Um ano depois das eleições que deram maioria absoluta ao PS, o presidente da casa da democracia está de volta à rádio.
Augusto Santos Silva, que prometeu tratar todos os deputados da mesma forma, tem sido confrontado pela bancada do Chega, que o acusa de tomar partido. Diz que lida bem com isso.
Num hemiciclo com maioria, mas ao mesmo tempo com uma composição nunca antes vista, o presidente da Assembleia não tem fugido ao confronto nos primeiros nove meses desta legislatura.
Pelo caminho deixou uma frase que marcou o ano de 2022 - não disse que nunca seria candidato a Belém.
Nesta entrevista, volta a afirmar: não recusa a ideia de vir a ser candidato, mas sublinha que este não é o tempo para falar do tema. Admite que as demissões sucessivas no Governo desgastam a o executivo, e considera que a ideia mais perigosa para a democracia é a frase "eles são todos iguais".
Vamos já diretos a este primeiro tema para depois podermos ir aos outros. Gostava que fosse claro. Vir a ser candidato a Presidente da República está ou não está nos seus planos?
É uma pergunta a que não se pode dar resposta agora. Esperemos tranquilamente por 2025. Agora sou presidente da Assembleia da República e é nisso que estou concentrado.
Mas admite que quando dá este tipo de respostas abertas podia dizer nunca, mas, quando responde o que acaba de responder, a leitura que se faz é precisamente de que se está a preparar para ser candidato a Belém?
Não sou dono das leituras dos outros. Sei muito bem o que disse em relação a uma pergunta que era muito clara, se eu enjeitava em absoluto uma candidatura, respondi que não enjeitava nada.
Mas está nos seus planos? Ou seja, é algo em que pensa, já pensou, ou que pensa pelo menos hipoteticamente?
Não. O que está nos meus planos é contribuir, como possa, para que a área política a que pertenço tenha uma candidatura forte a Presidente da República porque acho que a república precisa de uma candidatura forte na minha área política.
E isso pode incluí-lo a si?
Não tenho mais nada a acrescentar a esta frase.
Já disse que falta muito tempo, que é presidente da Assembleia da República e que não se anunciam intenções a esta distância, até porque há um Presidente da República que vai a meio do mandato, e já falou também nessa questão do respeito. Mas, e coloco aqui a adversativa "mas", tendo em conta que é a segunda figura do Estado, não acha que as suas intenções deviam ser claras para todos os portugueses?
Não, porque as minhas intenções que são claras para todos os portugueses são aquelas que anunciei no discurso de tomada de posse como presidente da assembleia: cumprir a Constituição, cumprir o Regimento, exercer uma presidência aglutinadora, imparcial, contida, e é isso que tenho feito.
Deixe-me continuar com a provocação, e será a última, o senhor tem uma agenda preenchida, o que é natural na função que ocupa, e que inclui também viagens às comunidades portuguesas, e aqui e acolá. A oposição por vezes acusa-o de aproveitar estes momentos e o cargo que tem para fazer uma espécie de pré-campanha para as presidenciais. Não seria bom até esclarecer para se proteger no seguimento do que lhe perguntámos?
É precisamente o contrário. Sou deputado eleito pela emigração, pelo círculo de fora da Europa, e sou dos quatro deputados eleitos aquele que menos faz contactos como deputado com os seus eleitores, exatamente porque sou presidente da Assembleia e não posso ignorar esse facto. Portanto, devo ser o deputado eleito pela emigração que menos contacta com as comunidades no estrangeiro, visto que contacto apenas no âmbito das minhas visitas oficiais ao estrangeiro.
E isso vai mudar em 2023?
Não. O que está acertado com o Presidente da República e o primeiro-ministro é que eu participarei também naquela muito louvável iniciativa de fazer também parte das comemorações do 10 de junho junto das comunidades. O que está acertado é que enquanto eles se deslocam à Europa, eu me desloco fora da Europa. Foi o que aconteceu o ano passado em que me desloquei ao Canadá. Este ano, o que está previsto é que o Presidente da República e o primeiro-ministro vão a um país africano e eu irei a um país europeu.
