Henrique Gouveia e Melo, Almirante Chefe de Estado-Maior da Armada
Em Alta Voz

Almirante Gouveia e Melo garante prontidão de forças comprometidas com a NATO

O chefe do Estado-Maior da Armada desvaloriza as polémicas no início do mandato, promete mais eficiência, e garante que a Marinha está à altura dos desafios do futuro. No dia da Marinha, Henrique Gouveia e Melo, explica porque é contra o Serviço Militar Obrigatório, e porque Portugal tem de aproveitar e valorizar a aposta no mar.

Passou 22 anos debaixo de água a comandar submarinos. Considerado uma espécie de herói nacional, aceitou a missão de vacinar em massa os portugueses contra a Covid-19. Menos de um ano depois, tomou posse como chefe do Estado-Maior da Armada. Tem 61 anos e um plano para a Marinha e para o futuro das Forças Armadas.

A sua tomada de posse como chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) acabou antes da hora marcada para começar. Já nos pode dizer o que aconteceu naquele dia?

O que aconteceu foi uma tomada de posse que tem um determinado cerimonial e esse cerimonial foi cumprido. Uma vez cumprido, a tomada de posse terminou. Um bocado à minha imagem, gosto de fazer as coisas rápidas e de forma eficaz.

Essa sua posse como CEMA provocou uma espécie de crise entre o ministro da Defesa, São Bento e Belém. Onde é que o almirante ficou no meio disto tudo? Mais condicionado?

Não, não fiquei condicionado. Fiz o que me pediram para fazer, convidaram-me para ser chefe do Estado-Maior da Armada, fui empossado e estou a desempenhar essas funções atualmente. Sobre o resto, não é a mim que tem de fazer a pergunta, não tenho nenhuma opinião específica sobre isso.

Já falou com Mendes Calado desde a sua tomada de posse?

Sim, já me cruzei com ele e já falei com ele.

Houve uma passagem de pasta entre vós?

Normalmente, não há uma passagem de pasta porque há um conjunto de adjuntos que ficam no gabinete e fazem essa transição.

Então não há qualquer dúvida por esclarecer entre os dois?

Não, nem eu nem ele temos nenhuma acrimónia entre nós.

Há duas fações na Marinha? Uma de submarinistas e uma de fragatistas, uma é mais conservadora e a outra mais progressista. Podemos simplificar isto assim ou não?

Acho que é uma simplificação demasiado grande, mas espero que a progressista seja a submarinista. Também fui fragatista, fui comandante de uma fragata, mas são subculturas de uma organização que tem uma cultura muito forte. Todos ansiamos o mesmo que é servir Portugal através do mar e no mar, e transformar o nosso poder marítimo numa capacidade real que dê uma saída estratégica ao país. É algo que todos nós partilhamos.

Mas, independentemente de serem oficiais de submarinos ou de fragatas, há um lado mais conservador entre os oficiais da Marinha?

Todos os oficiais das Forças Armadas têm um lado conservador porque a mudança constante num sistema como as Forças Armadas, pode ser um problema. No entanto, não podemos só ser conservadores, também temos de mitigar esse conservadorismo o que é importante para manter estruturas como as Forças Armadas, com inovação e transformação. Quem não o fizer vai ficar para trás.

No tempo (desde dezembro) que leva como CEMA encontrou muitas surpresas?

As surpresas acontecem todos os dias e se quer com isso dizer que encontrei surpresas porque me deixaram surpresas, então não. Conheço bem a Armada, sabia o estado em que estava e, portanto, não tive nenhuma surpresa. Mas as surpresas acontecem todos os dias e a Armada é uma grande organização que funciona em diferentes níveis, é multidomínio, é eventualmente a única organização do Estado que funciona debaixo de água, à superfície da água, no ar, e em terra. Funciona numa área militar e numa área não-militar e tem uma grande responsabilidade dentro do contexto militar e, por isso, é um processo complexo, mas as surpresas fazem parte da vida e quem não as quiser ter não pode estar nesta função.

Encontrou muitos equipamentos da Marinha encostados no estaleiro?

