Bailo, no tremor de vida que é a Parkinson
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Bailo, no tremor de vida que é a Parkinson

Depois do diagnóstico, ainda há a vida (toda) para dançar. Não se trata de esquecer a doença de Parkinson, mas de acertar-lhe o passo.

A luz já entra, titubeante, sem permissão, pelas portadas do primeiro andar de um prédio em Massamá. São frágeis raios de sol refratados, que pairam, suspensos, como a omnipresença da notícia, "como se fosse uma bala que nos atravessa de um lado ao outro".

A casa de Natércia Rito está imersa numa solidão a dois, a duas velocidades. A Parkinson é o parceiro com quem não se escolhe viver, mas com que se aprende a funcionar, numa terapia de casal que ajuda a esboçar pelo menos novos quilómetros de redondezas palmilháveis, e, às vezes, o apartamento torna-se T0, pequeno demais para os dois. "Fico presa ao chão, como se tivesse cola nos pés. Não consigo avançar, por vezes", conta à TSF.

Aos 66 anos, os cuidados da casa cumprem-se em esforço, mas sofregamente, tal é o orgulho na autonomia reconquistada. Às quartas-feiras, é dia de receber uma das netas, para almoçar, durante a pausa da escola. Nessa altura, é Natércia Rito que se põe à prova para fazer brotar "uma vida normal, em que, às vezes, se perde por momentos o equilíbrio".

Em Odivelas, Jorge Bruto também dança entre a luz e as sombras, corrente alternada entre notas ácidas e doces. Porta de metal aberta, o seu conteúdo de cordas e percussão é revelado. Jorge Bruto, de volta aos palcos, depois do submundo da doença, só tem de ligar a ignição inesgotável de Bruto & The Cannibals.

Lutar contra o tempo e contra o estigma

"A música representa praticamente tudo para mim; é um compromisso, é uma paixão. Faço muitas coisas, mas o que faço melhor é a música e a escrita", analisa o vocalista de 55 anos, diagnosticado há dez com a doença que faz diminuir a letra, mas não a certeza. Inspirado pelo universo Marvel, da banda desenhada e dos heróis que se constroem nos movimentos de defesa pessoal, Jorge Bruto frisa: "Todos os dias há uma batalha que eu tenho de vencer."

O exercício de olhar para trás, quando, aos 45 anos, foi diagnosticado com aquilo que Joaquim Ferreira, professor de Neurologia e Farmacologia Clínica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e diretor clínico do Campus Neurológico Sénior (CNS), descreve como uma doença neurológica que se desenvolve por motivos ainda desconhecidos, por vezes, golpeia-o. "Esta doença foi uma traição dos deuses", atira Jorge Bruto, ateu, crente apenas na lei do par ação-reação e no poder do cérebro humano.

Integrante ainda do grupo Capitão Fantasma, o músico exorciza os vestígios das penas com a escrita. Escrever "é como vomitar a nossa alma, é tão escatológico quanto ir à casa de banho", refere Jorge Bruto, capaz também, apesar das dificuldades motoras, de submergir no processo que o levou de volta a uma gruta luminosa, cave forrada a notas musicais.

"A minha Parkinson é das mais agressivas. Ao fim de alguns meses estava cadavérico", assegura. Apesar de um recrutamento das vontades ainda sãs, os seus movimentos eram naufrágios, e levantar de manhã impunha-se como um duelo. "Eu estive péssimo. Tinha muita dificuldade em falar. Nós andamos pela rua e trememos. Pensam que somos toxicodependentes", lembra.

Parkinson, um caso de lotaria infeliz

Natércia Rito, diagnosticada também e invulgarmente cedo, aos 44 anos, encontrou pelas ruas de armadilhas incógnitas o mesmo preconceito, pedra mais graúda e mais capaz de fazer vacilar. "Já acharam, antes da operação, - porque eu gesticulava muito - que eu era uma toxicodependente a ressacar pela falta da droga. Muitas pessoas são estúpidas e ignorantes", lamenta a ex-emigrante regressada a Portugal há três anos.

Foi para a Suíça em 1986 e regressou em 1998, para dar apoio ao filho mais novo, que deixara os estudos. Passaram-se seis anos em Portugal, um dos quais o mais "terrível", em que recebeu o diagnóstico. "Foi o meu braço esquerdo que me levou ao médico. Durante três anos, ninguém sabia o que eu tinha. Fizeram-me imensos exames: eletromiografias, radiografias... Um dia, a minha médica disse que a única solução era eu ser enviada para a neurologia."

Sem histórico familiar, Natércia Rito tinha sido atingida pelas probabilidades de uma lotaria da qual é difícil retirar um integral que não seja conta de subtrair. "Não quis acreditar, e pedi outras opiniões." Confirmaram-se as expectativas, ao início semelhantes a uma condenação perpétua. Mãe e filha, de 44 e 20 anos, abraçaram-se a chorar. "A minha filha mais velha encorajou-me muito. Na altura, nós sabíamos que o papa e um ator norte-americano [Michael J. Fox] tinham a mesma doença. Ela dizia-me: 'Tu és tão especial que até tens a doença dos famosos'", recorda.

