"A mortalidade elevada parece que é um não assunto em Portugal"

Portugal tem quase o dobro dos óbitos do que o limiar definido pelo Centro Europeu de Controlo de Doenças. Os dados da pandemia mostram 41 óbitos no dia de ontem e 42 na quarta-feira. Para o professor e investigador Tiago Correia, em declarações à TSF, devia ser feito um estudo detalhado sobre a mortalidade por Covid-19 em Portugal.

O relatório das linhas vermelhas mais recente explicita que a mortalidade específica por Covid-19 apresenta uma tendência crescente. É de 37,6 óbitos em 14 dias por um milhão de habitantes. Este valor corresponde a uma classificação do impacto da pandemia como elevado, o que corresponde a um aumento de 47% relativamente ao último relatório (25,5 por 1 000 000), indicando tendência crescente do impacto da pandemia na mortalidade.

Este valor é superior ao limiar de 20 óbitos em 14 dias por um milhão de habitantes, definido pelo Centro Europeu de Controlo de Doenças, que traduz um impacto elevado da epidemia.

Os dados da pandemia mostram 41 óbitos no dia de ontem e 42 na terça-feira. Para o professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, Tiago Correia, ouvido pela TSF, os números são difíceis de analisar e a mortalidade é um indicador incómodo. "Neste momento não temos termo de comparação para saber se a mortalidade é excessiva. Os valores que temos são os internacionais, neste caso os do Centro Europeu de Controlo de Doenças, que se situa nos 20 óbitos [em 14 dias] por milhão de habitantes, e se olharmos para esse indicador, estamos obviamente sistematicamente acima e é de prever que assim continuemos nas próximas semanas".

Por outro lado, diz o investigador, "sabemos que em Portugal e na generalidade dos países, a mortalidade por infeções respiratórias aumenta nesta altura do ano. É uma característica da sazonalidade destas doenças e deste vírus. A questão é que não sabemos o quão persistente pode ser esta mortalidade elevada ou se eventualmente poderemos subir ainda mais nesta mortalidade. E isso significa, a meu ver, em primeiro lugar, que não temos a capacidade de proteger efetivamente as pessoas e não sabemos até que ponto poderá ter o regresso da normalidade".

Para o professor e investigador, estas são reflexões importantes de fazer neste momento e que estão a ser ignoradas. O comportamento da mortalidade deverá manter-se ou aumentar. "Para mim a mortalidade, neste momento, é um indicador incómodo porque se olharmos para os internamentos, é muito fácil perceber que a situação está relativamente controlada. É uma pressão moderada, que é gerível. A mortalidade elevada parece que é um não assunto. E é um não assunto no modo como estamos a viver esta fase, que sabemos que estamos a transitar para uma situação que se julga de endemia (não sendo ainda muito claro). A transição não é imediata e não sabemos quando é que vai acontecer. E até chegarmos ao pico das infeções, aquilo a que estamos a assistir, que vai seguramente demorar mais algumas semanas, este comportamento da mortalidade tenderá a manter-se ou a aumentar e isso reforça ainda mais a nossa necessidade de refletir o preço de aligeirar ainda mais as medidas".

O professor Tiago Correia explica que falta perceber quem são as pessoas que não estão a resistir à Covid-19 - até para perceber o preço do regresso à normalidade. "O que falta fazer é saber exatamente quem são estas pessoas que estão a morrer por Covid-19, do ponto de vista da vacinação, da idade, mas também do seu enquadramento de vida, ou seja se são pessoas que estavam institucionalizadas tendencialmente ou não, são pessoas com características socioeconómicas. E à medida que queremos mesmo avançar para uma fase de endemia, um dos pressupostos é uma capacidade de prever uma fase a seguir. Portanto, para falarmos em endemia, em primeiro lugar temos de saber quem são estas pessoas que estão persistentemente a morrer. Sabemos que tendencialmente há uma faixa acima dos 80 anos, mas em todo o caso não sabemos se é inevitável que as pessoas com mais de 80 anos, mesmo estando vacinadas, se vão continuar a morrer com Covid, ou se há outras formas de as tentar proteger". É preciso portanto, para este investigador, "o tipo de caracterização mais fina e rigorosa sobre quem são neste momento as pessoas mais vulneráveis que não estão a resistir à Covid. Não temos bem a certeza se serão apenas pessoas não vacinadas. Podem ter outras complicações associadas. E é esta a caracterização de mortalidade que agora precisaríamos de ter para afinarmos ainda mais as respostas para efetivamente garantirmos que o preço de voltarmos à normalidade não é excessivo para determinados grupos populacionais que continuam muito vulneráveis a esta doença".

Tiago Correia confirma que cabe à DGS esse estudo intensivo e, como há uma componente de ética, envolve também o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. "E temos de fazer uma reflexão, como já tínhamos de fazer, que penso que não existia em rigor em Portugal, de mortalidade excessiva por gripes e pneumonias todos os anos. Portanto, normalizámos essas mortes excessivas, assumimos que são pessoas que têm de necessariamente de morrer todos os anos, que é normal que morram", diz Tiago Correia, que sublinha que tem "muita dificuldade em encaixar este argumento da normalidade das mortes, sem refletirmos se enquanto sociedade estamos a fazer tudo para nos protegermos uns aos outros, porque isso revela uma falta de solidariedade geracional e uma incompreensão de como é que o bem-estar de uns não pode ser feito à custa do bem-estar dos outros e temos essa responsabilidade enquanto coletivo de garantir uma melhor proteção para todos em todas as fases da vida - e não assumir a mortalidade associada a infeções respiratórias a pessoas mais velhas, como quase uma certidão de óbito quase inevitável, porque se formos a ver, noutros países, o padrão da mortalidade, mesmo que vá aumentando, não é tão excessivo como aquele que se vai registando em Portugal de forma sistemática".

Já a comparação com outros países é muito complicada de fazer, explica o investigador. "Dado que ficámos tão alerta, sobretudo no inverno passado, em que queríamos evitar a todo o custo a mortalidade, agora custa-me que parece que tenhamos esquecido esta reflexão que fizemos, este cuidado que tivemos com as pessoas e que agora aceitemos 40 mortes todos os dias por Covid como uma situação normal sem refletir se fizemos tudo (e fazemos tudo) para proteger estas pessoas ao mesmo tempo que tentamos regressar à normalidade".

Mas olhando por exemplo para a Dinamarca, Portugal regista o dobro dos mortos. Nos últimos dois dias teve 17 mortos a cada dia. Este facto deve fazer-nos refletir, diz o investigador Tiago Correia.

O relatório das linhas vermelhas mais recente diz que a mortalidade específica por Covid-19 apresenta uma tendência crescente.

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