Não me quero preocupar com o que encontrei, quero preocupar-me com o que posso fazer para mudar e transformar o que encontrei numa coisa mais positiva. Não significa necessariamente que estivesse negativa, mas mais positiva porque o nosso desejo deve sempre ser pela positiva, e nunca acusar os nossos antecessores, porque isso não faz parte da nossa ética militar. Quando assumimos um determinado papel que nos é dado, assumimos o papel em pleno, com tudo o que era bom e menos bom, e quando o fazemos, no dia seguinte, somos nós os responsáveis. Depois temos de fazer tudo o que podemos para sair das situações em que estávamos envolvidos no primeiro dia em que assumimos funções.

Os navios de patrulha oceânica são das aquisições mais aguardadas por parte da Marinha. Fazem muita falta à missão da Armada?

Fazem bastante falta à missão da Armada. Já temos quatro navios desses, são patrulhas oceânicos, temos uma vasta costa com mar muito violento e não dá para operar com navios pequenos. De facto, o governo aprovou recentemente um contrato para fazer mais seis e com os dez patrulhas oceânicos temos uma espinha dorsal para fazer funções típicas de guarda costeira, mas também funções militares. Os seis novos patrulhas vão estar mais militarizados do que os primeiros quatro navios.

Potenciam a participação de Portugal em missões externas? Esses navios têm essa capacidade?

Têm essa capacidade porque estamos na rotunda da NATO em termos marítimos. Se tivermos um problema militar na Europa, para a Europa ser auxiliada pelo Canadá ou pelos Estados Unidos necessita de ter controlo do Oceano Atlântico e aí é crucial que haja a logística que une os dois lados do oceano. O nosso principal papel, que é geográfico, histórico e cultural, é de contribuirmos para que essas artérias da logística estejam sem nenhum colesterol.

A semana passada o governo autorizou a realização de despesa para aquisição de um navio que não existe na Armada, uma plataforma polivalente, mas que tem uma função entre o científico, de emergência, e que pode ter também funções militares. 94 milhões e meio de euros é a verba inscrita no PRR para este navio. Este navio pode ser já um sinal para aquilo que poderá ser a Armada no futuro?

Esse navio é precisamente esse sinal. É o primeiro navio que vai ser desenhado de raiz com um conceito totalmente revolucionário, em que pretendemos envolver a indústria portuguesa, a academia portuguesa, a ciência que se faz em Portugal, para podermos desenvolver no futuro navios do mesmo tipo, mais evoluídos, que possam vir a substituir as fragatas e outras necessidades que temos. Esse navio vai ser multidomínio e que atua nos quatro domínios através do lançamento de drones e de pessoas. Vamos poder transformar o navio de semana a semana, em função das necessidades de cada semana e do local geográfico em que temos de atuar. É um conceito completamente revolucionário e se o conseguirmos fazer, e há todas as condições para isso com a nossa tecnologia, envolvendo a academia, a ciência e a indústria portuguesa, estaremos muito mais preparados para um futuro de médio prazo em que temos de substituir as fragatas e outros navios que estão a chegar ao fim de vida.

Hoje é Dia da Marinha. O que é que pode dizer aos seus homens e mulheres, tendo em conta esses projetos e investimentos?

Posso dizer que temos um futuro que é risonho porque é desafiante, mas Portugal necessita do mar. Somos marinheiros e estamos no mar, somos um dos elementos mais críticos dentro das Forças Armadas para uma afirmação estratégica da nossa liberdade e capacidade de manobra. Não digo que o futuro é risonho, mas digo que é um futuro com esperança e um futuro em que essa esperança tem de ser conquistada. Muitas vezes, pensamos que as coisas nos vão cair ao colo por ações de terceiros, mas não, o que temos de fazer é essa conquista todos os dias. O que penso para a Marinha, para conseguir fazer essa conquista, é conseguir captar a confiança dos portugueses e do governo para essa nova aventura que é a fronteira. A nova fronteira do século XXI é o mar, o espaço ainda está muito por explorar e vai demorar muitos anos, mas o mar está aqui mesmo ao nosso lado. Dois terços do planeta são mar e, portanto, temos de ir para essa fronteira e Portugal nessa fronteira tem, pelas leis internacionais, um domínio gigantesco que é superior ao tamanho da Europa. Se não fizermos nada por isso, outros irão aproveitar as nossas oportunidades.

Mas para isso precisará de mais meios?

