Dos lípidos à escala. Afinal, quais são as dificuldades das farmacêuticas com as vacinas?

Os lípidos, produzidos por meia dúzia de empresas no mundo, são uma das principais matérias-primas em falta. Leia ou ouça a entrevista TSF.

De um momento para o outro o Mundo ficou à espera de biliões de vacinas contra a Covid-19, mas as farmacêuticas têm muita dificuldade em responder a tanta procura e até em cumprir os contratos que assinam com os governos.

Paula Alves é engenheira bioquímica do Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (IBET, sediado em Oeiras) que esteve envolvido no desenvolvimento da vacina da Moderna e há duas semanas foi escolhida para fazer parte da Academia Nacional de Engenharia dos Estados Unidos da América.

Em entrevista à TSF, a especialista explica as dificuldades de um processo de produção muito complexo e refere que é normal que cheguem a faltar frascos de vidro, gelo seco para preservar as vacinas, mas refere que a maior dificuldade são mesmo os lípidos que só são feitos por quatro ou cinco empresas mundiais.

Fazer vacinas em Portugal poderá ser possível, mas Paula Alves acredita que dificilmente isso acontecerá daqui a um ou mesmo dois anos.

Fazer uma vacina é um processo complicado? É mais difícil do que produzir qualquer outro medicamento?

Primeiro, há vários tipos de vacinas e para a Covid temos duas grandes tecnologias o que é bom para termos mais sucesso. Mas todas elas são muito mais complexas do que um medicamento que se obtém com uma síntese química. Normalmente são os próprios vírus que estamos a produzir ou pedaços do vírus e são sempre processos biológicos em que precisamos de células para produzir a nossa vacina. Estamos dependentes, por exemplo, do tempo que uma célula demora a crescer.
As vacinas do Covid que não precisam de células são as vacinas à base do RNA mensageiro - da Moderna e da Pfizer -, só que estas vacinas envolvem uma complexidade e uma tecnologia que exigem vários passos também muito complexos.

Nas vacinas tradicionais, um dos pontos é lidar com o vírus. No caso das vacinas de RNA mensageiro qual é a maior dificuldade?

Nessas só temos de lidar com o vírus numa fase muito inicial para percebermos o vírus e principalmente aquelas proteínas que estão no invólucro do vírus e que se vão agarrar às nossas células para entrarem nelas. Temos de basear a nossa vacina tentando produzir essas proteínas.
No entanto, depois é preciso sintetizar muito RNA e aumentar muito uma escala de produção que até agora só existia numa escala pequena.
Nas vacinas da Pfizer e Moderna há ainda outros dois fatores complexos na produção, nomeadamente a necessidade de purificar esse RNA em processos de purificação que são igualmente complexos e depois adaptar a produção até aí feita em ensaios clínicos destinados, por exemplo, a 200 pessoas - como aqueles que fazíamos aqui na Genibet, em Oeiras - para escalas de muito maior volume destinadas a milhões de pessoas.
No fim, quando temos o RNA purificado precisamos de o encapsular em nanopartículas lipídicas e isso também é moroso e não há muita gente ou empresas treinadas para fazê-lo, o que também é um condicionante quando temos de fazer milhões de doses.
Finalmente, apenas quatro ou cinco as empresas no Mundo produzem esses lípidos e estas também têm dificuldades. Antes produziam à escala da grama e agora têm de produzir à escala do quilo...

Nas outras vacinas contra a Covid-19 que envolvem diretamente o vírus, quais são as maiores dificuldades?

No caso das vacinas de adenovírus, como as da Oxford/AstraZeneca e da Johnson & Johnson, estamos a falar de um vírus que tem de ser produzido em células. Temos de ter todos os meios de cultura em quantidade suficiente, temos de fazê-las crescer em reatores e depois infetá-las com o vírus e produzir os vírus em grande quantidade.
Estes processos que eram feitos em determinada escala de repente tiveram de ser adaptados, num aumento de escala em que nem sempre conseguimos planear o que vai acontecer pois o mais importante é garantirmos a robustez e a segurança das vacinas.
Às vezes as coisas funcionam muito bem à escala de laboratório e depois para escalas grandes não é mais do mesmo... e gostava de referir que o facto de estamos a fazer todas estas vacinas para a Covid não pode comprometer a produção de outras vacinas que nos protegem contra vírus muito perigosos.

Tem-se falado na hipótese de Portugal vir a produzir vacinas para o SARS-CoV-2. Há capacidade em Portugal para isso ou é uma realidade ainda muito distante?

A indústria farmacêutica portuguesa não tem tradição de fazer vacinas, não há essa competência, mas poderá, se quiser investir nessa área, ter todas as condições para que isso aconteça.
Agora, se me diz que é para daqui a um ou dois anos... Nós precisamos de pessoas e o capital humano é muito importante. Formar pessoas nesta área demora muito tempo pois são processos muito complexos e é preciso articulação entre indústria, institutos de investigação e desenvolvimento e universidades que têm de incluir nos currículos mais formação nesta área.
Há todas as condições desde que exista vontade e investimento. No entanto, não será para o ano, mas apenas para daqui a dois ou três ou quatro anos.

Em Portugal nunca se fizeram vacinas?

Não. Fazem-se algumas vacinas chamadas vacinas de rebanho, mais para uso veterinário, faz-se bastante investigação, nomeadamente nós, há 25 anos, no Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica, mas são escalas pequenas. Desenvolvemos os conceitos e fazemos investigação, mas a produção de vacinas nunca se fez em Portugal.

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