Sociólogo, já vamos saber se por vocação ou opção, está habituado a olhar para as pessoas no seu conjunto. Foi militante do PCP, depois militante do PS, foi deputado da Constituinte, foi ministro e fez aquilo a que se chama a reforma agrária. Deixou os partidos ainda antes da década de 1980. Ficou-se pelo ensino, a reflexão, o comentário, a análise, o pensamento em geral. Nasceu no Porto, viveu em Vila Real. Estudava Direito em Coimbra quando deu o salto para a Suíça porque não quis combater na Guerra Colonial. Sai de Genebra sociólogo quando se dá o 25 de Abril. Há poucos meses, numa entrevista ao Expresso, revela que aos 80 anos, feitos há pouco, quando olha para trás tem a impressão de que tem uma vida cheia de destroços.
Que destroços são esses que os seus 80 anos estão a deixar para trás?
Já não tenho há alguns anos o sentido de que a vida é um progresso permanente e contínuo e inevitável. Infelizmente não é. Tive momentos de progresso muito interessantes em toda a minha vida, não por minha causa, mas por causa da sociedade. Aconteceram muitas coisas boas, houve muitos desenvolvimentos e melhoramentos, mas se fizermos a lista do que é negativo, é uma lista enorme também. Quando nasci, viviam-se os últimos anos da guerra, dois anos depois era o início do movimento positivo dos russos, que começavam a partir de Estalinegrado a fazer a contraofensiva contra a Alemanha. E passaram pela Ucrânia, mas ao contrário. Passaram-se 80 anos de paz, ou setenta e tal anos de paz na Europa. A minha vida na Europa foi uma vida e paz. E agora chego aos 80 anos e recomeçou a guerra. Isto é um grande destroço nesse sentido. E depois todas as esperanças que se tem quando temos 20, 30, 40 anos, umas realizam-se, outras não. E a certa altura estamos a fazer uma contabilidade difícil entre o que correu bem e o que correu mal. A nós próprios, ou aos outros. Esses destroços são um pouco isso.
Sente-se um vencido da vida?
Não. Gostaria de ter conseguido, não para mim próprio, mas que o mundo à minha volta estivesse hoje numa melhor situação, numa melhor posição. Há 40 anos contavam-se quase todos os anos, o número de novos países democráticos, novos Estados democráticos, Estados que ganhavam independência, conquistada ou concedida, Estados que se afirmavam democratas e querer construir a democracia. A democracia estava a subir, estava em ascensão permanente. Hoje está em recuo. Quaisquer contas realistas mostram que há um número de países não democráticos ou ditatoriais mesmo superior ao número de países democráticos. Mais ainda, e pior ainda, as populações a viver em estados não democráticos, antidemocráticos, ou ditatoriais são muito superiores às populações que vivem em estados realmente democráticos. Isto é um recuo. Um recuo importante. E a democracia está atualmente sob desafio, sob ameaça, e tem dois grandes caminhos a seguir: ou cede aos seus adversários e adota políticas, pontos de vista, soluções, desenvolvimentos que não são democráticos, e isso é gravíssimo, e pode acontecer, ou acontece às vezes; ou a democracia não cede, e isso não significa guerra, significa não ceder no politicamente correto, não ceder na demagogia, não ceder em tantas coisas que atualmente há a pressionar para a democracia ceder. Vemos mesmo em países que se ilustraram nas últimas décadas com a real vontade de participação democrática, como os Estados Unidos, países que tentaram várias vezes criar a democracia, como países da América Latina, o Brasil, países na Europa que cederam há poucos anos à democracia, estão a ceder ou a sentir-se por dentro de si próprios frágeis, democracias vulneráveis ou frágeis. Isto é um sinal de grande inquietação, creio eu.
Estamos a partir do geral, já lá iremos ao particular, ao detalhe. Mas, antes disso, uma pergunta quase pessoal, que tem a ver com o seu percurso. Estudava Direito, deixou Portugal e quando regressou era sociólogo. Foi o pior que lhe podia ter acontecido ou, pelo contrário, a sociologia, o estudo das pessoas, da sociedade, assenta-lhe melhor do que assentaria uma toga?