Os meios vão ser alocados, estou muito confiante de que isto é um processo incremental, não se pode passar do zero para os cem de um dia para o outro. Quanto mais vamos explorando as capacidades e mais vamos revelando o potencial dessas capacidades, é natural que com o tempo, mais investimento seja alocado. Também temos de fazer prova de conceito, não basta ter o sonho e de repente querer o financiamento para o construir. Temos de ir construindo o sonho e com prova de conceito iremos, com certeza, conseguir captar a atenção dos portugueses e do governo para este potencial gigantesco que é o mar. Aliás, o governo já o assume e a Europa também, mas estamos numa posição muito estratégica para o fazer.

O Presidente da República apelou ao reforço do investimento na defesa no Orçamento do Estado 2022. O primeiro-ministro primeiro não assinou por baixo, depois prometeu mobilizar fundos europeus para a defesa. Afinal, até agora a montanha pariu um rato?

Isso são assuntos do foro político, a minha visão é que trabalho com os recursos que me dão e todos esses recursos devem ser otimizados para a missão que me entregaram e para os objetivos e tarefas que tenho de cumprir. Quem pensa nos recursos, quem discute recursos, e quem depois decide sobre recursos é o poder político, eu não estou a esse nível. Claro que temos sempre a ambição de querer mais e fazer mais, e é natural, mas também temos de ter os pés assentes na terra e fazermos o que podemos com os recursos que temos. Por vezes, a ambição é tão grande, mas depois não aproveitamos os recursos que já temos, portanto, tem de haver uma gestão muito equilibrada das expectativas e do dia a dia.

O orçamento previa 2507 milhões de euros, ou seja, um crescimento de 2,5% face à estimativa de execução orçamental de 2021. A ministra da Defesa disse este mês no Parlamento que se trata de "um orçamento em continuidade". Era o que esperava?

Como lhe disse, não tenho de esperar nada nem para mais, nem para menos. O nosso papel enquanto militares é, com os recursos que nos dão, fazer o melhor dentro do contexto militar e do contexto das nossas missões, e fazemos isso todos os dias. Se o governo, a população, o Presidente da República, acharem que se deve investir mais, então saberemos aproveitar esses investimentos, no sentido de reforçar a nossa capacidade. Se acharem que devemos investir menos, também teremos de fazer com esses investimentos o melhor que podemos. A perspetiva de exigir não é uma perspetiva militar, o que temos de fazer é dizer claramente ao poder político quais são as consequências das suas ações, mas quem decide é o poder político.

E é possível fazer mais com os recursos que tem atualmente?

É sempre possível fazer mais. Claro que há um limite, mas temos de ser mais eficientes, mais eficazes, há muitos recursos que poderão estar distribuídos, mas que devem ser concentrados para determinadas missões. Podemos sempre fazer mais, há sempre espaço para melhoramento.

Como é que vê o pagamento, a que o governo obrigou a Marinha, para gestão e acompanhamento do programa de aquisição à holding do Ministério da Defesa, a IdD Portugal Defense? Está confortável com isso ou seria um serviço que a Marinha poderia fazer?

Quando vamos fazer um programa complexo de aquisição, há muitas partes desse programa que devem ser partidas, porque são mais eficazes quando são tratadas de forma partida do que quando são tratadas numa só unidade central que tem esse único objetivo, mas também tem limitações. A Marinha tem limitações, como todos os organismos, e está envolvida em muitos projetos em simultâneo. Portanto, é normal que uma ajuda exterior da parte da contratação pública, da parte da gestão desses contratos, seja sempre útil. Vejo sempre com utilidade essas ajudas, não vejo que haja qualquer competição sobre as responsabilidades da Marinha, porque a Marinha está envolvida em muitos projetos neste momento.

Está confortável com isso?

Estou confortável com isso.

A propósito da lei de programação militar de que falava há pouco, considera que ela serve os atuais interesses de Portugal?

Mais uma vez, isso é uma decisão do nível político. A estrutura militar dá as suas opiniões, explica quais são as diferentes opções e tenta criar um conjunto de opções que depois o poder político, em função da situação política, seleciona ou pode encontrar outras. Depois de encontradas essas soluções para o poder político, não vamos discutir, vamos é executar bem. Somos planeadores e executores, mas não somos políticos. O poder político na essência, porque está legitimado para isso, tem como tarefas distribuir objetivos com as suas prioridades e definir recursos para atingir esses objetivos. Uma vez feito esse papel, não nos cabe a nós contestar esse papel. Nós ajudamos ao processo de decisão, uma vez tomada a decisão, o que temos de fazer é executar da melhor forma a decisão tomada. Temos sempre um recurso se não concordarmos, que é irmos para casa, há sempre essa liberdade.