Vamos regressar ao Parlamento e à função atual. No início do novo ano, estamos ainda em janeiro, que raio-X faz o presidente da Assembleia da República ao estado da república e da democracia portuguesa?
Acho que a democracia portuguesa é madura, sólida e muito respeitada internacionalmente. As posições de Portugal são muito claras e muito reconhecidas, quer no quadro europeu, quer no quadro internacional e isso é uma enorme vantagem nossa. Em segundo lugar estamos entre os cinco países considerados mais seguros e pacíficos do mundo, estamos entre os dez países mais bem classificados do ponto de vista da liberdade de imprensa, estamos entre os melhores na independência do poder judicial, temos problemas - na minha opinião o país tem quatro grandes problemas e na minha opinião é também sobre estes quatro grandes problemas que se deve focar.
E quais são eles?
Temos um problema de crescimento, temos um problema de produtividade e de competitividade e, portanto, um problema de crescimento económico, temos um problema de desigualdades, ainda somos um país muito desigual, temos um problema demográfico que não podemos ignorar porque é sério, temos envelhecimento no topo, que é uma coisa boa porque as pessoas vivem durante mais tempo, mas temos também envelhecimento na base, que é uma coisa muito má porque quer dizer que nascem muito menos crianças do que aquelas que deveriam. E, finalmente, somos um dos países vulneráveis aos efeitos das alterações climáticas, embora esteja a chover quase ininterruptamente desde novembro, não podemos esquecer-nos de que somos um país muito vulnerável à seca e aos efeitos que a seca arrasta consigo, desde as questões liadas à agricultura, os fogos rurais, e por aí fora. Estes são os nossos problemas principais, portanto, não inventemos problemas onde não temos. Não temos nenhum problema de natureza institucional, a nossa Constituição e a nossa arquitetura democrática é muito sólida, a nossa engenharia democrática, a maneira como funcionamos está muito bem oleada, os órgãos de soberania têm uma harmonia muito forte e, ao mesmo tempo, são independentes uns dos outros, não temos nenhum problema com a nossa sociedade civil, não há tensões sociais em Portugal que nos devam ser alarmantes. Há a conflitualidade normal numa democracia e, portanto, na minha opinião, devemos concentrar-nos nos problemas que temos.
Mas não reconhece uma tensão crescente entre a presidência e o Governo a propósito destes casos e casinhos dentro do Governo?
Não, embora evidentemente para exercer a presidência da Assembleia de forma contida como prometi não me deva pronunciar sobre outros órgãos de soberania, não vejo nenhum sinal de tensão, fora as relações normais entre órgãos de soberania.
O senhor, precisamente enquanto presidente da Assembleia da República, tem-se deparado com uma bancada parlamentar que lhe é clara e abertamente hostil. A direita e a extrema-direita estão a crescer em toda a Europa. Como é que faz esse exercício contido de compatibilizar os valores da república com o combate a forças políticas antirregime e antissistema, mas que ao mesmo tempo tem deputados que foram democraticamente eleitos como todos os outros?
Há aí um equívoco se me permite. A minha função não é combater seja qual for a força política, a minha função é defender a Constituição. Eu intervenho sempre que alguém, seja da bancada x ou y, tome iniciativas que violem flagrantemente a Constituição. Eu não estou na posição de combate, estou na posição de defesa, e asseguro os direitos dos 230 deputados, que têm os mesmos direitos, e tenho em conta a composição da Assembleia. Falo em nome da Assembleia e tenho em conta as decisões que a Assembleia toma seja com uma maioria de dois terços, maioria relativa ou maioria absoluta consoante os temas. Quando digo que a assembleia pensa que ou que a forma que, o que digo é que são as decisões tomadas e deliberadas pela assembleia de acordo com as maiorias que lhe são indispensáveis. E, portanto, a minha atuação tem em conta que cada deputado vale o mesmo e que a sua capacidade de influenciar depende do número de mandatos que o povo livremente concedeu ao respetivo partido.
Esta composição parlamentar tem uma maioria absoluta que suporta o Governo, mas que ao mesmo tempo tem uma configuração nova. Há partidos que desapareceram e há outras novas bancadas que passaram de deputados únicos a composições mais robustas. A oposição dá-lhe muito trabalho mesmo com a maioria na câmara?
