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"Eu trabalhava ali na apanha da amêijoa... E depois aqui, na antiga fábrica de gelo...", "Ali era onde ensaiávamos a marcha da Trafaria", "Eu era jogador da bola no Costa da Caparica. Quando me retirei, foi neste café, que me fizeram uma festa". São memórias de lugares, de momentos, de vidas. Todas se cruzam num espaço -- a freguesia da Trafaria, em Almada -- e agora vão ser cartografadas. O Projeto Re(com)figurações está a criar um "mapa afetivo" onde as fronteiras da terra são definidas pelas memórias dos habitantes.
"Começámos por pôr o mapa em cima da mesa e as pessoas começaram a colocar as suas histórias, como se fossem deposições geológicas", descreve Helena Elias, investigadora responsável pela iniciativa, levada a cabo em parceria com o projeto europeu T-Factor e pelo projeto Photo Impulse, da Universidade Nova de Lisboa, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Ouça aqui a reportagem da TSF e conheça este "mapa afetivo" que está a ser construído na Trafaria. Sonoplastia de Margarida Adão
A ideia, explica Helena, é contar, de forma criativa, a história da Trafaria e do que ela representa para quem ali vive. "Em vez de pensarmos nas fronteiras físicas, pensamos nas fronteiras emocionais, que são coisas muito mais flexíveis e, portanto, é todo esse explanar do território que está a ser construído neste mapa, através dos testemunhos" que vão fornecendo informação sobre "aspetos ambientais, aspetos sociais, aspetos de classe, racialização,...".
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Outro dos objetivos é trabalhar as dinâmicas entre várias gerações de habitantes da terra e, por isso, o projeto conta com o Centro Social da Trafaria, da Santa Casa da Misericórdia, para fazer a ligação com a população. Entre os participantes estão desde cidadãos referenciadas pelo gabinete de inserção social até aos idosos do centro de dia. É o caso de Vicenza, de 89 anos. Alentejana, do distrito de Évora, chegou à Trafaria há quase 70 anos. "No Alentejo, era só trabalho do campo e era quando havia, não se ganhava, então eu tive que me fazer à vida", nota. Por cá, arranjou emprego como "criada de servir" e um marido, por isso, por cá ficou.
No entanto, só depois de viúva começou a descobrir a Trafaria. "Ao princípio, pouco saía. O meu marido não gostava. Era da praça para casa e de casa para a praça. Depois de ficar viúva é que me tenho mexido mais um bocadinho... Já tenho mais liberdade", confessa Vicenza, que hoje gosta de ocupar os dias a fazer casaquinhos paras as bisnetas bebés gémeas.
Lucília, de 88 anos, é colega de Vicenza no centro de dia. Conta à TSF que vive na Trafaria "desde miúda". "A Trafaria era bonita era de verão, com barcos muito cheios... Mas, no inverno, estava morta. Era uma miséria. Ficávamos à espera que os pescadores viessem, a ver se traziam alguma sardinhazinha... Passávamos fome!", relata.

Lucília, de 88 anos, é uma das participantes no projeto
© Helena Elias
No "mapa afetivo" da Trafaria, Lucília identifica a antiga fábrica de explosivos, onde trabalhou durante mais de três décadas. "Eu tinha uma farda, uma farda bonita, azul; as da cozinha era uma bata assim mais feiazona,...", relembra, entre risos. Mas as memórias que guarda daquele local não têm graça. "Era um trabalho muito amargo... Volta e meia havia explosões, era um horror. Vi colegas meus morrerem."
"A gente, com um balde, enchia as granadas. Depois, os homens pintavam-nas. Uma coisa que era para rebentar e parecia que ia para uma montra. Eu fazia coisas que matavam pessoas, mas eu precisava, estava sozinha e era a única maneira de sustentar os meus três filhos", recorda com mágoa.
Apesar do trauma, Lucília consegue ainda recordar tempos de alegria, nos bailes da terra: "Eram mesmo no largo da igreja, em frente a uma mercearia grande, era aí. Aqueles bailes eram muito bons... Para o fim, já havia três bailes! Ou tudo ou nada!".
O salão de bailes, a fábrica da pólvora,... No final, todos estes lugares assinalados no "mapa afetivo" vão ser identificados no terreno, com "marcos", esculturas feitas de material reciclado, com a ajuda de uma estudante da Faculdade de Belas-Artes. Já o trabalho de serigrafia do mapa fica a cargo de associações locais.
Isabel Martins, diretora do Centro Social da Trafaria, sublinha que esta é uma forma de lembrar o passado, mas também de pensar o futuro deste território. "Nada melhor do que ouvir as pessoas que viveram aqui a maior parte da sua vida. Ensinam-nos também qual é o futuro que queremos aqui para a Trafaria."
Cruzar gerações, histórias e vidas, para construir o retrato de uma Trafaria em transformação.