Acha que a aquisição de navios para a Marinha deverá ter um impacto profundo na revisão que vai ser feita agora da lei de programação militar?

Naturalmente, terá um impacto profundo, mas claro que há outras necessidades além da Marinha. No entanto, as necessidades da Marinha têm um efeito colateral importante para a indústria nacional e para a tecnologia nacional. É claro que, tendo esse efeito colateral, o investimento não é feito só a pensar nas capacidades militares que se adquirem, mas também nesse mesmo efeito.

Mais do que nos outros meios?

A indústria naval está mais desenvolvida do que as outras indústrias da aviação ou outras relacionadas. Há um desígnio marítimo e, portanto, toda a tecnologia que se desenvolve para a Marinha é de múltiplo uso, ou seja, não é só para a Marinha. Estamos a capacitar o nosso tecido tecnológico, o nosso tecido científico, e a capacitar as nossas empresas para conseguirem fazer coisas que não fazem hoje, mas ao fazerem também têm acesso a mercados que ainda estão fechados por ainda não termos essa capacidade desenvolvida. A Marinha é um catalisador, tenho uma visão mais holística e envolvente, acho que a Marinha é muito mais do que um ramo das Forças Armadas. Não faz só defesa pura e estrita, faz muito mais do que isso, aliás, a Marinha também tem uma componente de autoridade marítima o que tem a ver com a estruturação. Não é dizer que a Marinha toma posse dos territórios marítimos, mas o desenvolvimento, ordenação e fiscalização dos territórios marítimos são feitos por outras entidades, entre as quais a marinha. Acima de tudo, estamos a desenvolver um conjunto de equipamentos que estão a renovar e inovar o nosso tecido tecnológico, capacitando-o para novos desafios que depois já nada têm a ver com a parte militar, mas sim com uma economia que se monta e que tem a ver com a exploração desta fronteira nova que são os oceanos.

As Forças Armadas têm lamentado a falta de capacidade para atrair pessoas para a vida militar. O que é que está a faltar para que os mais jovens voltem a querer ser militares?

Isso é um processo que teríamos de andar muitos anos para trás para explicar toda a envolvente, desde aspetos psicológicos, psicologias de grupo, ideias que se foram desenvolvendo na sociedade, o papel das Forças Armadas, estereótipos sobre as Forças Armadas, tudo isso contribui.

Ir à tropa é uma coisa negativa?

Não é, se não, não seria militar. Há estereótipos que foram construídos e agora têm de ser reconstruídos de forma muito mais equilibrada e saudável. Foram construídos num período muito específico da nossa história recente e esse período tinha um ambiente diferente do atual. Perante uma dificuldade, não podemos queixar-nos de tudo o que aconteceu no passado e dizer que tudo o que está a acontecer hoje é uma desgraça. Ao olhar para o passado, e percebendo como chegámos aqui, temos de tentar encontrar novas soluções que depois se materializem de facto. Temos de ter bom senso para as fazer, mas julgo que todos nós estamos empenhados, e da minha perspetiva há um empenho forte de todos os atores políticos e militares, para tentar superar esses problemas.

Qual é a sua opinião sobre o regresso ou não do serviço militar obrigatório?

Sou de um ramo muito tecnológico, nunca gostámos muito do serviço militar obrigatório porque são militares que estão muito pouco tempo nas nossas fileiras para se fazer um investimento grande para eles aprenderem e depois saírem muito rapidamente das fileiras, quando a Marinha é um elemento altamente tecnológico. Portanto, nunca fui adepto do serviço militar obrigatório, outros ramos poderão ser, face ao seu modelo de atuação poderão considerar isso mais adequado. Neste momento, julgo que caminhamos num determinado caminho que é muito difícil de voltar para trás e não sei se essa será a solução, pelo menos para a Marinha não é. Nós precisamos de profissionais muito competentes para operar os equipamentos complexos que temos, portanto, não vamos formar esses profissionais num ano, usar durante mais um ano esses profissionais, e depois voltar a colocá-los na sociedade civil. Os recursos envolvidos para fazer essa rotação permanente e os riscos de estar permanentemente a rodar essa componente muito tecnológica, são muito elevados. A Marinha é conhecida por ter praças profissionais, é dos poucos ramos - se não o único -, que tem a maior parte dos seus praças a serem profissionais, e já o eram quando ainda havia serviço militar obrigatório. Portanto, o serviço militar obrigatório não me preocupa muito, preocupa-me mais a profissionalização e como são tratados os profissionais.

