Frei Fernando Ventura
Em Alta Voz

"Deus morreu e fomos nós que o matámos"

Franciscano capuchinho, missionário de pé descalço, é um viajante pelo mundo, sempre para estar ao lado dos pobres e dos que sofrem. 2022 foi, apenas, mais um ano neste caminho de um homem de Deus que está perto da terra, "estafado" da religião e descrente na humanidade.

Frei Fernando Ventura, 63 anos, escolheu a missão de ser pobre e de amparar os que mais sofrem, seja qual for a latitude ou a longitude.

Na véspera de Natal, confessa que a voz do Papa não tem chegado a Moscovo, lamenta que os homens se tenham "endeusado" e alerta para a necessidade de haver um exército de fé, porque independentemente do credo de cada um, na fé há espaço para todos.

​O ano que está agora a acabar ainda tem restos da peste que trouxe a fome e a morte, começou com uma guerra na Europa, o que já não acontecia nesta escala há 70 anos, também trouxe mais fome e mais morte. Os deuses devem estar loucos?

Os homens estão loucos. Estamos ainda a atravessar um período de turbulência, não terminou e infelizmente parece estar longe de terminar, que vem marcado por duas coisas que sintetizaria em poucas palavras. É um ponto de chegada e de continuidade de um endeusamento do "eu" e de uma tribalização do "nós". Estamos a pagar esta fatura de "eus" exacerbados e autoendeusados que procuram, apesar de tudo, a segurança da tribo e uma gestão tribal da vida, do desporto, da política, da culinária, das relações interpessoais. A tribo que funciona ao mesmo tempo como lugar de proteção e também como lugar de despersonalização. Nesta luta do "eu" à procura do seu próprio sentido, estamos a pagar a fatura. Esta fatura a que chamo "solteironização" dos afetos. O tempo que vivemos é solteiro de afetos, viúvo de emoções e divorciado de compromissos, é um ponto de chegada, de continuidade, e será o ponto de partida para outro estilo de ser e de estar que ainda está por inventar. Estamos a começar a perceber por onde podemos eventualmente caminhar. Esta chegada de um processo que vem da passagem de um tempo teocêntrico para um tempo antropocêntrico, estamos dentro da dimensão do fluir da história do pensamento, sobretudo o ocidental, e da história da humanidade. É a partir de Feuerbach que vamos ouvindo no discurso público e no discurso escrito esta ideia que entra na história e na história do pensamento. Dizia Feuerbach que o Homem criou Deus à sua imagem e semelhança e é desta afirmação que depois vamos ouvir Nietzche, Engels, Marx, etc., é esta afirmação e este grito que vem de algumas centenas de anos atrás, "Deus morreu e fomos nós que o matámos". Esta necessidade de matar Deus, esta necessidade de matar a alteridade absoluta, a terra no tempo que é hoje, na necessidade que é hoje de matar a alteridade que é o outro. E isto montado e até dito de forma cândida, da forma como ensinamos as nossas crianças e com a qual pretendemos construir uma sociedade quando dizemos que a nossa liberdade termina quando começa a liberdade do outro. Isto é profundamente estúpido.

Porquê?
Porque se o outro é o limite da minha liberdade, tenho de o matar para ser livre. Alteridade do outro, alteridade no sentido de ser outro que seja diferente de mim, que preciso que seja diferente de mim para que possa crescer naquilo que a mim me falta para ser maior. Se não entender o meu espaço de liberdade que é aumentado, na medida em que possa acrescentar a minha liberdade à liberdade do outro, estaremos a desconstruir a sociedade. Deixe-me dar o exemplo das varandas: um prédio que tem varanda a toda a volta, tem também uma barreira em cada apartamento que impede de passar para o espaço do outro. Se os vizinhos daquele andar conseguissem tirar as barreiras todas, ficavam todos com uma varanda gigante para poderem circular. Entendo a liberdade assim, entendo este mito da construção da liberdade, da minha liberdade que é limitada pela liberdade do outro, mas esta barreira que me impede de chegar à alteridade e de conseguir construir uma relação com o outro, cada vez mais digo: esta é uma sociedade solteira de afetos, viúva de emoções e divorciada de compromissos.

