Maria de Belém Roseira
desigualdade de género

Críticas a batons e não a gravatas. "É muito mais fácil atacar mulheres do que homens"

A carreira política acontece-lhe na vida, não por a ter solicitado, mas por "circunstâncias" que não procurou, num momento em que já ocupava altos cargos na administração. "Procuraram-me... Eu não tive como objetivo ingressar na carreira política, até porque eu estava em funções executivas, e sentia-me muito realizada nessas funções." Maria de Belém Roseira traz no currículo uma carreira de anos no Governo, mas também no Parlamento, onde se "sente menos o produto imediato das decisões".

Foi também promotora de algumas iniciativas legislativas, mas é na função executiva que se sente mais realizada. Nesta entrevista ao programa Botequim (para ouvir aqui), da TSF, a socialista revela algumas das dificuldades que as mulheres encontram quando avançam na carreira política.

Teve o "enorme gosto" de trabalhar de perto com Maria de Lourdes Pintasilgo logo no primeiro Governo provisório da democracia. Uma pessoa que descreve como "muito ativa, excecional e muito preocupada com a agenda do desenvolvimento humano", com uma "inteligência criadora fabulosa", e também "respeitadíssima lá fora, fosse na ONU, fosse nas agências da Unesco". Desde aí nunca mais parou, chegando a concorrer a Belém, há cinco anos.

"É positivo [ter] uma Presidente mulher e também por isso me candidatei, mas essas decisões normalmente não são decisões individuais." A socialista manifestou vontade de "colocar na agenda política", mesmo através da influência do cargo de Presidente da República, questões como a da "importância da economia social", mais ajustada ao tecido sociológico do país, e a "pobreza infantil", que "asfixia" o desenvolvimento humano. "Nós não conseguiremos ter uma presença mais eficaz ao nível dos palcos internacionais se também não cuidarmos da nossa casa nacional." Maria de Belém Roseira vaticina a preponderância de usufruir do papel de Estado-membro da União Europeia como forma de dar um "salto ao nível do desenvolvimento humano".

A antiga candidata à Presidência da República considera que há ainda fatores que "atrofiam" a representação e a afirmação de Portugal enquanto país. "Continuamos a ter muitos problemas: continuamos a não crescer economicamente, continuamos a ter indicadores de pobreza muito elevados, salários médios muito baixos", elenca.

"Se eu apresentasse uma campanha neste momento, teria acrescentado a questão central de estarmos a mudar de era. Vivemos num mundo onde a tecnologia digital está presente em todas as esferas da nossa vida, e nós precisamos de investir, como prioridade nacional, na literacia digital." Apesar de os planos de governação refletirem a digitalização como um dos motores principais de desenvolvimento, Maria de Belém Roseira lamenta que, pelas "mais variadas razões", como a mais recente, imposta pela pandemia, haja travões ao longo de um caminho de avanços. Um "país a várias velocidades" é a consequência direta, analisa a antiga ministra.

A defesa política de Maria de Belém Roseira tem como protagonistas "os mais vulneráveis", que necessitam de um "salto" de aproximação. "Tenho o gosto de ter sido a primeira e a última ministra para a Igualdade e eu penso que, a partir daí, se colocou na agenda política, sem ser ridicularizada como era anteriormente, a questão da desigualdade entre homens e mulheres", lembra. Desde o final da década de 1980, no entanto, a ciência e a defesa dos direitos humanos vieram estabelecer a igualdade entre homens e mulheres como uma "realidade indesmentível e inegável", sustenta a antiga governante.

"Houve avanços ao longo destes 25 anos, mas muito aquém daquelas que eram as metas pretendidas e fixadas." A abordagem de "colocar esta questão em todas as políticas é muito difícil de fazer e implementar", garante Maria de Belém Roseira. "Do ponto de vista proclamatório, todos dizem que estão de acordo, mas, no ponto de vista real e concreto, isso não acontece", lamenta.

Teletrabalho: uma balança onde a desigualdade pesa muito

O trabalho a partir de casa "só é possível para quem pode produzir dessa maneira". Maria de Belém Roseira acredita que o problema fulcral reside nas profissões "mais desqualificadas", e a maioria das pessoas que as exerce "são mulheres".

"As mulheres ganham mal, ganham pouco, e continuam a ganhar menos do que os homens, apesar de ser proibido legalmente que isso aconteça. Têm jornadas de trabalho muito longas, até porque quem é pobre normalmente mora mais longe do seu local de trabalho, desloca-se em transportes públicos e tem de realizar tarefas em que estão mais expostas à infeção."

Esta maior vulnerabilidade não faz Maria de Belém Roseira esquecer outra, a das mulheres que estão em casa, e que, "mesmo estando em casa a realizar as suas funções através de teletrabalho, têm muito mais dificuldade em fazê-lo se estiverem integradas numa família, designadamente onde há crianças". A maior "sobrecarga" pesa nos ombros da mulher, argumenta a antiga candidata a Belém. Porque, apesar dos avanços na partilha das tarefas domésticas, a realidade que impera é a "manutenção de uma grande tradição em que as mulheres são responsáveis pelas tarefas mais básicas".

Em confinamento, a violência sobre mulheres e crianças "fica muito mais escondida", acrescenta a antiga ministra da Saúde. Também por estes motivos, Maria de Belém Roseira não tem dúvidas de que Portugal está "muito longe" de alcançar os objetivos que são estabelecidos em documentos orientadores que comprometem os Governos da União Europeia.

O "ideal de justiça" que acompanha a vida de Maria de Belém Roseira fá-la fixar a igualdade de género como uma questão "principal" na agenda. "Deve ser vivida e assumida em todas as esferas da vida política, porque faz-se sentir em todo o lado."