E se fosse um serviço cívico obrigatório em que uma das opções fosse o serviço militar?

A mim não me agrada nenhuma ideia obrigatória, não me agrada nenhuma ideia em que as pessoas vão para um sítio por pouco tempo fazer uma cruz num quadradinho a dizer que lá estiveram. Ser militar é uma vocação, e até podemos encarar as Forças Armadas como uma grande escola de educação cívica e querer que todos os cidadãos passem por essa escola, mas isso é uma visão política numa visão militar. A minha visão militar é que queremos ter um ramo que consiga operar sistemas complexos no mar, pessoas isoladas das famílias, sem telemóveis, e que tenham resiliência necessária para estar dois meses sem atracar. Não é uma pessoa que vem aqui fazer um passeio que depois tem capacidade para cumprir essas missões. Portanto, prefiro profissionais competentes e altamente motivados para a sua missão.

A guerra na Europa é uma forma de reforçar o poder e a necessidade de um projeto conjunto de defesa europeia, na sua opinião? Tudo o que está a acontecer recentrou o papel das Forças Armadas?

Julgo que a guerra na Ucrânia vai fazer repensar muitos dos modelos atuais. Nós somos um país pequeno, todos os países pequenos em alianças grandes tendem a diluir a sua capacidade, não sei se isso politicamente é bom. Sendo um país pequeno e tendo um mar gigantesco, temos de ter cuidado com as diluições que possam aparecer, mas essencialmente essa decisão, mais uma vez, terá um caráter essencialmente político. Podemos até encontrar 20 soluções militares para um determinado problema, mas essas soluções são definidas pelo poder político e com os recursos que o poder político consegue disponibilizar para esses objetivos. O que diria é que a Europa vai ter de se defender de uma forma ou de outra, qual é o modelo em que se vai defender? É um modelo essencialmente político, que depois vai resultar num modelo militar também, mas a decisão é política.

Estará a nascer uma espécie de pilar de defesa europeu dentro da própria NATO?

Sempre existiu essa tentativa de criar um pilar europeu dentro da NATO, mas é o mesmo que dizer que temos um clube de futebol e que queremos criar mais dois dentro desse clube de futebol. Já temos um clube, chama-se NATO e é Atlântico, tem a vantagem de unir as duas partes do Atlântico. O facto de começarmos a pensar numa só parte do Atlântico, pode fazer com que a outra parte ache que já não vale a pena estar tão unida a nós e prosseguir os seus fins estratégicos de uma outra forma. Isso é perigoso para a Europa porque a História mostrou que é preciso um parceiro de fora para ajudar a Europa a desenvolver-se em paz. Acho que esse parceiro está perfeitamente definido, a NATO é esse parceiro de fora, só nos salvámos do regime nazi e do fascismo porque houve um parceiro exterior, que se chama Estados Unidos, que veio morrer por nós aqui na Europa.

E considera que este perigo se evidencia com a adesão da Suécia e da Finlândia à NATO?

Não, não se vai evidenciar, pelo contrário. Países que têm grandes ligações ao mar estarão sempre mais próximos de uma defesa atlântica do que de uma defesa centrada no continente. Essa visão centrada no continente é muito antiga, já vem a ser discutida desde o século XVIII, contra uma visão que era o poder marítimo. Os poderes continentais, normalmente, são fechados e tentam ocupar espaços por conquista, os poderes marítimos são abertos, mais democráticos, em que a parceria é feita por troca e partilha de interesses, muito mais do que por imposição de interesses. O que estamos a ver hoje na Europa são duas mentalidades: uma continental a atuar e uma marítima a tentar defender-se. Seria mau se fossem duas mentalidades continentais uma contra a outra e essa maritimidade do lado oeste é fortemente conferida pelos Estados Unidos. Os estudiosos dizem que as potências continentais olham para a forma de obter poder como conquista territorial e submissão dos outros povos, quem é que tem esse projeto neste momento? Não me parece que seja o projeto da NATO.

Era inevitável o pedido de adesão destes dois países à NATO? Ou, como diz Putin, ajuda à escalada da guerra?