Um dos temas que marcam incontornavelmente este ano de 2022 é a invasão da Ucrânia pela Rússia. O Papa Francisco, enquanto construtor de paz, deveria ter ido a Kiev e a Moscovo - e seria o primeiro Papa a fazê-lo - ou na impossibilidade física de o fazer, poderia e deveria ter mandado um enviado para tentar conciliar as partes?
Têm sido mais do que muitas as vezes em que o Papa se tem disponibilizado pessoalmente para moderar o conflito ou para disponibilizar o espaço do Vaticano, um espaço neutro de encontro e de diálogo. É um sonho de todos os Papas, diria eu, desde a revolução bolchevique, poder entrar e tocar a Rússia. Houve um encontro do Papa com o patriarca de Moscovo há uns anos em Cuba, não propriamente em território russo. Mas temos a dimensão política e temos a dimensão religiosa, e os últimos discursos que temos ouvido do patriarca Cirilo é, novamente, este casamento pornográfico entre o altar e o trono.

Mas o Papa deveria ter ido a Kiev ou deveria ter manifestado uma intenção clara de lá ir?

Manifestou claramente essa intenção.

Mas não foi.
Não foi, mas ele não pode decidir que vai e partir no dia seguinte ou no dia em que decidir. Obviamente, há a outra parte que tem uma palavra a dizer e o Papa não é um indivíduo sozinho que decide por si aquilo que é a sua vontade de querer estar, ir falar e intervir.

Não podendo o Papa ir a Moscovo ou a Kiev, acha que as suas declarações, este apelo ao diálogo e à negociação chega a algum dos lados em conflito ou, pelo contrário, fazem todos orelhas moucas?
Chega a ambos os lados, mas o efeito é aquele que vemos. Não tenho quaisquer dúvidas de que a diplomacia do Vaticano tem estado muito ativa, como sempre está, na descrição que impõe naturalmente a diplomacia. Comparo este momento desta insistência do Papa em querer ir falar com as duas partes, àquilo que foi Damieta para Francisco de Assis. Estamos no contexto da segunda cruzada, Francisco vai de facto à Damieta, ao Egito, fala com as duas partes - o famoso encontro com o sultão -, e temos alguns objetos que o sultão ofereceu a São Francisco. Eles falaram de facto, mas os interesses de ambas as partes e, naquela época, os interesses superiores do papado de então e das questões do comércio do oriente, impediu que o enviado Francisco de Assis conseguisse fazer-se ouvir. Ele falou, mas os ouvidos ficaram surdos. O Papa Francisco está nesta circunstância semelhante à de Francisco de Assis.

O facto de estarmos a falar de países de matriz ortodoxa, apesar da Ucrânia também ter uma igreja que segue Roma, dificulta o papel do Papa? Como é que interpreta o facto de haver uma clivagem da própria Igreja Ortodoxa, que acaba por ficar partida entre ucranianos e russos, com os crentes obrigados a escolher um dos lados do conflito, mas também da pertença a uma igreja ou a outra?
Como dizia há pouco, quando o altar e o trono se casam, nascem abortos e criam-se divisões e situações irreconciliáveis à partida. Também nós somos herdeiros daquilo que foi Constantino e do que foi o império a entrar e a ocupar os espaços relacionais e estruturais da própria igreja. Dois mil anos depois, estamos ainda em luta para desmontar alguns esquemas piramidais e alguns esquemas imperiais que vão ficando como fungos. O diálogo com a ortodoxia nunca foi fácil, desde o famoso cisma do oriente que estamos nesta luta. Sou testemunha ocular e vivencial dos esforços que têm sido feitos pelo Vaticano e pela Conferência Episcopal Italiana. Estive em três encontros em que celebraram com a comunidade judaica, outro com os ortodoxos orientais e outro com os ortodoxos russos. Passámos dez dias de convívio com os nossos irmãos judeus e foi fantástico, de uma grande normalidade relacional e de podermos rezar juntos, até à segunda dose que foi com os ortodoxos orientais, aí já muito mais balizado pelo politicamente correto. Há quase uma impossibilidade de sentir que temos alguém para falar do outro lado quando se tratou por fim deste encontro com os responsáveis da Igreja Ortodoxa russa. Há séculos de história, há séculos de incompreensões e de entulho, esta seria uma fase em que viveríamos uma época privilegiada para remover o entulho, mas infelizmente ainda nos caiu mais em cima. Obviamente, a igreja ucraniana sofre com isto e sabemos que está a crescer a contestação da parte da igreja ucraniana filorrussa que depende do patriarcado de Moscovo. Não sei como estão as coisas atualmente, nem se calhar é possível medir com este ambiente de guerra que estamos a viver. Mas há uma divisão mesmo dentro da igreja ucraniana, relativamente à obediência ao patriarcado de Moscovo. São divisões tristes, são contrassinais, isto nada tem a ver com Cristo ou com cristianismo, tem a ver com a estupidez humana e a incapacidade destes fundamentalismos. E aqui cito muito um autor judeu que faleceu há pouco tempo, Amos Oz, e que tem um livro fantástico chamado Caros Fanáticos e há uma frase lapidar que não deixa dúvidas nenhumas quanto à definição do fanático e diz, "fanático é aquele que só consegue contar até um" e nós vivemos num mundo fanatizado. Quando há pouco falava da tribalização do "nós", é este treino quase pavloviano de sermos todos formatados para só saber contar até um.

