Dos atrasos aos encontros digitais. Como a adoção de crianças foi atingida pela pandemia
Reportagem TSF

Dos atrasos aos encontros digitais. Como a adoção de crianças foi atingida pela pandemia

Houve mais mães a dar os filhos para adoção, mas também mais demoras nos processos para os pais adotivos. Os primeiros encontros com as crianças aconteceram digitalmente e com máscara. A pandemia criou ansiedade em ambas as partes e, em alguns casos, afetou o desenvolvimento de laços familiares.

O desejo de encontrar uma família, a ansiedade de conhecer os pais, a adaptação a uma nova casa, a uma nova vida. São muitos os sentimentos, por vezes complicados, entre as crianças que passam por um processo de adoção. O que dizer, então, de passar por tudo isto no meio de uma pandemia.

"Temos várias fases do processo de adoção e o impacto da pandemia foi sentido em todas elas", adianta à TSF Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que acompanhou de perto esta realidade.

Os primeiros efeitos sentiram-se logo no número de mães a dar os filhos para a adoção: "Nos anos de 2020 e 2021 houve o maior número de situações de consentimento prévio para adoção. As mães, na instituição hospitalar, manifestam logo à entrada a sua incapacidade de acolher a criança e dão logo o consentimento para que a criança venha a ser adotada". Uma situação que era rara, mas que a pandemia potenciou. "Pode estar relacionado com questões de ansiedade relativamente ao futuro por parte destas mães, com questões de saúde, com questões sociais, como o desemprego...", aponta.

A longa espera

O Relatório Casa, do Instituto da Segurança Social, indica que mais de 500 menores ficaram à espera de ser adotados. Houve 355 crianças tiveram de aguardar pela decisão dos juízes e 179 já tinham a adoção decretada, mas não puderam ficar com as famílias.

A TSF questionou mais de uma dezena de pais que atravessaram processos de adoção durante a pandemia. Entre os testemunhos recolhidos, 36% pertenciam a pais que se encontravam a preparar a apresentação à criança; 18% tinham conhecido a criança há poucos meses, 9% tinham tido a última sessão antes da adoção e 36% estavam já em fase de pré-adoção, a coabitar com a criança. Entre estes, apenas 18% viram o processo de adoção ser interrompido pela pandemia, mas perto de metade (46%) admite que houve atrasos (adiamentos, com meses de espera, nas data para conhecer as crianças ou para a integração destas na família foi adiada, com o processo burocrático a durar mais).

O laboratório colaborativo ProChild CoLAB estudou a adoção em Portugal durante a pandemia. O projeto em causa chama-se: "Integrar uma criança numa família adotiva em tempo de Covid-19: Que desafios e potencialidades" e foi um trabalho desenvolvido, além dos investigadores do laboratório, por Margarida Rangel Henriques, especialista da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, e por Isabel Pastor, a diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar.

O estudo foi realizado através de entrevistas a pais que receberam crianças entre março e junho de 2020 e a técnicos que acompanharam famílias, tendo os resultados sido submetidos, enquanto artigo científico, para uma publicação científica internacional.

Em declarações à TSF, Stephanie Alves, investigadora do ProChild CoLAB, explica o efeito que o atraso nos processos teve nas crianças. "Ficaram mais ansiosas por saberem, muitas delas, que já haviam sido selecionados pais para elas, mas que não os podiam conhecer pessoalmente", nota. Também os pais adotivos relataram ter vivido "uma grande incerteza e frustração por saberem que estavam quase a concretizar o desejo de serem pais e isso não lhes ser possível no imediato. Tinham de esperar mais tempo e num período de tempo completamente incerto".

Entre a aceitação de proposta de adoção da criança e o primeiro contacto com ela costuma demorar 20 dias, porém, na pandemia, chegou a demorar três meses, nota Stephanie Alves.

O advento do digital

Ainda assim, mesmo perante uma pandemia, tudo foi feito para que os encontros agendados entre pais e crianças acontecessem, ressalva Isabel Pastor. Entre os pais questionados pela TSF, apenas 27% relataram o cancelamento de encontros com os futuros filhos. No entanto, em vez de presencialmente, esse primeiro contacto teve de ser feito de modo digital.

"Os meios digitais não nos permitem captar aqui toda a experiência mais física, mais sensorial, de que o ser humano também acaba por precisar. Houve aqui uma prática que não foi possibilitada pela pandemia, que é a possibilidade de os pais conhecerem as crianças presencialmente na casa de acolhimento ou no ambiente familiar onde a criança estiver a viver naquele momento. Isso fez, realmente, muita falta", sustenta Stephanie Alves.

Quando chegou o momento de se encontrarem presencialmente, ao início os pais e as crianças não podiam ver os rostos uns dos outros, por causa do fator máscara. "Durante a primeira vaga, a máscara era obrigatória e os encontros entre os pais e as crianças ocorriam com máscara. Não é a mesma coisa, ao nível da relação que se começa a estabelecer entre pais e filhos, acabou por interferir", conta a especialista. Assim que foi possível, as máscaras caíram e privilegiaram-se os encontros em espaços ao ar livre.

Ainda assim, em quase 20% dos casos relatados à TSF, as crianças expressaram sentimentos negativos com a adoção durante a pandemia. Os pais lamentam não ter podido sair para passear com a criança, nem levá-las a conhecer e interagir com os avós e outras pessoas próximas. Em alguns casos, a pandemia dificultou seriamente o processo de integração no novo universo da criança, uma vez que esta falta de contactos presenciais foi interpretada como rejeição e abandono, provocando regressões nas relações.

"Estamos a falar de crianças que estavam em casas de acolhimento, rodeadas de outras crianças 24 horas por dia, e, de repente, estavam ali confinadas àquelas quatro paredes, com aquela nova família... Foi um dos desafios que os pais mais evidenciaram no nosso estudo", indica Stephanie Alves.

Aprendizagens para o futuro

Ainda assim, a balança não pende só para um lado. "Muitas vezes, acontecimentos brutais da vida trazem-nos alavancas para progredir, para criar, para encontrar outras soluções e até para nos estimular", observa a diretora da Unidade de Adoção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Isabel Pastor sublinha que é importante aprender com o que aconteceu e aplicar, no futuro, os meios tecnológicos que permitiu continuar com os processos de adoção durante a pandemia, "sempre que disso se retire maior eficácia no sistema".

"Se pudermos poupar deslocações apara uma entrevista que pode ser conseguida, nos mesmos moldes, aqui, por que não aproveitar estes recursos que fomos obrigados a perceber e a ser, até capazes, de nos adaptarmos e apreciarmos?", sugere a responsável da Santa Casa da Misericórdia.

Também daqui para a frente, defende a investigadora Stephanie Alves, dever-se-á fazer um novo ponto de situação, para perceber os efeitos, a longo prazo, de uma adoção em pandemia. "Seria até interessante, no futuro, comparar estas crianças, adotadas em tempo de pandemia, com outras crianças adotadas pré-pandemia." Um futuro que se espera que seja de amor e segurança, numa nova vida.

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