O dirigente russo dirá o que achar que tem de dizer, fruto da sua perceção política e das relações internacionais. A mim parece-me que foi uma evidência, dois países que eram neutros sentiram que o mundo na região Europa era demasiado perigoso para manter a neutralidade, quando essa neutralidade está na fronteira. É fácil ser neutro quando estou no centro da NATO, quando estou rodeado de países da NATO é muito fácil ser neutro. Olhando para a geografia, para o terror que esta invasão criou, para a desestruturação de relações internacionais, e para a incerteza que traz às populações, o desfecho é o mais natural. Posso dizer que na minha muito modesta opinião, quem levou a Finlândia e a Suécia para a NATO foi o senhor Putin.

Há compromissos das Forças Armadas com a NATO ao nível da prontidão. Há dificuldade ou não na mobilização dos meios?

Vou dar-vos uma resposta para vos descansar, mas há uma coisa que tenho que dizer: não vou explicar em público as capacidades da Marinha portuguesa, porque isso não faz sentido num momento de tensão como o que passamos agora. De qualquer forma, há um submarino a operar neste momento, temos duas fragatas disponíveis, e há uma companhia de fuzileiros que vai ser projetada para a Lituânia. Já houve alguns jornais que especularam sobre isso e mantive-me em silêncio, porque não há nada como a prova dos nove, e quando forem ativados estão lá e nesse dia venham dizer se falhámos ou não nos nossos compromissos. Não me parece que tenha de vos responder a isso no futuro.

Tornou-se mais conhecido dos portugueses ao liderar a task force da vacinação. Hoje os contágios em Portugal estão no ponto mais alto desde há três meses e os óbitos bateram o recorde desde 19 de fevereiro. Admite que possa ter de haver um retrocesso nas medidas de restrição?

Julgo que o que está a acontecer é uma onda, ou seja, já não é uma epidemia no sentido inicial do termo, é mais uma endemia, e o que vamos ter são ondas, momentos em que estamos mais vulneráveis e outros momentos menos vulneráveis de forma sazonal. Esquecemo-nos de que houve alturas no nosso passado recente em que morreram 300 pessoas por dia e isso era a diferença entre ter a vacina ou não ter. Temos uma taxa de vacinação fortíssima, somos dos países mais vacinados, e depois da vacina não há outro remédio a não ser ter alguns cuidados que julgo que a população, depois de dois anos, já os interiorizou. Vim para aqui de máscara, embora não tivesse necessidade de vir, mas já interiorizámos um conjunto de cuidados que devemos manter e é isso que regula a endemia. Mas não podemos assustar-nos facilmente, caso contrário, começamos a reagir de forma desastrosa a uma coisa que vai ser natural, esta doença veio para ficar. Mas veio para ficar de uma forma controlada e não de forma descontrolada como era no início e que causava grande perturbação.

Parece-lhe inevitável um reforço generalizado da vacinação à população antes do outono-inverno?

Sim, é natural que a população mais vulnerável tenha necessidade de fazer esse reforço, tal como se faz reforço da vacina da gripe.

Portanto, um reforço não generalizado, mas apenas à população mais vulnerável?

Sim, julgo que sim. Não sou eu que vou decidir, apenas estou a dar a minha opinião pessoal. Mas a pergunta pode ser colocada ao contrário: a gripe não mata? Mata todos os anos e já nem nos lembramos de quantas pessoas mata todos os anos, nem andamos a seguir os números. Se o fizéssemos, se calhar teríamos uma surpresa, mas encaramos a gripe como uma doença natural e para não estarmos muito sujeitos a ela, o que fazemos é vacinar uma percentagem da população.

O Hospital de São João, no Porto, já está no limite com mais de 200 profissionais com covid e a admitir ter de deixar de fazer 20% da atividade programada (ativando o plano de contingência). Na sua opinião, o que é que não aprendemos com o passado?

Aprendemos muita coisa com o passado, mas há coisas que são difíceis de evitar. A pandemia, que agora é endemia, vai ter flutuações, é como uma onda, e cada vez que vem uma onda, vamos passar por momentos difíceis. Nunca mais vamos voltar ao sossego anterior à pandemia, as pessoas têm de perceber isso. Temos de saber lutar e viver com estes surtos em que temos de reforçar instantaneamente as nossas capacidades e depois desmobilizar as capacidades, isso vai fazer parte do nosso quotidiano a partir de agora.

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