Enquanto isso, no Irão, milhares de jovens não contam até um. São milhares nas ruas em protestos contra um regime religioso, mas também fanático e arriscam por isso a sua própria vida. Mais uma vez, vai dizer que a culpa é dos homens, mas pergunto o que é feito de Deus?

Todos temos esta tendência ou vontade de imaginar Deus como o gestor das marionetas, mas se alguma coisa Deus é, é a liberdade. Aquilo que o cristianismo traz em termos de novidade, não é um Deus num céu distante, é um Deus que ao fazer-se história - e estamos em cima do Natal -, vem de facto desafiar para a conversão. A conversão é esta realidade e há um discurso que importa trazer à consciência, sobretudo dos cristãos. Quando se fala da encarnação como redenção, como libertação do pecado, não estamos a falar de Deus que chega à história na figura de Jesus Cristo para aplacar um pai irado porque alguém algum dia comeu uma maçã, mas a libertação é a liberdade de nós próprios, é o desafio para que sejamos os protagonistas da história. E é aqui que esbarra. Não temos um Deus que gere marionetes, temos um Deus que desafia as suas criaturas para a construção de um mundo de gente livre e capaz de criar espaço de liberdade. E aqui somos nós que falhamos, é outra vez o pecado original, nada tem a ver com maçãs, nem pouco mais ou menos. Aquele que cria todos os males que chegam à história ao mundo, está no segredo da voz da tal famosa serpente. Serpente em hebraico é nahash e isto é quase a onomatopeia deste bicho que rasteja por cima da folhagem seca, deste animal mítico que vive no mundo dos mortos e dos vivos, esta meia-vida, a serpente que tanto pode viver debaixo da terra como por cima dela. E o discurso é este, é tão antigo quanto a própria humanidade, "sereis como Deus". Todas as nossas atitudes de sobranceria, de pecado, e todos nós temos a mania que pecamos contra Deus, mas não, pecamos é contra os outros. Quando diante dos outros nos autoproclamamos como deuses e tratamos os outros de cima para baixo. E se me permitirem aqui colocar mais uma coisa que é da linguagem moderna e que me irrita solenemente, é a ideia da tolerância. Acho que é um disparate. A tolerância não pode ser um ponto de chegada, tem de ser um ponto de passagem para aquilo que tem de ser o ponto de chegada, que é o respeito. Posso tolerar uma dor de cabeça, posso tolerar alguma situação que não depende de mim, mas quando digo a alguém "tolero-te", estou a olhar a pessoa de cima para baixo, é dizer que é uma coisa sem valor, uma coisa desprezível, mas "tolero-te". Portanto, a tolerância não pode ser o ponto de chegada que está a ser proclamado nestes nossos tempos, tem antes de ser um ponto de passagem até ao respeito pelo outro, até ao respeito pela liberdade do outro que não pode ser invadida nem violada, mas que terá de ser alargada num espaço relacional. E é isso que nos falta por causa do pecado original que nos ocupa a todos, é a mania que somos todos santos e imaculados e, sobretudo, que somos Deus.