O meu professor de Filosofia do liceu, em Vila Real, ensinou-me vagamente o que era a sociologia. E eu fiquei encantado. Quando tive que me matricular no sétimo ano não havia opção. Na altura escolhiam-se umas alíneas e não havia sociologia ou ciências sociais. Pareceu-me que Direito era o mais parecido com o social. Em Coimbra fui para Direito porque não havia sociologia. Dizia-se na altura, e nunca foi negado, que o dr. Salazar dizia que sociologias em Portugal não. E quando foi do Maio de 1968, ele recebeu um grupo de estudantes e disse-lhes: "eu bem dizia que a sociologia era de evitar", por causa do Maio de 68 que terá começado nas universidades das ciências sociais, em Nanterre e na Sorbonne. Quando sai de Coimbra detestava o estudo do Direito. Tenho um grande apreço pelo Estado de Direito, mas não pelo estudo do Direito. E quando saí de Coimbra, o meu primeiro reflexo, além de arranjar emprego e de tratar da minha vida foi matricular-me em Sociologia em Genebra, que não considero uma ciência - sei que vou chocar muitos sociólogos. A sociologia é uma humanidade, não uma ciência. Podemos usar métodos vagamente científicos, estatísticos em geral, para ter algumas certezas ou para ter alguma noção das coisas, mas a demonstração científica, como se fosse a química ou a física, não faz parte da sociologia. A sociologia é uma humanidade no que tem de próximo com a filosofia, o pensamento, etc... Mas é uma disciplina encantadora que ajuda a perceber, que ajuda a compreender. Se você não tem olhos, não consegue, mas se você tem olhos começa a aprender a tradição sociológica, a grande tradição sociológica que vem do século XIX, e começa a perceber as grandes tendências sociais nos países, nos regimes políticos, na sociedade civil, nas empresas, nos grupos, nas comunidades e começa a perceber a riqueza do que é a sociedade, uma ciência, uma disciplina que revela a riqueza do seu objeto é uma grande disciplina.
Vamos falar um pouco de sociologia eleitoral. Em tempos previu o desaparecimento de partidos. O CDS já deixou o parlamento, há uma recomposição à direita, com o Chega e a Iniciativa Liberal. Acha que há mais partidos tradicionais que caminham para o desaparecimento e para a irrelevância? Há outros que correm o risco do CDS
Creio que sim. Numa primeira fase, e durante os próximos anos, vamos assistir a uma reconfiguração de quase todos os partidos, menos os dois principais, os partidos do sistema, PS e PSD. A direita já está em reconstrução, acredito que o CDS já não tem recuperação, creio que o Chega nos vai dar ainda novidades, boas ou más não vou agora discutir isso. O Chega é um partido vazio hoje, cheio de votantes que merecem tanta consideração como outros, ao contrário do que outras pessoas dizem, mas é um partido programaticamente vazio, oco. O Chega vive de tudo o que está errado, que está mal, que faz sofrer as pessoas. E isso é o chamado partido oportunista e está a crescer graças a isso. À esquerda, a velha esquerda, a velha ideia dos partidos de classes, praticamente estas ideias desapareceram. Penso que o Bloco e o PC caminham mais rapidamente do que se pensava para a irrelevância ou o desaparecimento, ou para a reconstrução. A minha convicção é de que não vão desaparecer totalmente, mas que vão reconstruir-se de outra maneira. Sobrarão, num segundo momento, os dois grandes partidos do sistema. Estão ambos anquilosados, ambos a transformar-se em fonte de querelas, quezílias, com as quais querem contagiar a sociedade. É o que estamos a viver atualmente. Os grandes problemas sociais, saúde, educação, economia, relações internacionais, essas questões que deviam reformar os partidos. Mas é o contrário. Aquilo a que assistimos nas últimas semanas é o retrato chapado do que é a transição partidária.
Mas temos um PS com maioria absoluta e António Costa, inclusive, chegou a dizer que era um tempo de ouro. Uma maioria absoluta dá margem para um partido tomar decisões, mudar a sociedade, acelerar o desenvolvimento. Acha que é isso que está a acontecer ou ao final deste ano afinal não está a funcionar como se esperava?