O mesmo trabalho que me dá a maioria. Às vezes até é a maioria que me dá mais trabalho. Porque às vezes tenho que intervir porque sempre que entendo que a atuação da maioria põe em causa direitos de deputados ou grupos parlamentares intervenho e já o tenho feito. Sempre que entendo que a atuação de um determinado grupo parlamentar ou a sua proposta infringe flagrantemente a Constituição intervenho. E, ao contrário do que às vezes se diz, isso não resulta das decisões de um único partido. Nestes nove meses recusei quatro projetos por considerar que eram inconstitucionais. Em todos esses casos o partido recorreu e o plenário deu-me razão e não foi só o PS. Dois desses projetos vinham do grupo parlamentar do Chega, um queria a prisão perpétua e o outro uma pena de prisão suficientemente ampla que considerei que era o mesmo do que a prisão perpétua. E no outro caso violava, no meu entender, a Constituição no que diz respeito ao regime de imunidade dos deputados. Houve um terceiro projeto que recusei que queria por a Assembleia da República a invalidar um tratado internacional que vinha do PAN. E houve um projeto do PSD que queria ter uma segunda iniciativa sobre referendo por causa da chamada lei da eutanásia. Portanto, eu recuso os projetos que considero inconstitucionais, não por eles virem do partido A ou B, mas por serem inconstitucionais.
Antes de prosseguirmos com outros temas, queria saber qual a sua definição de ética republicana?
É muito simples. A minha definição de ética republicana tem três elementos, todos eles indispensáveis. Em primeiro lugar é defender e respeitar o estado de direito e dos seus princípios fundadores, e que incluem a presunção de inocência, o facto de que ninguém é condenado até trânsito em julgado, em matéria criminal e penal a condenação pertence ao tribunal e só ao tribunal, os direitos das pessoas devem ser respeitados e por aí adiante. A primeira coisa que devemos fazer quando se fala em ética republicana é perceber que segui-la é respeitar o Estado democrático de Direito. A segunda coisa é aplicar a lei. E vejo muitas vezes usar o argumento da ética republicana para criticar uma decisão que aceitamos que foi legal, e isso parece-me um absurdo. A ética republicana significa respeitar e aplicar a lei democrática e dizer que quem cumpre a lei, está a cumprir a lei. E o terceiro elemento da ética republicana é mais do que a legalidade democrática, dar mostras de um padrão de comportamento que possa ser referência para outros na sobriedade, na contenção, no respeito pelos outros, dedicação ao serviço público na utilização muito parcimoniosa dos recursos que a coletividade nos põe à disposição, e na recusa liminar de aproveitamento pessoal de qualquer favor ou recurso inerente ao cargo que temporariamente exercermos, mesmo que esse aproveitamento seja permitido pela lei.
Mas isso não é um pouco conflituante, aquilo que acaba de dizer? O seu primeiro ponto é o estrito cumprimento da lei e no terceiro ponto diz que é evitar aproveitamentos mesmo que estejam dentro da lei.
Não, não. O meu primeiro ponto é respeitar o Estado de Direito. Em segundo lugar respeitar a lei. Em terceiro lugar dar conta de um padrão moral e comportamento que possa servir de referência a outros. Num certo sentido é a aplicação à vida política do princípio Kantiano do imperativo categórico. Como sabe, porque eu sei que segue muito atentamente os debates políticos em que eu me meto, eu considero-me mais filho de Kant do que de Hegel.
Prosseguindo com este tema da ética republicana, a função do Parlamento é precisamente de fiscalizar o Governo, e usou esse verbo há pouco quando conversávamos ainda em off...
Atualmente é uma das funções principais, é talvez a mais importante do Parlamento no sentido em que é exclusiva do Parlamento. Porque o Parlamento tem uma função legislativa, mas nas sociedades modernas ela é cada vez mais partilhada com os governos. Tem uma função de debate político que é o lugar central, mas este também se faz na rádio e nas televisões. A fiscalização do Governo no sentido próprio, não no escrutínio que a sociedade civil faz, mas apresentando moções, interpelações, chamando ministros e outros membros do Governo, provocando debates, essa é a função do Parlamento.