Apesar de caminharmos, do ponto de vista formal, jurídico e legal, para Estados laicos, são as religiões que continuam a comandar os povos que fazem parte desses Estados?

Uma coisa é o Estado laico outra coisa é o Estado laicista, não estamos só a discutir linguagem. O Estado laico tem a obrigação, por definição, de conceder a liberdade total às formas de celebração da vida e da fé que não toquem a dignidade da pessoa humana. E aqui entraríamos num discurso muito mais alargado, nem tudo o que se proclama como religião o é, e a medida estará sempre na medida do respeito pela pessoa. Quando em nome de Deus ou de uma qualquer ideia de Deus eu imponho ao outro ideias que vão contra a sua dignidade de ser pessoa, isso não é uma religião, é uma seita. E aí o Estado tem a obrigação de defender os seus cidadãos que podem estar nas mãos de facínoras disfarçados de pessoas da religião. Posto isto, sou profundamente a favor do Estado laico, mas sou profundamente contra um Estado laicista em que ele - Estado -, se transforma na religião nova, transformando o líder num Deus a ser adorado, independentemente das patifarias que o senhor fizer. Aqui entramos na dimensão da tribalização da história, da vida e da política, novamente, na negação do "eu" em nome de um de nós metido num grupo que o controla. É um grupo que o gere e isso é muito mau.

Vamos olhar um pouco para fora da Europa. Pela experiência que tem, sobretudo em África, mas também noutras latitudes, sabe que há perseguições e massacres religiosos e crescente perseguição a cristãos. Recentemente, foram anunciados mais cristãos mortos na Nigéria. Tem a ver com a religião ou há outras razões para esses ódios que se sentem nessas partes do mundo?
O cristianismo é, neste momento, a religião mais perseguida no mundo inteiro, basta ver o número de mortos, assassinados. O cristianismo é perseguido porque toca essencialmente os poderes instalados, não há nenhum Estado autocrático que possa conviver pacificamente com uma comunidade cristã verdadeiramente cristã e comprometida com a vida. Uma comunidade que vai à missa, mas que vai à vida. No chamado Ocidente, temos perdido isto, temos demasiada gente a ir à missa e pouca gente a ir à vida. Graças a Deus que muitos ainda vão à vida.

Então esses cristãos não são vítimas apenas de extremistas jihadistas, mas também dos próprios Estados que deviam ser neutros em relação à religião, protetores até das religiões minoritárias, mas que não são?

Exatamente. Como digo, a religião é o melhor combustível para atear conflitos. E atirar com conflitos religiosos onde na verdade só existem conflitos económicos e geopolíticos, estou a falar muito concretamente do norte de Moçambique. Costumo dizer que tenho três pátrias: sou português, com muito orgulho e honra, tenho a pátria de geração que é Israel, e tenho a pátria de coração que é Moçambique. E dói, dói-me Moçambique, porque já foi um local de convívio absolutamente pacífico, e quem teve a experiência de viver em Moçambique, quer antes ou depois da independência, sentiu a normalidade relacional entre muçulmanos e cristãos. Nunca Moçambique teve conflitos religiosos. Olhar para a chacina que continua em Cabo Delgado, agora escondida pelos acontecimentos maiores que o mundo ocidental está a viver, o que ali temos é só uma tentativa - que infelizmente creio que será conseguida - de controlo do acesso ao gás, às pedras preciosas e às riquezas do país. Mais uma vez, pelos facínoras que em nome de Deus vêm atiçar pessoas umas contra as outras.

