Da cabala e das correntes religiosas mais modernas aos primórdios da mitologia judaica, o papel da História como pilar de construção do futuro foi o mote da conversa com o autor de mais de 15 romances Richard Zimler.
Richard Zimler, judeu, mas não praticante, perfeitamente integrado em Portugal como no mundo, confessa que ainda se sente um "extraterrestre", interessado na mitologia, misticismo e filosofia judaica, para lá da convivência quotidiana com Deus. Agnóstico, estudou Religião Comparada na faculdade e mergulhou a fundo nos escritos que séculos de história judaica lhe deixaram como herança.
Interessam-lhe os primeiros exploradores que estudaram o Mar Morto, mil pés abaixo da terra, tanto como manter a cabeça nas nuvens das bibliotecas. A TSF esteve à conversa com este apaixonado pela cultura tradicional e milenar, que mantém o olhar contemporâneo ao debruçar-se sobre o futuro.
De que forma a sua educação refletiu as raízes judaicas da sua família?
Eu sou de Nova Iorque. Nasci, cresci, e fiz toda a minha escola lá. Sou de uma família judaica secular. O meu pai era economista e acreditava no dito de Marx: «a religião é o ópio do povo». Não me falava muito de judaísmo como religião. Como cultura, é outra história. A minha mãe era cientista bioquímica e gostava de comemorar as celebrações judaicas - como o Pessach [Páscoa Judaica] ou o Chanukah [Hanucá] -, mas não era uma pessoa religiosa.
Não íamos com frequência à sinagoga, só quando havia um casamento ou algum momento importante. E, por isso, eu sabia muito pouco sobre judaísmo como tradição religiosa. Mas o judaísmo também é uma cultura; tem a sua própria literatura, sentido de humor, gastronomia ou geografia. É uma identidade. Diria que cresci dentro de um ambiente de cultura judaica.
Mais tarde, na universidade, comecei a estudar Religião Comparada. A minha licenciatura é focada nessa área. Estudei, por exemplo, a mitologia hindu, budista, sofista, cristã e judaica. Pela primeira vez, li o Antigo Testamento, e comecei a desenvolver um apreço pelas tradições, pelas mitologias, pelas histórias antigas, pela fé e pelo ambiente do judaísmo. Mais tarde, descobri a cabala, o ramo místico do judaísmo, através dos livros do grande perito mundial Gershom Scholem. Acho que já li tudo o que escreveu.
A cabala, para mim, é uma influência importante. Afeta a forma como penso o mundo e a minha identidade.
De que forma?
Uma das ideias muito interessantes da cabala é de que todas as histórias do Antigo Testamento são poesia em vez de prosa. Temos, mais do que o direito, a obrigação de fazer as nossas próprias interpretações de Adão e Eva, ou de Moisés a separar as águas.
Outro ensinamento importante é o de que não existe uma verdade única. Por termos esta obrigação de interpretar, cada pessoa tem a sua verdade. Os cabalistas são os inimigos dos fundamentalistas. Os fundamentalistas judeus, cristãos, ou outros, pensam que há uma só maneira de lidar com Deus, uma só maneira de nos relacionarmos com outras pessoas, uma só maneira para encontrar o significado da vida. Para os cabalistas, isso é infantil e completamente superficial.
O judaísmo ortodoxo não se soube reinventar com o tempo? Não acompanhou novas correntes e filosofias?
Não há um judaísmo puro. Cada ramo do judaísmo tem as suas interpretações, tradições e maneiras de ser. As diferenças são encorajadas e permitidas. Quem disser o contrário, percebe muito pouco sobre a história do judaísmo.
Há ortodoxos, reformistas, conservadores... Nenhum deles detém toda a verdade.
Há ramos do judaísmo que querem manter as suas comunidades num estado intemporal, que não vai mudar ou evoluir com o tempo. Não me agrada muito essa ideia, até porque querem manter as mulheres numa posição secundária, apenas porque defendem que sempre foi assim e sempre será. Eu acredito na evolução do ser humano, da sociedade e da fé. Sou a favor da modificação e, para manter o exemplo, da incorporação da mulher na religião judaica.
É preponderante entender a História e percorrer esse caminho, como o fazemos através das suas obras?
A História ensina-nos como é o ser humano. Eu não sei se a humanidade tem uma natureza absoluta. Não faço a mais pequena ideia, e os cientistas também não sabem. Mas, quando olhamos para a história dos Descobrimentos, da Inquisição, ou de grande seres humanos como Camões ou Pessoa, aprendemos um leque de possibilidades que existe no ser humano. Isso inclui o melhor - solidariedade, empatia ou amor - e o pior, como a intolerância, a brutalidade ou a inveja.
Quem não estuda História não vai compreender o que é a vida humana. E não vai entender, neste caso, o percurso do povo judeu, desde há quase três mil anos.
...Que começa e termina em Israel...
É importante compreender o fenómeno da criação do Estado de Israel, assim como é importante compreender o sofrimento do Holocausto, a perda de seis milhões de judeus, os campos de extermínio e de concentração. Quem não compreende esse período histórico não vai entender a fundação de Israel e o motivo pelo qual os israelitas, por vezes, demonstram pouca flexibilidade. Para muitos judeus israelitas, é uma questão de vida ou morte.
O medo ainda é uma ideia enraizada, propagada?