E é saudável que assim seja, mas com 13 demissões em 10 meses, com grande parte dos casos relacionados com a justiça, com as incompatibilidades ou com dúvidas acerca delas. Pergunto-lhe se isto não mina, não corrói a confiança dos portugueses na casa da democracia?
Não corrói em nada. Que é um problema do Governo, não há dúvidas nenhumas.
Corrói a confiança no Governo nesse caso?
Corroer é uma expressão mais forte, mas podemos usar uma expressão mais neutra que é desgasta o Governo. Isso também me parece uma evidência.
O que é que o Governo deverá fazer daqui em diante?
Isso tem de perguntar ao Governo. Na função em que estou e na qualidade em que estou a dar esta entrevista, o que posso garantir é que o Parlamento cumprirá todas as suas funções, e em particular a sua função de fiscalização, para que qualquer problema que exista no futuro, o funcionamento do Governo possa ser debatido publicamente e também para, não diria ajudar, mas para contribuir para que o Governo governe porque a fiscalização não significa o que em linguagem vulgar se diz "o bota-abaixo" sistemático. A fiscalização é uma fiscalização forte que fortalece o Governo que é fiscalizado. Uma das grandes vantagens que Portugal tem, num momento que é muito difícil do ponto de vista económico, social e mesmo da paz e segurança internacional europeia, é a estabilidade política e a boa cooperação institucional entre todos os órgãos de soberania. E o país não pode perder essa vantagem. O país tem que enfrentar estes problemas tirando partido da estabilidade que tem.
Como presidente do Parlamento, bem como sociólogo, olhando para o país há uns anos e agora, reconhece aqui algumas semelhanças com a situação do pântano?
Não, nenhumas. Há uma diferença essencial. O engenheiro António Guterres de quem, como sabem, fui ministro, sou admirador e amigo pessoal, não tinha a maioria no Parlamento e perdeu as eleições autárquicas, e fez uma leitura que significa o seguinte: a combinação entre a derrota política que teve, e o facto de não ter tido maioria no Parlamento e, portanto, não poder aprovar orçamentos do Estado que não significassem transigir pontos-chave do seu programa político colocava o país no risco de viver uma situação pantanosa que ele quis evitar. Ele não fugiu do pântano, ele saiu provocando eleições para evitar que o país corresse o risco de uma situação política pantanosa. A situação atual é completamente diferente. O problema essencial, de um ponto de vista parlamentar, é o problema de saber se está ou não em causa a direção do Governo, no duplo sentido que a palavra direção tem em português: liderança e caminho. Ora, na minha modesta opinião, em nenhum destes sentidos há qualquer tipo de problema com este Governo. Tem uma direção clara, uma liderança clara, forte, reconhecida pela sociedade portuguesa que é o dr. António Costa, primeiro-ministro, e da sua capacidade de ir fazendo ajustamentos e de resolver situações e crises anteriores ao seu próprio Governo, e o caminho também é claro. Um programa que foi apresentado ao eleitorado e é um caminho que todos os portugueses percebem, de muito cuidado com as contas públicas, com as fragilidades do ponto de vista financeiro que nós temos, a principal das quais um alto nível de dívida ao nível do PIB, uma grande preocupação com os aspetos da economia e da sociedade e, desse ponto de vista, os resultados de 2022 que já conhecemos, são relativamente razoáveis. É o segundo maior crescimento económico da União Europeia, o emprego em máximos históricos, incluindo o emprego jovem, e o desemprego em mínimos históricos. E um enfrentamento de circunstâncias que são hoje muito difíceis, sobretudo por duas coisas essenciais: a crise inflacionista - já sabemos a taxa de inflação do ano passado, foi 7,8% -, e com uma repercussão no crédito que aflige muitas famílias, dadas as características do mercado da habitação em Portugal, estando as taxas de juro Euribor a seis meses, uma das mais utilizadas, em 2,8%. Este quadro de dificuldades precisa de respostas políticas, quando se olha para o conjunto da situação do ponto de vista do Governo, e como parlamentar, o que vejo é que independentemente das vicissitudes vividas, o Governo tem uma direção clara, no sentido de ter uma liderança e caminho claros que não estão em causa.