Em relação ao mundo árabe, que tendemos a achar sinónimo de mundo islâmico, há fortes minorias cristãs desde sempre mas que têm vindo a desaparecer. No Iraque têm vindo a reduzir-se, no Líbano e no Egito mantêm-se porque são muito numerosas, mas dá a sensação de que um dia esta memória do cristão árabe pode ser uma ideia do passado ou apenas da diáspora. Preocupa-o também este desaparecimento destes cristãos nesta parte do mundo?
Preocupa-me o desaparecimento de qualquer forma civilizacional de viver a vida, de viver a relação com os outros, de viver a relação com a alteridade, e de viver a relação com Deus. E, infelizmente, temos assistido a um silêncio criminoso por parte das estruturas internacionais, mesmo com a perseguição sistemática, organizada e de destruição. Não só nos países árabes, mas também na Índia com aquilo que está a acontecer com a "hinduização" e com o levar o hinduísmo, por todos os meios, a ocupar espaços como Goa, Damão e Diu. É aquilo que tem sido uma política concertada, sistemática, martelada, para criar dificuldades e afastamento dos cristãos naquela zona. É outra vez de novo e sempre, e desculpem puxar a brasa para a minha sardinha, mas a única religião que é capaz de ser um empecilho aos facínoras e aos ditadores, é o cristianismo. Desde o início que temos cristãos a pagar com a vida por dizer que não ao imperador, desde o tempo do Império Romano.

Talvez por causa disso, deveria a Igreja Católica ter "um exército" como teve noutros tempos ou o poder da palavra chega? Não é uma guerra em que uns estão de fisga e outros de míssil?
É. Não sou de todo a favor dos exércitos armados em nome da fé, estou muito a favor do reforço e isto toca a todos e de qualquer fé. É importante reforçar o exército de gente de fé, gente que não é da religião. Estou estafado de gente da religião, o mundo está cansado de gente da religião e este é o tempo de passar da religião à fé. E aqui cabem todos, cabem cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, cabem todas as sensibilidades religiosas. E religião é só isto, é este reconhecimento do "eu" de que o mundo não começou nem termina em mim, que sou parte de um todo, que sou parte de um multiverso gerido e criado por alguém que não sou eu. Isto obriga-me a ser construtor e a ter este sentimento de ser ponto de chegada e de partida. O mundo não começou connosco nem terminará connosco, somos pontos de chegada de todas as experiências de vida e de fé que nos precederam. Oxalá fossemos todos pontos de partida para novas experiências de vida e de fé, independentemente do rótulo religioso que levamos.

Isso que nos diz são palavras, mas depois olhamos para o terreno, para as lutas, para as vidas perdidas, para o que as populações sofrem à custa dessas guerras, e parece que as palavras são impotentes para travar o que acontece no terreno que tão bem conhece. Como é que isto se faz? Vamos continuar à espera de que as palavras façam efeito?

Se tivesse resposta para essa pergunta ia eu para a frente a dizer como fazer. Não sei. Aquilo que tenho vivenciado, e estive em muitos países maioritariamente muçulmanos, e estive sempre muitíssimo bem acolhido. São pessoas normais, gente que luta no dia a dia para construir e alimentar a sua família, para viver pacificamente na sua sociedade. É gente que não vende notícias e quem as cria são os "não-gente", os "não-capazes" de construir relações redimidas. Sendo um bocado incorreto na linguagem, são os gajos e as gajas da religião e para esses não há pachorra. Contra esses, a melhor forma de luta é este exército que precisa de ser organizado, um exército de gente de fé, composto por pessoas que, independentemente da forma como vivem o seu ser e a sua relação com a alteridade, é acima de tudo gente que quer viver a sua relação com os outros. Deixe-me dizer um chavão e voltar a dizê-lo aqui: a missão que nos toca a todos enquanto seres humanos, independentemente das opções políticas, religiosas, sexuais, o que for, é ser gente com gente, para que cada vez mais gente seja gente e nunca ninguém deixe de ser pessoa. Esta luta e esta guerra é uma tarefa individual de cada um de nós.

Falando um pouco daquilo que tem feito em São Tomé e Príncipe, as notícias que de lá chegam nem sempre são muito boas, como a recente tentativa de golpe de estado que ainda está mal esclarecida. Mas, definitivamente, também há coisas boas que chegam a São Tomé, nomeadamente do banco de leite que ajudou a instalar. Qual é o testemunho positivo que pode dar sobre o desenvolvimento do pequeno arquipélago de língua portuguesa? O que é que a ação missionária pode lá fazer, assim como o apoio do Estado português?

