.

Sim, mas essa era uma questão que no meu tempo tinha a ver com os miniconcursos. E uma das coisas que fiz foi eliminá-los, assim como as chamadas candidaturas de gaveta, algo que existia bastante nas escolas. Depois, precisávamos era de ter tido continuidade relativamente a outro tipo de questões. Agora, o que me preocupa é a questão da polarização que se identifica no movimento, isso preocupa-me, porque a acumulação do problema e o desgaste que os próprios professores revelam, não é bom para o ensino, nem para os professores, nem para a sociedade portuguesa. Lembro-me perfeitamente o que foi a grande polémica da chamada crise dos professores, já durante o governo de Costa, em 2018. E entendo que aquela disputa foi produto de uma radicalização a que o PSD, e na altura estava na direção, não soube encontrar a melhor resposta para isso. O que o governo não aprendeu, mas devia ter aprendido, é que, não obstante ter ganho a contenda, não resolveu o problema. Portanto, era necessário que a seguir resolvesse o problema, acho uma injustiça o não reconhecimento do tempo de serviço, por exemplo, que é uma das reivindicações mais fortes dos professores. Quer dizer, não serve de nada fazermos dez declarações a dizer que respeitamos muito os professores se depois não há ação concreta. O problema volta sempre à tona e é precisamente devido à falta de resposta relativamente a um problema que se vem adensando e se torna cada vez mais polarizado. Por exemplo, durante o período do governo de Passos Coelho foram exigidos uma série de sacrifícios e cortes, mas não vi da parte da classe dos professores uma animosidade, as pessoas acabaram por aceitar. Houve reconhecimento por parte da classe que havia dificuldades e que não era altura para fazer um movimento de reivindicação. Mas passado esse período, criou-se a expectativa de que esse tempo tinha passado e, portanto, estaria na altura da reposição, mas nada foi reposto.

E na quarta-feira, o primeiro-ministro disse, e vou citar de memória, que não podia tratar do passado, apenas do presente e do futuro, e que o que tinha acontecido aos professores é que lhes tinham criado demasiadas expectativas. Mas estas expectativas também foram criadas por ele próprio que governa há sete anos.

Sim, sim, mas continuam a dizer que Passos Coelho é que é o problema, às vezes não percebo isso muito bem. Ao fim de estarem sete anos no poder já tiveram mais do que tempo para resolver o problema.

No seu livro faz várias perguntas, algumas dá respostas, outras nem por isso. Uma delas é "educar para quê?". Encontrou resposta para isto?

Para mim, tenho uma resposta. A resposta é sempre que, por cada ano que passa, os desafios que se colocam ao perfil que desejamos para um aluno vai-se alterando. Agora, temos sempre de projetar, quando trabalhamos em educação temos de nos lembrar que estamos a trabalhar para um futuro mais afastado que não sabemos qual é. A única coisa, nomeadamente em contexto de incerteza, é que não posso andar atrás de tudo o que muda, tenho de me basear no que permanece. E, fundamentalmente, o que permanece é o tomar a educação como a ponte entre o passado, o presente e o futuro. O conhecimento é fundamental nisso, mas costumo dizer sempre aos meus alunos que o Teorema de Pitágoras está estabilizado há dois milénios, não mudou, mas é por isso que vamos deixar de o ensinar? Não, o Teorema de Pitágoras é fundamental para ensinar outro tipo de raciocínio, há coisas que não mudam. Devemos centrar-nos naquilo que não muda ou que muda muito lentamente. Passar a ideia de que tudo muda, de que tudo é efémero, cria nas instituições uma ansiedade e angústia que não é compatível com a própria vida da instituição. Quando passamos por contextos de mudança muito acelerada e disruptiva, aquilo que temos a fazer é ir buscar a bengala do que permanece. Somos muito influenciados um bocado pela imagem do caçador que vai para a floresta caçar e que passa o tempo a olhar só para aquilo que mexe, quando na realidade tem a floresta toda que permanece. Devemos estar mais orientados para aquilo que permanece do que andarmos como baratas tontas atrás de tudo o que muda.