Concorda que deveria ser criado em Portugal um processo de "vetting", ou seja, de escrutínio prévio de governantes antes de serem nomeados?
Depende muito do que entendermos por isso. À hora em que falamos nesta entrevista, decorre o Conselho de Ministros que, segundo o que disse ontem o primeiro-ministro, o Parlamento aprovará uma proposta de verificação prévia de membros do Governo, vamos ver no que consiste essa proposta.
Mas independentemente da proposta em concreto, concorda com o conceito?
Pode ajudar bastante, porque falando pela minha própria experiência, ainda sou o português que em democracia mais tempo acumulou como membro de um Governo, foram 15 anos. Sei que é humanamente impossível sabermos tudo sobre o passado das pessoas que convidamos para trabalhar connosco. Portanto, um mecanismo que nos permita ter a confiança de que aquela pessoa que estamos a convidar não está a sonegar-nos informação que deveríamos conhecer, esse mecanismo é útil. Deve ser feito e aplicado com equilíbrio necessário, não temos a tradição americana ou inglesa, no Reino Unido, mesmo o partido da oposição tem os seus ministros sombra, os seus candidatos aos diferentes membros do Governo. Esse mecanismo deve ser equilibrado para não agravar um problema que o país tem já hoje, que é o recrutamento de pessoas qualificadas para a administração pública. Não só o Governo, mas também para as empresas públicas e administração pública. Não devemos afastar as pessoas mais qualificadas, não devemos agravar este problema que já temos. E é muito importante dizer que não é um problema do PS, é um problema de todos os partidos de Governo atualmente. Não apenas de PS, PSD e CDS, que ocuparam já alguns governos ao longo do tempo, mas também do PCP, por exemplo, que tem funções importantes nas autarquias, mas como do Chega e da IL que têm responsabilidades numa das regiões autónomas.
Quem é que faria esse escrutínio? Serão os deputados que o farão?
Nos países que têm duas câmaras, normalmente, a verificação faz-se através do acionamento da câmara alta do senado. Essa não é a tradição portuguesa e não me parece que seja útil, devo dizer que aí estou 100% de acordo com o Presidente da República. Isto é, tem de ser um procedimento que, a existir, deve ser aplicado antes da proposta ser apresentada ao presidente da república.
E quem é que faz o vetting aos candidatos a deputados?
Falando pelo meu partido, temos um mecanismo de verificação. Quando nos candidatamos nas listas do PS, assinamos uma declaração que tem duas componentes: a do compromisso futuro, designadamente assumir a disciplina de voto, como também a declaração de natureza mais ética em que dizemos que não temos nenhum impedimento para o exercício da função a que nos candidatamos.
No contacto que faz com os eleitores, que impressão fica da imagem que os portugueses têm atualmente do Parlamento?
A imagem pública do Parlamento é compósita, porque o Parlamento é o candidato número um à concretização do "eles". Não só em Portugal, mas aqui gostamos muito de dizer que se há um problema, a culpa é "deles". O "eles" é sempre um pouco indistinto, mas claro que o Parlamento - a seguir ao Governo -, é um dos candidatos óbvios à concretização do "eles".
A outra frase mais comum é "eles são todos iguais".
Sim, mas devo dizer que essa é a frase mais perigosa. Quando era membro do Governo, e agora membro do Parlamento, vivia sempre com grande bonomia a primeira frase e até sossegava espíritos mais inquietos ou mais jovens que trabalhassem comigo, porque isso é mesmo uma das nossas missões. Quando somos eleitos, quando as pessoas nos investem da função de responsabilidade, é também para carregarmos algumas das culpas coletivas. E, felizmente, a democracia já não respeita aqueles princípios, como no antigo tribalismo, em que se não chovesse durante um tempo, o chefe tribal podia ser responsabilizado fisicamente. Nós já só somos responsabilizados moralmente, mas a segunda frase é mesmo muito perigosa e, por isso, é que devemos a todo o custo tentar evitar a tentação do populismo, do "são todos iguais". Mas o que queria dizer é que entendo que essa imagem é compósita, até porque vejo cada vez mais recurso ao Parlamento, seja nas petições, seja nas iniciativas legislativas de cidadãos, seja na frequência com que associações e instituições nos pedem reuniões. Há nestas coisas, ao mesmo tempo, um misto de respeito e de crítica e isso parece-me o normal. O respeito sem crítica é muito salazarento, a crítica sem nenhum respeito é muito bolsonarento, digamos assim. A crítica com respeito e o respeito com crítica está na dose certa para um país moderno e democrático.