Muito obrigado por ter trazido este tema do Banco de Leite de São Tomé e Príncipe. O banco de leite nasceu há treze anos e é só uma das muitas realidades que naquele território dão a cara e dão o coração. Fazem-se simplesmente portadores de partilhas, quer em São Tomé, quer em todos os países como São Tomé que existem pelo mundo. Ao lado de tantas situações de aproveitamento deste tipo de atividades para servirem para lavar dinheiro porco, a esmagadora maioria das pessoas que estão no terreno estão neste processo de ser gente com gente. Estão numa dimensão de partilha. O Banco de Leite de São Tomé e Príncipe, criado há 13 anos, tem este sinal maior: a partilha dos pobres com os pobres. Acabámos de inaugurar na ilha do Príncipe um lar para idosos, quando estiver tudo pago - e está praticamente, falta apenas pagar o último transporte de móveis -, teremos investido ali perto de 400 mil euros. Se todos os grandes, e falo dos muito grandes da política, do desporto, dos socialites de serviço, se todos tivessem cumprido pelo menos metade, tínhamos construído um hotel de sete estrelas. Falharam todos miseravelmente, quem ficou foram os pobres e, por isso, na fachada do edifício pode ler-se "Lar de São Francisco de Assis, dos pobres para os pobres".

Está a falar de figuras públicas que se comprometem com este tipo de projetos mas depois falham?

Sim, sim. Sabe que os pobres enfeitam que se farta e dão de comer a muita gente, fica bem aparecer na fotografia, mas quando o fotógrafo vai embora quem fica no terreno é quem tem de inventar em cima do acontecimento.

Quem é que se esqueceu de passar o cheque prometido?

Muita gente, muita gente. Quando a obra estiver terminada, todos vão receber a informação e alguns até estava tentado a convidá-los para a inauguração, mas não quis ser tão sacana a esse ponto. Mas, obviamente, vão receber o relatório daquilo que não fizeram. Não é por vingança, é esta forma de dizer "se não podes, não faças, se não podes, não prometas" e "se prometes e não consegues, tens de ter a coragem e a normalidade de dizer que não consegues". Não é fugir, não é esconder, mas os grandes esconderam-se e os pequenos deram as mãos e a casa está construída.

Mas vamos também falar do lado dos que ajudam, as pessoas e as ONG.

Sim, sim, claramente. Esta estrutura está ligada à Santa Casa da Misericórdia de São Tomé e Príncipe e recebemos donativos de três euros, cinco euros, também temos de dez mil euros, está tudo documentado. Aliás, ainda ontem publiquei os últimos números na minha página do Facebook. Não estamos vinculados nem rejeitamos donativos de quem quer que seja, ser gente com gente não tem a ver com ser membro de uma religião ou de um qualquer partido. Não estamos à venda para ninguém, estamos abertos e precisamos de todos, porque todos precisamos de todos.

Há pouco tempo, fizemos aqui uma entrevista com o responsável pelo Programa Alimentar Mundial e ele deu-nos o número de 15 dólares para se poder alimentar uma pessoa durante um mês nos países do corno de África. A realidade em São Tomé é mais ou menos essa também? Com pouco podemos fazer muito?

Com pouco pode fazer-se muito. Temos calculado, neste momento, na estrutura que já funciona como centro de dia, alimentamos perto de 100 pessoas todos os dias com mil euros por mês. A ilha do Príncipe, por exemplo, tem características próprias, é a ilha de uma ilha, os preços que se praticam localmente são muito mais elevados do que em São Tomé. Para ter uma ideia, um cartão de ovos em São Tomé anda à volta das 130/150 dobras, mas em Príncipe anda entre as 240/260 dobras. Um euro é o equivalente a 25 dobras, um litro de combustível, por exemplo, custa 30 dobras. São realidades de microeconomia, de economias que a partir de fora não são tão fáceis de entender, mas sim, com pouco pode fazer-se muito. Permita-me deixar mais um dos meus chavões. A revolução da história faz-se com a revolução da aritmética, com as quatro operações base, dividir para multiplicar e somar sem subtrair nada a ninguém. E no nosso mundo houve demasiada gente a multiplicar sem dividir e a somar enquanto subtraíam tudo o que puderam aos outros.