No seu livro, no capítulo sobre Portugal, pergunta-se quem somos e por onde vamos. Encontrou as respostas para essas questões?

Portugal tem uma identidade e um sentimento nacional inabaláveis, não há problemas de identidade nacional, isso é o que digo. O problema que se coloca aqui é que não nos conseguimos libertar do labirinto de que falava Eduardo Lourenço, ele falava do labirinto da saudade, mas eu falo só em labirinto. Dá a sensação de que Portugal está preso neste labirinto e que não há ninguém que se eleve um bocadinho e que veja qual é a saída. Geralmente, os labirintos têm uma ou mais saídas, o problema é vermos qual será essa saída e, acima de tudo, termos capacidade de mobilização da sociedade para todos podermos percorrer esse percurso para sairmos do labirinto. Se andamos só de volta dele, sempre a cometer os mesmos erros, torna-se difícil sairmos de lá. Não temos problemas de identidade, de nacionalidade ou de integridade do território, somos uma das mais antigas nações do mundo.

No seguimento do que está a dizer, já ouvimos que este país não é para velhos, não é para jovens, então será para quem?

Quer queiramos quer não, este país tem de ser para os portugueses, não há outra hipótese se quisermos manter a nossa identidade e a ideia de que esta é a pátria onde nos sentimos bem como portugueses. Agora, temos é de encontrar saídas e acima de tudo soluções. Não há nenhum destino premeditado, o que há é a capacidade de dizermos onde queremos estar daqui a dez anos e temos de ver o que é preciso fazer para lá chegarmos. Claro que o objetivo tem de ser razoável, não basta enunciar que queremos 10% disto ou 30% daquilo, não é isso, é qual é a posição que desejamos para Portugal e quais os recursos que temos atualmente.

E quem é que o deve dizer?

Isso é que define as lideranças políticas, a capacidade de poder identificar um problema, estabelecer uma meta e traçar um caminho.

É isso que está a falhar neste momento em Portugal?

É, claramente.

Nessas lideranças está a incluir a atual do PSD?

Também, mas já iremos a essa questão. O António Bagão Félix diz que este governo trabalha para o dia seguinte, mas eu digo que este governo trabalha para o dia anterior, porque é reativo. Quando menos espera, aparece-lhe um problema e reage, mas quando é assim estamos presos, não há capacidade de antecipação. E se não há capacidade de antecipação, não há rota, não há rumo, é óbvio que a navegação será sempre mais tumultuosa. Creio que o senhor presidente da república disse que navegamos à vista da costa, mas andamos é a navegar à vista do Costa. E como a vista dele é sempre muito orientada para o "logo se verá", como o barco não dá para parar de um momento para o outro, quando der para encalhar, encalha mesmo.

Se há então falta de lideranças, o que está então a fazer bem e mal o atual líder do PSD?

Estou afastado do PSD, continuo como militante, mas também por sanidade mental saí dessa bolha. E há uma coisa que prometi a mim próprio, e acho que não fui só eu, que é que não vamos fazer a esta direção o que nos fizeram a nós. Durante quatro anos fomos bombardeados com várias tentativas de golpe, com insinuações, com fugas de informação, tudo e mais alguma coisa. Acho que, pelo menos da minha parte, não tenho qualquer pretensão em influenciar ou conspirar, estou completamente fora disso. Dito isto, acho que o PSD está bem, está claramente a subir nas sondagens, deixou de ser muleta do PS, é um partido de forte oposição e que a está a marcar, não há conspirações nem tentativas de golpe, acho que o PSD está bem. Portanto, se está bem, o que é que vou fazer? Não faço nada.

Mas está a fazer bem essa oposição?

Isso vocês é que têm de fazer essa avaliação. Aquilo que digo é que quando se está na oposição, temos de fazer duas coisas: criar uma alternativa - que ainda não vi nada -, e obrigar o governo a governar bem. Aquilo que se está a fazer é obrigar o governo a governar mal e, sinceramente, não creio que Portugal ganhe algo com isso. Para obrigar o Governo a governar bem é preciso apresentar alternativas que, mais tarde ou mais cedo, seja obrigado a adotar. Se o Governo não faz uma coisa e a oposição está no mesmo tom, claro que o país não ganha nada com isso.