Vai haver um processo de revisão constitucional e a necessidade dessa revisão não foi consensual. O presidente da Assembleia da República tem uma opinião sobre o tema e sobre a sua oportunidade?
Sim, naturalmente. Sobre a oportunidade, acho que a revisão era urgente em pelo menos dois pontos: para colher as lições do combate à pandemia e para que possamos combater a próxima de forma mais estável também na forma.
E um pouco mais legal?
Não, também na forma, porque o que aconteceu foi que de 15 em 15 dias tivemos de ir renovando os estados de emergência e para que a futura lei da emergência sanitária seja uma boa resposta, é preciso que haja um pequeno afinamento no texto da Constituição, no qual, aliás, os partidos necessários à revisão estão de acordo. Depois, o Tribunal Constitucional o que nos diz repetidamente, é para dotarmos a nossa investigação judicial dos instrumentos que são indispensáveis para combater a grande criminalidade na era eletrónica que vivemos e, para isso, também é preciso um pequeno ajuste no texto constitucional. Portanto, essas duas são matérias de urgência e como se sabe, vai haver um debate entre os defensores de uma revisão mais minimalista e os defensores de uma revisão mais maximalista.
E qual é que defende?
Acho que há todas as condições para ter, pelo menos, uma revisão minimalista e não creio que a Constituição atual precise de grandes obras. Aliás, acho que seria um pouco contraditório, porque o tempo é para celebrar a Constituição que vai fazer 50 anos daqui a três anos, não propriamente para a refundar. Mas, dito isto, a dinâmica vai ser assumida não pelo presidente do Parlamento, que não tem qualquer poder nessa matéria, mas sim por PS e PSD. Por isso é que disse na tomada de posse que se espera um debate que seja simultaneamente público e vivo e um esforço de concertação para que a revisão possa ter resultados.
Os 50 anos da Constituição, ao contrário do que acaba de dizer, não deveriam ser aproveitados pela maioria absoluta para fazer uma reformulação mais profunda, para rever um texto que não deve ser um museu, mas sim algo dinâmico e adaptado aos tempos?
Além disso, temos uma legislatura que ainda tem mais quase quatro anos pela frente, portanto, talvez a urgência também possa ser discutida. Como se costuma dizer, a doutrina divide-se, dei a minha opinião que é a de que a Constituição não precisa de grandes obras, insisto. Não é um quadro suficientemente amplo para definir o chão comum em que vivemos, basta notar que dos oito partidos representados na Assembleia da República, só um considera que o sistema criado pela Constituição devia ser derrubado, não digo por meios ilegítimos, mas alterado estruturalmente. A segunda característica fundamental da nossa Constituição que é absolutamente essencial, é que tem permitido o desenvolvimento de políticas que são diferentes, às vezes antagónicas, dentro da característica fundadora do nosso regime democrático, que é sermos uma democracia liberal de grande pendor social.
É presidente da Assembleia da República, mas mais do que uma vez nesta conversa já utilizou como exemplo a sua condição como militante socialista. O PS precisava de reformas, está demasiado instalado?
Sabe que as duas coisas não são contraditórias, aliás, estava aqui a pensar que só uma vez na história destes 47 anos de Assembleia da República propriamente dita, houve a candidatura de um cidadão independente à presidência da Assembleia e que foi reprovada. Não quero dizer nada, a não ser recordar que é natural que os presidentes da Assembleia da República sejam membros de grupos parlamentares, não pode ser de outra maneira, e costumam ser membros dos grupos que têm maioria ou condições para isso.
Mas na qualidade de militante do PS, acha que o seu partido precisava de uma reforma, depois de quase sete anos de Governo e mais quatro em perspetiva?
Noto uma queda que não lhe conhecia para a diplomacia, porque em vez de dizer que está a precisar de uma "cura da oposição", utilizou a palavra mais fraca, "reforma".