Foi o meu grande desapontamento. Sou há 40 anos favorável à maioria absoluta e acho que quem ganha as eleições deve governar, não mandar, governar. Nunca fui favorável a esta tendência nacional dos arranjos partidários, de acordos pré e pós-eleitorais, dos convénios com incidência parlamentar. As elites políticas portuguesas gostam de atrapalhado, como gostam do semipresidencialismo que é uma aberração. E eu gosto da maioria absoluta. De cada vez que houve maioria absoluta fiquei satisfeito. Ou seja, maioria absoluta de Cavaco Silva, de Sócrates, ou de Costa. Mas em todos os casos houve desastres. No caso de Sócrates foi talvez o pior de todos, o pior exemplo que se pode dar. No caso Costa não é comparável nesse sentido, mas no sentido do desperdício. A maioria absoluta dá tanta força a um governo, não apenas parlamentar, mas também eleitoral, se pensar que quase metade da população se reconhece e se identifica com governo dá uma força moral e uma força política extraordinários. Essa força pode ser usada para obras de fundo, não só para o imediato ou provisório, mas também para o tempo mais longínquo, mais definitivo, e talvez por causa das quezílias partidárias, talvez pela falta de preparação, talvez por um sentido de orgulho fácil. O PS está a viver uma má compreensão da ética republicana que deveria ser servir a república e servir os cidadãos. Mas a que está a ser vivida pelo PS é aproveitar o que a democracia nos dá. E isso está errado. Muito errado. Vê-se o que se tem visto de querelas dentro do PS, o não saber o que fazer, como fazer, é um grande desapontamento que tenho. E creio que vai ser difícil obter, este ou outro partido, maioria absoluta, pelo menos a curto prazo.
Nos últimos três anos vivemos debaixo de uma pandemia, que ainda não acabou, a que se colou uma guerra, que ninguém achava possível em termos convencionais no terreno em pleno século XXI. O que lhe dizem estes três anos? Que transformações sociais aconteceram em Portugal neste binómio pandemia/guerra?
Do ponto de vista social, da sociedade, é difícil fazer um inventário já. Temos que deixar o tempo dizer como fica a situação do teletrabalho, do trabalho em casa, de trabalhar nas redes sociais, de trabalhar à distância, a ânsia, sente-se que há muita mudança, desde os táxis, às encomendas, as ruas estão cheias de refeições a casa, transportes a casa, pode-se encomendar o que se quiser, isto muda as coisas e as relações entre as pessoas. Mas creio que é cedo. A pandemia mostrou, primeiro, a fragilidade da sociedade global, em que rapidamente o mundo inteiro foi apanhado. Isto foi o mau. O bom foi que rapidamente a ciência e a medicina, a saúde, a química e a farmacêutica encontraram as reações necessárias, as vacinas em particular. Devo dizer que eu no princípio não acreditei que fosse possível em tão poucos meses. Isso fica como uma grande lição positiva. A globalização, e aqui entra a guerra, tem tantas coisas boas como más, foi travada, a meu ver. Atualmente, os grandes blocos geopolíticos estão a refazer-se, a China entrou no mundo, a Índia está a querer entrar, a Rússia está a querer refazer uma posição, a Europa e os EUA estão a refazer a sua situação também, mas algum reflexo nacional surgiu. Naquilo que é a identidade nacional eu gosto, naquilo que é nacionalismo não gosto. Como é que isto se vai traduzir nos comportamentos sociais? Vai-se traduzir com certeza.
Era essa a questão. Estamos hoje como sociedade mais despertos, mais atentos, mais solidários ou, por outro lado, mais individualistas, mais fechados, mais desconfiados, mais enclausurados no mundo digital?
Acho que estamos mais fechados, com mais receio, mas o reflexo da solidariedade está a fazer o seu caminho. Não sei se vai prosseguir, se vamos vencer, mas o número de grupos, de comunidades, de voluntários que querem oferecer-se, que querem trabalhar é interessante, é importante. Não sei se chega para cobrir o reflexo de receio. Ainda hoje vi as estatísticas de quantos chineses foram contagiados com a pandemia nos últimos dois meses e são dezenas ou centenas de milhões. Sei que falar de milhões na china não tem o mesmo significado do que para nós, mas as coisas estavam a melhorar, já não se usava máscara, mas de repente está tudo outra vez com receio. Sinto que esse receio mata as relações humanas, sociais, mata a alegria em particular.