Mudando de tema, os escândalos de pedofilia e abusos sexuais de membros da Igreja começam a ser revelados e estudados, sobretudo nos chamados países desenvolvidos. Na sua opinião, enfraquecem a Igreja Católica?

Não diria que enfraquecem, obrigam-nos a assumir e a reconhecer aquilo que é parte integrante da nossa humanidade. Todos nós, na nossa história pessoal, temos tempos e momentos dos quais nos arrependemos. As instituições são formadas por pessoas e na nossa história pessoal gostaríamos muito de poder apagar vários momentos da nossa vida, obviamente, na história da Igreja gostaríamos de poder apagar estas páginas negras da história. Não se podem apagar, têm de ser assumidas, revertidas no sentido da evolução do reconhecer, do pedir perdão e do continuar. Ao lado de tanta pedofilia, infelizmente na Igreja, há milhões de pessoas no mundo inteiro que só existem e que têm dignidade de vida porque a Igreja está lá.

Mas uma coisa não apaga a outra.
É o que acabo de dizer.

Uma perda de confiança dos crentes e dos não-crentes nos homens que têm a missão de conduzir a Igreja. Ou seja, aqueles em que supostamente mais devíamos confiar, são aqueles que depois abusam do seu poder, autoridade e estatuto.
Isto impõe justamente aos homens da Igreja a responsabilidade de se situarem, de se medirem, de assumirem o seu papel e a sua responsabilidade.

E isso basta, pedir perdão e assumir?
O que é que quer mais?

Estou a perguntar.
Suicídio? Deixe-me voltar a uma imagem que guardo do primeiro campo de concentração que conheci, Majdanek, ao pé de Lublin, na Polónia. É um campo que está praticamente intacto, quando o Exército Vermelho entrou, os nazis não tiveram tempo de destruir praticamente nada. Os crematórios têm um poço imenso de cinzas humanas, as que não tinham sido ainda enviadas para fora do campo para servir de estrume, e tem o alinhamento dos fornos crematórios. A primeira vez que lá estive, no final do alinhamento dos fornos, o que lá está é uma lamparina de azeite, uma jarra com uma flor e uma placa. Na placa diz qualquer coisa como "quando o crime é deste tamanho, o único remédio é o perdão". O perdão é libertador, não perdoar a alguém é continuar a permitir que essa pessoa nos continue a fazer mal.

Há uns anos, por esta altura, escreveu uma crónica chamada "Teimosamente é Natal". O Natal é já amanhã, literalmente. Que Natal será este com um mundo em convulsão, uma guerra na Europa, a fome a crescer por causa da guerra, uma peste que não acabou, destruição e conflitos? Há espaço para celebrar a vinda de um salvador com o mundo neste estado?
O espaço é todo, porque a vinda do salvador vem para ocupar o nosso espaço. Natal não é só uma ave de Deus que se faz homem, é sobretudo um murro nas tripas dos instalados. Nesta altura do ano, temos alguma tendência em "bater" nos habitantes de Belém porque não acolheram Jesus, porque fecharam as portas e etc., mas isto só se diz por ignorância. Diz-se por dado adquirido que Jesus nasceu em Belém, mas quando Maria e José partem de sua casa na Nazaré em direção a Belém, sabem que o menino não vai poder nascer num sítio normal. Uma casa onde nascesse um menino ficava interdita durante 30 dias e uma casa em que nascesse uma menina ficava interdita durante 60 dias. Eram as normas de proteção da maternidade e da mãe. O que ali está, em Belém, não é a rejeição de nada nem de ninguém, o que ali está é alguém, não sabemos quem, um homem ou uma mulher, proprietário de um espaço menos digno, um espaço de animais. Mas foi alguém que abriu o seu possível a Deus que chega e é Deus que chega no possível da nossa humanidade. Celebrar o Natal em tempos complicados desafia-nos a entrar no possível da nossa história e, a partir de dentro, transformá-la no perdão, no reconhecimento do pecado, no refazer de vidas desfeitas, no acolher de quem também sofreu por nossa causa, e no acolher de toda a gente que é chamada a partilhar do presépio, de todos os presépios de todos os beléns da história. Este ano, faz sentido celebrar o Natal.

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