A páginas tantas, no seu livro, levanta a questão dos que trabalham, mas continuam pobres. O Estado sufoca-nos com impostos diretos, indiretos, taxas e taxinhas, tributa tudo o que mexe. Também pergunta sobre os ricos e chega à conclusão de que Portugal tem poucos ricos. Subscreve aquela frase muito utilizada pela direita de que a esquerda não quer acabar com os pobres, quer é acabar com os ricos?

Sim, sim. Se não estou em erro, é uma frase que já veio do Olof Palme numa conversa com Otelo Saraiva de Carvalho quando se conheceram a seguir à revolução. No fundo, uma dimensão social-democrata da vida não tem de tomar os ricos como alvo principal, mas tem de acabar com a pobreza, promover a mobilidade social e as oportunidades para que os pobres deixem de ser pobres.

Mas isso não está a acontecer.

Não, não está a acontecer. Os números da pobreza são tão elevados, não falo só dos pobres, mas também dos que estão pouco acima do limiar da pobreza. Fala-se muito da classe média, há muitas classes médias, temos de ter algum cuidado com isto. Temos uma classe média que está muito próxima das classes de menores rendimentos. O problema não está no salário, está na estratificação que existe. E o que noto é que, ao contrário de outros países, temos uma estrutura social em que o peso da classe média baixa é muito grande. Costumo utilizar o termo de que somos um país de pobres e de remediados, mas os remediados estão em grave risco de passarem a ser pobres, este é que é o problema. Só vejo uma saída para isto, é crescimento económico, não há outra. A ideia de privilegiar sempre a perspetiva distribucionista é uma coisa que acho que é de curto prazo, não pode ser feita em termos estruturais.

Está a referir-se a estes casos e casinhos que têm surgido ultimamente?

Sim, mas isso vem muito da bolha política. Podemos até pegar um bocadinho nisso, mas eu estava mais preocupado em entender... quer dizer, o empresário é presumivelmente um bandido. A imagem que é projetada é que o empresário para ganhar dinheiro rouba. Enquanto mantivermos esta cultura e esta maneira de pensar, tenho muitas dúvidas de que consigamos crescer. Para isso temos de criar confiança para que o investimento, quer o investimento nacional quer o estrangeiro possa ser concretizado. Se não há investimento, se não há desenvolvimento tecnológico, se não há confiança, se não há estabilidade institucional e a criação de um ambiente que seja estável, não há capitalismo sem acumulação de capital. Portanto, não se admirem, e nós estamos há praticamente 20 anos sem crescer a uma taxa minimamente aceitável. Crescemos, em termos médios anuais, não mais do que 0,4 ou 0,5%. Isto é estagnar.

Assim, é de facto difícil reduzir a pobreza. Falava há pouco de casos e casinhos, com demissões consecutivas no governo, pouco escrutínio e agora um mecanismo que promete agora resolver os problemas de recrutamento para o governo. Qual das frases é que o senhor subscreve: o povo tem o governo que merece ou os governantes têm o povo que merecem?

Não subscrevo nenhuma das duas.

Qual é a sua frase então?

Há um problema de base aqui que são os partidos políticos. O primeiro mecanismo de escrutínio que deve existir é o chamado autoescrutínio. É uma pessoa assumir que tem um problema e que não está em condições de desempenhar um cargo político.

Há uma falta de ética e de caráter das pessoas?

Sim. Senão não acontecia isto. Ou seja, quando o autoescrutínio não funciona estamos mal. Segundo nível é o escrutínio dos partidos. Os partidos existem precisamente para poderem recrutar, formar e selecionar os seus quadros. E, portanto, têm ali uma base que é a sua base de recrutamento para o governo. Se, por acaso, este escrutínio não é feito pelo partido, ele deixa de funcionar como essa peneira que é necessário ter. Se o Estado, neste caso a sociedade portuguesa paga aos partidos em função dos votos que obtêm para funcionar, é para serem capazes de exercer estas funções. E os partidos não estão a exercer estas funções.