Algo que foi acelerado com a pandemia foi a digitalização. Como falou há pouco, hoje encomenda-se tudo, pode-se tratar de tudo pela Internet, há mais consumo, mas também mais desinformação. Acha que há mais ignorância apesar de haver mais meios de propagar o conhecimento?
Mais ignorância, acho que não. Mas acho que há mais falsidade.
Ou seja, a ignorância é propositada?
Há mais verdades, há mais acertos, mais rigores, mais disponível, mas ao mesmo tempo mais manipulação de números, seja em benefício próprio ou não. Estamos cercados de imaginações, crenças, invenções, todas reforçadas com a ideia de que é estatística. Se seguirem uma semana de notícias na televisão, as notícias todas, nos quatro canais, o essencial das televisões está construído para dizer o que as autoridades querem que se diga. Isto não é uma via de falsidade, mas é uma via de manipulação.
Disse que a saúde está mal. Qual é a sua opinião sobre o funcionamento do SNS?
Sou adepto do Serviço Nacional de Saúde, muitas vezes uso medicina privada, tenho de o dizer com toda a clareza, mas sou adepto que exista em Portugal um Serviço Nacional de Saúde para toda a gente que seja moderno, eficaz e eficiente. Mas já não é nada disto, há grupos nos partidos, especialmente à esquerda, mas também ao centro, que dizem que o SNS é a grande realização da democracia portuguesa. Talvez seja, mas acho que a grande realização da democracia portuguesa é a própria democracia, mas isso é outro assunto. Nos últimos anos, o SNS entrou em declínio, como é sabido e conhecido, mas não é admissível que vivamos tranquilamente com urgências de maternidade e obstetrícia a fechar aos fins de semana de vez em quando. Não é admissível uma coisa destas. Faz lembrar as ruas de Lisboa, já costumamos dizer que as ruas de Lisboa, podres e esburacadas, são normais. Não é normal as maternidades estarem no estado em que estão não é aceitável, é obsceno. As filas de espera de semanas, meses e anos no SNS, em que normalmente são os pobres e trabalhadores que sofrem essa espera, nada disto é admissível. Não sou médico, não sou especialista em saúde, mas sei do que precisa o SNS. Precisa de muito dinheiro e não tem, precisa de médicos e enfermeiros, não tem que chegue, precisa de muita organização e também não tem. O que o Serviço Nacional de Saúde tem é política e estou convencido de que o debate político, seja dos que defendem o SNS ou dos que o atacam, infiltra o contágio político ao SNS e está a destruí-lo. E esta ideia de criar uma gestão autónoma pode até ser uma ideia boa, não tenho a certeza, mas tenho uma grande admiração pela pessoa que foi encarregue dessa gestão, mas não depende só dele. Depende de um enorme orçamento que ele não tem, depende de milhares de médicos e enfermeiros que ele também não tem, depende de uma capacidade de gestão que é coletiva. São precisas muitas equipas de gestão para assegurar a eficiência do SNS, vamos esperar para ver.
Outra área onde se tem pronunciado muito é a justiça. É muito crítico da justiça em Portugal e há aquela ideia de que os "pilha-galinhas" vão presos, mas que os poderosos escapam. Isto é um exagero ou é uma afirmação que se aproxima da realidade?