As mãos encarquilhadas e prontas a agarrar os dias

Longe dos holofotes, numa aparente vida normal de sacrifícios anónimos, Natércia Rito ainda voltou à Suíça para mais 12 anos de trabalho na hotelaria, e só se reformou em 2009. Apesar das limitações, insistia contra o próprio corpo que lhe oferecia uma "grande rigidez muscular". "O meu serviço acabava, e eu ainda ia ajudar as minhas colegas. Nunca ninguém se apercebeu. Arranjava forma de passar despercebida. Durante anos a fio, não contei a ninguém."

Para além da limpeza dos quartos dos turistas, "ia a casa de pessoas idosas e jogava com elas, conversávamos". "Foi assim durante sete anos, mesmo depois de estar doente", revela Natércia Rito, que se confessa "uma pessoa respeitadora, que fez muito voluntariado, que gosta de ajudar os outros". Chegou a trabalhar 12 horas por dia, uma rotina em que cabiam amizades cultivadas durante décadas e as memórias intermitentes da adolescente de 16 anos que chegara a Lisboa, proveniente de Trás-os-Montes. "Tinha tantos sonhos..."

"Eu queria ser uma estrela, e eu quero ser o Jorge." Os sonhos de Jorge Bruto são diferentes, nem sempre possíveis, nem sempre ao alcance das mãos encarquilhadas pela Parkinson. "Faz agora um ano que voltei aos palcos. Obrigado. É isso que eu sinto", constata, com a resiliência que diz caracterizá-lo. "Eu sou resiliente. Sobrevivi a anos de drogas, a muitas, todas. Eu ando para a frente porque não tenho escolha." As drogas ficaram para trás das costas em 1986, mas o estigma agora é outro. "Quando andamos na rua a tombar e perdemos 30 kg, a nossa autoestima esvai-se." Aos 49 kg, a tomar entre 23 e 25 comprimidos por dia, a vida pareceu-lhe fina demais, no limiar da morte.

No limite, Jorge Bruto optou por uma cirurgia que o diretor clínico do CNS diz ser aconselhada apenas para 10% dos pacientes com características muito específicas: "pacientes mais novos, com idade inferior a 70 anos, com flutuações motoras, ou seja, que alternam entre momentos em que estão muito ágeis e fazem as suas coisas normalmente e alturas em que se sentem bloqueados e a medicação não faz efeito; não podem também ter alterações mentais ou psíquicas muito relevantes, como depressão".

"A cirurgia de estimulação profunda é mais invasiva. Esta técnica é aplicada a pacientes em fases mais avançadas, em que a resposta aos medicamentos que temos disponíveis já não é tão eficaz", refere o professor de Neurologia e Farmacologia Clínica sobre uma intervenção em que "são colocados dois elétrodos, e, na ponta, uma espécie de agulha fica a tocar estruturas cerebrais, que estão ligadas à execução de movimentos". Apesar de ter devolvido alguma qualidade de vida a pacientes como Natércia Rito e Jorge Bruto, "a cirurgia não para o tempo, e a doença continua a progredir, tal como as pessoas envelhecem", reforça o médico.

Parkinson, um bailado de movimentos lentos

Os efeitos secundários dos medicamentos "eram tantos" que Natércia Rito evitava o contacto com as outras pessoas mal a ação farmacológica começava a entrar em declínio. "Quando se começa a tomar, é a dopamina, 250 miligramas. Esse é o nosso grande mal. À medida que se vai aumentando as doses, vêm os efeitos secundários, que são insuportáveis, bem piores do que a doença."

"Eu já não vivia. Não podia continuar assim. Ficava bloqueada como uma estátua. Punha-me ao lado da minha cama e ali ficava horas a fio, não me conseguia deitar." Agora o equilíbrio está em dançar com a Parkinson e em coser as dores em ponto de cruz. "Gosto de costurar e fazer roupa para os meus netos, e costumava ir dançar ao sábado. Praticava dança clássica. Gosto do ballet por causa dos movimentos lentos. Estou a pensar voltar num destes sábados", atira Natércia Rito. Cada um se deixa guiar pela sua dança, cada um vive a sua Parkinson.

"Doença, cada um fala da sua. Eu nunca me identifiquei com as pessoas", admite Jorge Bruto, que voltou este verão à estrada com Bruto & The Cannibals. A vida é preenchida com rock n' roll, linhas doces entrecortadas pela acidez da doença e uma profunda ausência de fé. "Tenho imensa pena, adorava ser crente." Mas o mundo é também isto, nota o músico, um lugar em que, às vezes, acontecem coisas más - como a eleição de Donald Trump - que mudam tudo, inclusivamente a arte.

Para Natércia Rito, a dor tem a alternância das marés, e mergulhar no medo, apesar de um ato de verdadeira autofagia, é a única forma de se manter de pé diante de cada luta. Nem todas, contudo, podem ser ganhas. "Gostava de nadar, mas ainda tenho medo de me desequilibrar e de ser arrastada pelas ondas..."

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