Defesa da igualdade na política

"Maria de Lourdes Pintasilgo esteve à frente de um grupo de trabalho que existia ainda durante o tempo de Marcelo Caetano, e que foi criado pela primeira mulher no Governo: a subsecretária de Estado Maria Teresa Cárcomo Lobo", rememora. O grupo, presidido por Maria de Lourdes Pintasilgo, foi criado para estudar a condição feminina e para propor medidas no sentido da igualdade.

A primeira-ministra portuguesa trouxe, nas palavras de Maria de Belém Roseira, "todos os ventos da modernidade para Portugal". Foi "fascinante", por isso, conviver com "alguém assim, num país extraordinariamente atrasado como era o Portugal antes da democracia", recua a antiga ministra.

"Ela manifestou-se, assim que foi conhecido o elenco do primeiro Governo provisório, pelo facto de não existir nenhuma mulher como membro do Governo, e, nessa altura ela foi convidada para a secretaria de Estado da Segurança Social, que aceitou mas estava muito aquém das qualificações que ela tinha", conta. Não recusou para não "dar o pretexto" de ter recebido um convite e ter-se escusado a desempenhar funções executivas. Mais tarde, já como ministra dos Assuntos Sociais, o conceito de universalidade que defendeu veio a fazer "toda a diferença" e a alargar-se a outros ideais democráticos.

Portugal tinha, no entanto, partido de um patamar de grande atraso na defesa dos direitos. A consagração legal, com a Constituição de 1976, introduziu as maiores mudanças. Depois, o direito da família e o direito comercial também se alteraram. Maria de Belém Roseira sentiu na pele a desigualdade e lembra um tempo de restrições para as mulheres, em que algumas profissões estavam vedadas ao género feminino. "Concluí o meu curso de Direito em 1972, com um curso exatamente igual aos dos meus colegas homens. Eu não podia exercer duas profissões à partida, que eram a magistratura e a diplomacia. As pessoas são capazes de concluir a mesma formação superior, mas depois são consideradas incapazes para, tendo a mesma ferramenta, o mesmo diploma, exercer determinadas profissões."

Quase cinco décadas depois, porém, a igualdade ainda não foi atingida, quer culturalmente, quer na vida privada, quer ainda na vida pública e política. Maria de Belém Roseira enfatiza que poucas mulheres aparecem na liderança de grandes empresas, e, quando lideram, muitas vezes, é porque herdaram o negócio familiar. "Estamos longe, longíssimo... Na política, a mesma coisa. Vamos ter agora eleições autárquicas e vamos ver quantas mulheres aparecem como candidatas a presidentes de câmara."

Quando se candidatou à Presidência da República, há cinco anos, pesaram "todos os ataques" que lhe dirigiram e que foram "absolutamente ferozes", reconhece. "Se esses ataques me foram dirigidos por ser mulher? Não tenho dúvidas de que é muito mais fácil atacar mulheres do que homens. As mulheres são muito mais atacadas e muito mais escrutinadas por aspetos que tentam de certa forma chamuscar a capacidade ou a idoneidade."

"Houve um ataque cerrado, cerradíssimo, à minha pessoa, mas eu não guardo amarguras em relação a isso. As mulheres são mais atacadas do que os homens quando decidem candidatar-se a determinado tipo de lugares." Na perspetiva da antiga candidata a Belém, as mulheres não são geralmente atacadas pela competência, e justifica dando o exemplo do Senado e da Câmara de Representantes dos Estados Unidos da América. "Nancy Pelosi é uma mulher muito afirmativa, muito sagaz, muito presente e atenta", em contraste com MitchMcConnell, "uma figura apagada". A forma como "ele fez a declaração dos resultados finais da votação relativamente ao julgamento político de Trump não está à altura da importância do resultado que se estava a declarar."

Maria de Belém Roseira caracteriza-o como um homem "sem chama e sem as características necessárias" para o lugar que ocupa. "Alguém o vai atacar por causa disso? Não. Porque, à partida, acha-se que os homens naquela posição estão a fazer o que é natural. Façam bem ou façam mal, são homens. Se fosse uma mulher a ter aquele tipo de desempenho, o que não se teria dito..."

Ataques "infantis e primários"

As mulheres têm de revelar "muito mais competência do que os homens para serem respeitadas, e, mesmo assim, vão sempre tentar atacá-las pelas outras vias", argumenta a socialista. Maria de Belém Roseira recorda também que partiu para a corrida a Belém com sondagens "muito positivas", o que, considera, a deixou mais suscetível a ataques para desacreditar a candidatura. A antiga candidata a Belém elogia, contudo, a independência das mulheres face a pressões internas. "Há algum entendimento por parte dos partidos políticos de que, se perdem o controlo daquela pessoa, essa pessoa pode não defender interesses que para eles são importantes. As agendas podem ser diferentes, e, portanto, as mulheres não são muito apreciadas no exercício deste tipo de funções."

Apesar de haver mais mulheres a ascender a cargos de liderança política no mundo, há, muitas vezes, homens que as "controlam no exercício desse poder", considera a antiga ministra. Maria de Belém Roseira defende que o acesso tem de ser autónomo, e que, para assumir cargos de responsabilidade, "todos têm de estar preparados".

"Não é exigir-se grande preparação para as mulheres e, depois, para os homens qualquer coisa serve", avalia.

Quanto aos comentários dirigidos a Marisa Matias, e que espoletaram o movimento solidário Vermelho em Belém, Maria de Belém Roseira critica: "Isso foi uma coisa absolutamente disparatada. Absolutamente disparatada! Como se alguém tivesse de se meter nas opções que a pessoa tem, seja na maneira como pinta os olhos, os lábios, ou como se veste, ou as gravatas que os candidatos usam. Isso é uma coisa absolutamente infantil e primária."

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