Tem verdade, não é toda a verdade, mas tem um fundo de verdade. Aprendi há muitos anos com juízes e advogados que há todo um universo da justiça em Portugal que funciona. A justiça civil, a justiça económica, a justiça de todos os dias, a justiça das comarcas em Vila Real, Macedo de Cavaleiros, etc., vai funcionando e vão-se resolvendo os casos do emprego, do desemprego, das indemnizações, das ofensas. Há uma justiça civil e penal que se vai resolvendo e que se olharmos para os números de processos resolvidos, é interessante ver que essa justiça funciona. Desde que se fala em justiça económica, grande justiça económica, grandes empresas, gente poderosa, gente da política, desde que se fala nisto, a justiça não funciona. Não funciona porquê? Toda a gente tem ideias sobre este assunto. A má legislação que temos sobre a justiça e o seu processo é possível, o medo que a classe política tem da justiça, que é uma coisa terrível. Tem-se a impressão de que são os deputados que são capazes de legislar e têm uma interpretação sobre o que é a independência da justiça que é não fazermos nada, não se faz nada. Há o primeiro-ministro que tem a famosa frase "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política", acho muito bem que assim seja, mas a política - ou seja, o legislador -, tem obrigações fundamentais para legislar sobre a justiça. Só o legislador pode fazer novas leis para a justiça, os juízes não o podem fazer, tudo o que é processual, os prazos de espera, os favores, os recursos, todo esse universo está muito modernizado, mal trabalhado e permite que os ricos façam o que querem da justiça. Com os seus advogados, com os seus poderosíssimos meios internacionais e nacionais, com as suas influências políticas, fazem-no. E estou convencido que em processos importantes, desde que haja portas giratórias, corrupção, nepotismo, influências familiares, dirigentes políticos, grandes fortunas comerciais e económicas, capacidade de corromper - seja o político que corrompe o rico ou o oposto -, desde que haja disto, a justiça mostra a sua incapacidade e a sua impotência.
Portanto, pior do que a justiça, depreendo, é o legislador neste momento?
É um dos momentos de maior vulnerabilidade da justiça, esta passividade do legislador e a incapacidade que tem em fazer um exame muito sério sobre a situação na justiça para encontrar os novos caminhos. Já fiz isto várias vezes, mas cada vez que alguém diz "faça-se um livro branco sobre a justiça, independente e sério", isto é preciso fazer porque não há revolução na justiça. O que há são dezenas de reformas e legislações a alterar e desde que se fala em livros brancos sobre a justiça, dizem sempre que não vale a pena. Aliás, Portugal foge dos livros brancos, que são uma maneira tradicional nalguns países democráticos de acudir a um problema grave e sério. A justiça não é fácil de tratar e talvez a minha maneira de falar sugira que é fácil, mas não, é difícil, por isso é que digo que a justiça é o pior que há em Portugal. É pior que a saúde, pior que a educação, pior que a segurança social, pior que a desigualdade social, é o pior de tudo.
Como olha para a crise gerada pela guerra na Ucrânia? Serve de álibi para essas incapacidades do governo que já referiu ou é mesmo um problema que para Portugal, em particular, é grave a nível de consequências?
Estamos a viver num continente que todos os dias de manhã pensa sobre se a guerra se vai alastrar ou não. Ao fim de quase um ano já nos habituámos, mas esta guerra já trouxe tantas coisas novas do ponto de vista do armamento, da tática e da estratégia, e já nos habituámos a ouvir dezenas de generais que todos os dias vão falar nas televisões. Muitas vezes dizem coisas contrárias, é natural que haja opiniões contrárias. Estamos a viver com a guerra, mas todos os dias são dados passos, se são no bom ou no mau sentido, não sabemos. Sabemos que a Ucrânia é um país médio, mas tem alguns dos armamentos mais sofisticados do mundo e está a conseguir travar aquilo que ainda há pouco tempo era um dos primeiros exércitos do mundo. Estão a utilizar tecnologia que ninguém conhece.
Mas acha que é o apoio dos Estados Unidos que explica essa capacidade de resistência da Ucrânia ou, pelo contrário, há um grande espírito de resistência dos ucranianos que ninguém esperava?
À cabeça, é o espírito de resistência. Se o Estado ucraniano e o povo ucraniano não resistissem, não valia de nada ter helicópteros esquisitos e mísseis estranhíssimos. Em segundo lugar, está o armamento americano, a proteção americana e o apoio europeu. O apoio europeu foi muito importante, com o particular caso de Inglaterra que foi muito interveniente, assim como a Alemanha. Mas o conjunto do apoio europeu deu uma força política à Ucrânia e deu bases à intervenção americana que, sem o apoio europeu, penso que não seria tão eficiente. Acho que aí se transformaria mesmo num conflito entre América e Rússia e não está assim, ninguém pensa que é esse o conflito que está em causa.
Putin e Zelensky: o espião subvalorizou o ator? A guerra deu a oportunidade a Zelensky de mostrar uma capacidade de liderança que também nos surpreende?