Porquê?

Isso não sei.

O que é que está a falar? Os partidos deixaram-se acantonar?

Não, por uma razão simples. Os partidos tornaram-se uma mera máquina de poder. Já disse isto há uns anos e continuo a dizer, e nem sempre os fins justificam os meios. E, portanto, se estamos muito obcecados com os fins e esquecemos os meios, aquilo a que chegamos é que raramente chegamos bem ao fim. E nesse sentido acho que os partidos não estão a exercer aquilo que é fundamental, que é fazer a seleção e o recrutamento para as suas necessidades. Não é isso que acontece nos grandes partidos. Só falo dos grandes partidos porque sabemos que, por exemplo, o Partido Comunista Português é completamente diferente. Não creio que haja problemas graves no PC, mas em partidos pequenos como o Chega há problemas graves de recrutamento. Portanto, nessa perspetiva, esse é o ponto. Tenho que dizer que tenho um grande apreço pelo Fernando Medina na política, mas fico impressionado que aceite uma Secretária de Estado com a qual só tinha falado uma vez. Como é que é possível? Alguma coisa está mal. Portanto, não está em causa nem o secretário de Estado, está em causa o sistema de nomeação. Quando assumimos que há determinados riscos e se aposta em pessoas que não conhecemos, das duas uma: ou tenho a garantia de confiança vindo de outra fonte e acredito na fonte, porque se não for assim não tem sentido.

Que adjetivo é que poria nessa situação?

Não ponho adjetivos, mas isto tem a ver com as culturas políticas que são dominantes nos grandes partidos. O problema que se põe aqui é que a partir da altura em que o partido é candidato a bens públicos e a benefícios públicos, os partidos não estão a fazer nada. E, portanto, a desconfiança que os portugueses têm dos partidos políticos decorre um pouco disto.

E essa falência é um pouco dos partidos políticos e já tivemos exemplos, pedia-lhe alguma capacidade de síntese, quase um sumário, há uma relação direta entre estas novas sociedades e a forma como se organizam e os regimes políticos? Ou seja, o crescimento dos extremismos é hoje muito pelo vazio dos partidos tradicionais que não estão a representar o seu papel?

Sim. Porque aquilo que designamos que são as soluções moderadas e equilibradas em que o consenso e o compromisso possível tem a ver com os dois grandes partidos. Se essa moderação e esse centrismo político não dá confiança às pessoas porque não há compromisso e não há diálogo é natural que as pessoas se radicalizem e comecem a apostar em soluções alternativas e antissistema. Como há maior polarização política, e a incerteza também é maior, as soluções alternativas são cada vez mais radicais, e é natural que o eleitorado se sinta fragilizado na confiança que deposita nos partidos e nas soluções políticas e começa a apostar nestas soluções mais radicais.

Antes de fecharmos recordo o título do seu livro - Ensaios sobre o dia seguinte. Está otimista quanto ao dia seguinte? O que é que aí vem?

Estou preocupado. Nem pessimista, nem otimista. Mas estou preocupado, e aí aquele capítulo que citou há bocado, nós caímos outra vez naquele labirinto e não há ninguém que consiga ver a saída. Andamos ali à volta, sempre sujeitos ao que o Basílio Teles dizia "logo se verá". Entramos no casuísmo. Precisávamos de ter uma direção, um rumo, um plano porque sei que muita coisa muda. Mas também é mais o que permanece do que aquilo que muda. Por isso temos que nos agarrar ao que permanece e planear o que permanece.

E não vislumbra ninguém que nos possa apontar esse caminho?

Não há soluções milagrosas, mas existem pessoas que estão nos partidos. É preciso é encontrá-las e é necessário que emerjam dos partidos. Nem sempre os partidos estão disponíveis para encontrar essas soluções.

No seu partido muitos clamam pelo regresso de Passos Coelho. É o seu caso?

Não sei, mas o que acho é que nem o próprio Passos Coelho está interessado.

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