Há mais preocupação do que medo. Vivemos num mundo, em 2019, com muitos governos dominados por populistas, em certos países de extrema-direita, como Itália, Hungria, Polónia ou Brasil.
A postura histórica da extrema-direita, em relação aos judeus, evidencia uma crueldade e brutalidade que, em determinados períodos, ameaçaram a existência do povo judaico.
Confesso que tenho preocupação em relação ao futuro dos judeus na Europa.
Portugal é um país onde reina a liberdade religiosa?
Penso que sim. Os próximos anos vão testar essa tolerância, em termos judiciais e legais, porque, se calhar, vamos receber mais muçulmanos, tal como acontece em muitos outros países europeus, como França ou Inglaterra.
A jovem democracia portuguesa é tolerante e flexível. Há poucos antissemitas viscerais em Portugal e pouco ódio em relação aos judeus.
Já me deparei com pessoas que têm a tendência de associar certas características negativas aos judeus. Já ouvi várias vezes que 'os judeus são agressivos' ou que 'os judeus são forretas'. São isto, aquilo e assado... Preconceitos, imagens estereotipadas de gente que diz barbaridades e que não conhece os judeus. Há poucos judeus em Portugal, e a sociedade não tem a menor ideia do que é a comunidade judaica. Chegam a essas conclusões através da propaganda de extrema-direita europeia.
É por isso que há uma certa preocupação por parte da comunidade em manter-se discreta?
As comunidades judaicas europeias são diferentes das comunidades do Novo Mundo, como nos Estados Unidos ou no Brasil. Nos Estados Unidos, se alguém chegar à porta de uma sinagoga, vai ser muito bem recebido, como um amigo, como alguém curioso. Vai ser convidado a assistir a uma cerimónia ou até a ir a casa de alguns membros da comunidade. Há uma abertura natural e uma atmosfera de amizade.
Na Europa, é diferente. As comunidades são mais fechadas. Quem aparecer à porta de uma sinagoga vai ser visto como uma ameaça possível, com desconfiança, em função da hostilidade do passado - seis milhões de judeus assassinados em campos de concentração - e da hostilidade atual que sentem na Polónia, na Hungria ou em França.
Sentem a necessidade de criar barreiras, um muro psicológico de proteção.
Uma das formas de derrubar esses muros é a literatura. O que pretendia conseguir com os seus livros tão focados neste património judaico?
Os meus livros podem ter uma função educativa e servir como pontes para que os leitores tenham uma ideia muito concreta de como era a comunidade judaica antes da conversão de 1497, forçada pela Inquisição.
Há muita ignorância, e pouca gente sabe alguma coisa da história da comunidade judaica portuguesa. A história dos judeus em Portugal é fascinante, dramática mas maravilhosa. Antes da conversão forçada, todas as cidades e aldeias tinham uma comunidade judaica. Eram sapateiros, mercadores, alfaiates, e participavam ativamente na vida pública. Tiveram uma participação nos Descobrimentos. Foram as primeiras pessoas a fazer a impressão de livros. Os primeiros livros portugueses foram impressos por judeus.
Infelizmente, isso perdeu-se quando D. Manuel I obrigou os judeus à conversão e, depois, quando a Inquisição foi instalada em Portugal. Os cristãos novos, convertidos à força, que queriam continuar a praticar a sua fé tradicional, tinham de emigrar. Primeiro para o Império Otomano, fixando-se em cidades como Istambul ou Salonica. Mais tarde, para Itália e norte de África. Depois ainda, para Amesterdão e Londres. Foi criada uma enorme diáspora sefardita desde o Brasil até à Índia.
O antissemitismo tem tendência a retornar de uma forma alternada, de uma forma cíclica?
O que mais me espantou, quando comecei a escrever 'O Último Cabalista de Lisboa', foi que sempre que eu falava com os meus amigos sobre o massacre de Lisboa de 1506, em que milhares de cristãos novos foram queimados e mortos no Rossio, todos eles - advogados, médicos e professores catedráticos - respondiam: «mas qual massacre?» Ninguém sabia nada, talvez apenas meia dúzia de peritos.
Lamento que a ignorância continue a provocar estas perdas enormes no mundo. Mas há antissemitismo de esquerda e de direita. Os preconceitos de direita vêm de neonazis e fascistas, que acham que o povo judaico é o diabo e que controla e cria todos os problemas do mundo, numa espécie de diabolização do judeu.
Depois há uma extrema-esquerda que não quer distinguir entre o judeu e o israelita. O judeu pode ser um cidadão de qualquer país. Quando o Governo israelita 'irrita' os cidadãos de França, há ataques a restaurantes franceses com donos judeus, em Paris. Isso é irracional e ignorante.
Há pessoas que me atacam por aquilo que acontece em Israel, quando eu nem sequer tenho família nem negócios lá. Quando me atacam porque não gostam do Governo de Israel é como eu atacar um descendente de uma família católica pelos abusos sexuais na Igreja ou a penalização do aborto por parte do Vaticano.
Eu não sou um representante de Israel. Sou um cidadão judeu, português e americano. Sou uma pessoa que não tem medo da evolução, e sou muito diferente do Richard Zimler que escreveu 'O Último Cabalista de Lisboa', em 1993/94. Quero evoluir, mas tenho um imenso respeito pela História.