Zelensky revelou qualidades que não se conheciam, isso é verdade. O que é mais impressionante é a sua primeira assunção, ainda hoje estou incrédulo perante o erro de avaliação que os russos e Putin fizeram, seja da capacidade de resistência, seja da convicção política dos ucranianos, seja da sua própria capacidade militar e estratégia totalmente aberrante. E agora percebe-se melhor o que foi o falhanço soviético no Afeganistão, por exemplo, porque também foi um falhanço absoluto, embora os Estados Unidos também tenham falhado. Mas o falhanço soviético, perante um país vizinho, era tudo mais fácil e simples, mas foi um falhanço absoluto, total. Agora, não é a mesma dimensão, mas não andamos longe, já perderam mais homens na Ucrânia, mais armamento e mais aviões. Só pensar que, supostamente, a segunda maior força aérea do mundo não está em condições de trabalhar na Ucrânia, isto é estranhíssimo. Frequentemente vemos artilharia, mísseis lançados de muito longe, mas não vemos o céu sob o domínio russo e isto é estranhíssimo. Acredito que vamos ter muita literatura sobre o erro de avaliação e a debilidade militar russa.
A União Europeia está mais sólida graças a esta guerra e já terá ultrapassado o trauma do Brexit?
A União Europeia está aparentemente mais forte e gosto que assim tenha sido, mas creio que as forças internas que vulnerabilizam a União Europeia também estão cada vez mais fortes. Atualmente, há pulsões nacionalistas em vários países, seja à direita ou à esquerda, e isso pode ser perigoso e pode vir a enfraquecer a União Europeia.
Há uma força crescente de partidos populistas de extrema-direita e de extrema-esquerda que podem minar o chamado "centrão"?
Populistas e aparentados, sim. Uma vez mais, há certo tipo de intervenção política que é feita à base do que está mal e denunciar a guerra, a despesa militar, é muito fácil e em muitos países europeus cresce o número de pessoas que diz que talvez estivéssemos melhor sozinhos do que num grupo deste tamanho. A União Europeia, para essas pessoas, está a acrescentar problemas ao problema e o regressar à identidade nacional seria diminuir os problemas do problema.
Fala-se muito numa nova guerra fria, mas não a da Rússia com os Estados Unidos, antes uma competição entre a China e os Estados Unidos. É possível haver uma grande confrontação entre dois países tão envolvidos na globalização e na economia? Como vê esta relação futura?
Acho que esse é o conflito do futuro entre os Estados Unidos e a China, mas já não é só entre os dois. Se aceitarmos a teoria de que o poder no mundo soma cem, portanto, quando um ganha poder outro perde, e quando um perde o outro ganha. Nesta teoria da soma cem, os Estados Unidos e a Europa estão a perder, já não têm tanto poder quanto tinham há 30 ou 40 anos. A Rússia mantém-se, apesar de muito enfraquecida, mas chegou a China e ainda vai pesar durante muitas décadas. Uma das grandes forças da China foi ter aproveitado magistralmente os erros do ocidente e do capitalismo, aproveitou tudo. Se querem deslocalizar indústrias, nós ficamos com elas, querem vender dívida pública, nós compramos, querem sair de África, nós vamos para lá, querem sair da Ásia, nós ficamos na Ásia. Isto foi sistemático e conseguiram algo que seria impensável quando eu era jovem, ou seja, pensava-se que o poder político democrático gerava a democracia económica e vice-versa. Não há democracia económica, não há capitalismo, não há livre iniciativa sem liberdade política, mas a China rebentou com este postulado que era errado. A China conseguiu o máximo de liberdade económica com o máximo de ditadura política e isso é um grande triunfo que a China fez. Atualmente, por conseguinte, já não há só os dois grandes Estados, passa a haver quatro ou cinco blocos e esta reconfiguração do universo é perigosíssima. Vamos assistir a alianças, é inevitável, vamos saber se a Rússia se alia com a China ou não, se a Rússia se alia com a Índia ou não, se a Índia se alia com a China ou não, e depois temos a Europa e os Estados Unidos. Mas volto ao princípio: neste conjunto de cinco ou seis blocos, o bloco democrático ocidental - América e Europa -, está a perder força e a perder percentagem da tal soma cem.