Está a precisar de uma "cura da oposição"?
Não, não me parece, nem me parece que isso seja o que o país precisa, que o PS esteja numa "cura de oposição". Claro que, felizmente, o princípio da alternância é fundamental que se concretiza em Portugal, aliás, com muito equilíbrio. Se olharmos para estes quase 50 anos, verificamos que metade do tempo os governos foram liderados pelo PS e na outra metade pelo PSD, o que é uma vantagem que o país tem, o facto da liderança do país ter sido sempre assumida por partidos de centro-direita ou centro-esquerda. E julgo que o PS é um partido com suficiente pluralismo interno, suficiente diversidade e suficiente clareza nas suas opções fundamentais pela democracia política, pela integração europeia, e pela economia social de mercado, para que os portugueses possam continuar a confiar no partido.
António Costa, Pedro Nuno Santos, Fernando Medina, qual deles é o melhor perfil para secretário-geral do PS nas próximas eleições do seu partido?
António Costa, sem dúvida nenhuma. Aliás, também lhe dou uma novidade: Pedro Nuno Santos e Fernando Medina pensam o mesmo que eu. Nas próximas eleições internas do PS haverá mais do que um candidato certamente, tem havido sempre, mas o atual secretário-geral apresentará a recandidatura e será apoiado por mais de 90% dos membros do PS.
As eleições europeias podem fazer mudar o quadro de estabilidade política se o PS não as ganhar?
Não, a resposta é não. As eleições europeias, tais como as locais, são as chamadas eleições de segunda ordem e que os eleitores costumam aproveitar para exprimir uma distância sobre o partido em que confiaram e em que muitos deles voltarão a confiar nas eleições legislativas. As eleições europeias têm como função eleger eurodeputados, assim como as locais têm como função eleger os autarcas e devem executar-se nessa função.
Mas sabe tão bem ou melhor que eu que, normalmente, essas eleições são aproveitadas para dar os chamados "cartões amarelos" ao Governo.
Sim, e os governos devem estar preparados para receber cartões amarelos e os presidentes da república e os parlamentos devem saber que esses cartões são amarelos, não devemos ser daltónicos. Agora, o país pagou um preço sempre que este bom princípio não foi seguido. Por exemplo, o Governo de Pinto Balsemão que caiu na sequência de eleições locais, o segundo Governo de António Guterres e, portanto, somos pessoas inteligentes e racionais, vamos aprendendo com a nossa própria experiência, e temos atualmente ainda mais razões para perceber que as legislativas se fazem de quatro em quatro anos, a não ser que haja uma crise tal que traga consigo uma dificuldade extrema de as instituições funcionarem. Nestas circunstâncias, a Constituição determina que o presidente da república demita o Governo. Ou então que aconteça algum terramoto político, que ninguém está hoje a prever, que obrigue o Presidente da República a dissolver o Parlamento. Vejo com muito agrado, aliás, porque como todos sabem sou adepto convicto da estabilidade política como uma vantagem de um país com as circunstâncias que Portugal tem e, por isso, vejo com muito agrado que esta consciência da necessidade de garantir a estabilidade e respeitar os prazos políticos é comungada pela maioria, mas também pelo maior partido da oposição.
Hoje mede mais as palavras do que fazia há nove meses?
Há nove meses não, o que fazia noutras circunstâncias sim, por duas razões essenciais. Em primeiro lugar, porque tenho uma conceção dramatúrgica da vida política e, portanto, acho que também somos interpretes de personagens e, evidentemente, a personagem de um ministro dos assuntos parlamentares - que é de combate -, é muito diferente da personagem de um ministro dos negócios estrangeiros. A personagem de presidente da Assembleia da República tem de ser o mais contida possível. Mas também por outra razão: as circunstâncias mudaram muito e expressões figurativamente mais fortes que podíamos usar há dez ou vinte anos, com consciência de que toda a gente percebia o que estávamos a dizer, hoje não podem ser usadas porque a diferença entre sentido literal e figurado, perdeu-se. Portanto, hoje também devemos ser mais contidos por causa disso, porque há uma violência da linguagem que ela própria parte da violência política em geral, e essa violência é intolerável.