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Já várias vezes tentaram mandar o "Vouguinha" dar uma curva. E temendo ainda que isso um dia possa acontecer, a segunda parte das crónicas "Próxima Estação", da TSF, tinham de começar pelas curvas que serpenteiam e atravessam cidades, vilas e aldeias entre Aveiro e Espinho. E refiro-me a curvas, porque se está à espera de fazer uma linha com retas a perder de vista, esqueça. O comboio da linha do Vouga (neste caso uma automotora da série 9630) torce-se e contorce-se entre partidas e chegadas.
O fantasma do encerramento desta linha ferroviária já assombrou o centro litoral, mais concretamente o distrito de Aveiro, algumas vezes, como por exemplo nos tempos da Troika. Agora, há promessas. A IP - Infraestruturas de Portugal - até já anunciou (em janeiro de 2021) uma remodelação de fundo, prevista para o início de 2022.
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A Infraestruturas de Portugal tem vindo a executar várias intervenções tendo em vista a reabilitação da via e reforço das condições de circulação e segurança na Linha do Vouga, que envolve um investimento global superior a 34 milhões de euros e que se prevê executar até 2025. É esperar para ver e orar para que aconteça. No entanto, nem tudo está mal, muito pelo contrário: o serviço comercial continua a ser procurado, sobretudo em pontos como a ligação Aveiro-Águeda ou Oliveira de Azeméis-Espinho, mas também seria difícil que a procura fosse muita na ligação Sernada do Vouga a Oliveira de Azeméis, em que o serviço é assegurado por táxi e apenas duas vezes por dia em cada sentido. Mas, embarquemos e vamos à viagem... na única via (que conheço) em que, para fazê-la na totalidade, temos de, pelo meio, apanhar um táxi... e não é um táxi qualquer. É um táxi que demora uma hora a percorrer os pouco mais de 20km desativados (já lá iremos).
Eram 8h35 quando, em Aveiro, entrei no Vouguinha (asseado, por dentro e por fora), num misto de expectativa e de apreensão. "Da fama não se livra" e, tirando o pequeno trajeto em Oliveira de Azeméis e São João da Madeira, que fiz em janeiro quando acompanhava a campanha de João Ferreira às presidenciais, há muitos anos que não percorria qualquer troço desta linha.
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Saiu à tabela, com uma dezena de passageiros. Eram poucos, mas quando passávamos a estação de Esgueira sentei-me ao lado de Marilda. Meti conversa e esta auxiliar de ação educativa, que usa diariamente a automotora, garantiu-me que "em tempos de escola são bem mais", com os estudantes do básico e do secundário, que vão para Aveiro ou Águeda. E mais existiam se não fossem as greves e a insegurança de faltarem às aulas. "Acho que esta linha de comboio está muito bem, por vezes não há é horários suficientes", confessa-me Marília que faz este percurso há dois anos. "As viagens são sempre assim como o senhor está a ver, poderiam ser um bocadinho mais rápidas", acrescenta.
Nesta primeira parte do trajeto que me leva até Sernada do Vouga reparo que os apeadeiros não são mais do que simbólicas "paragens de autocarro", onde se abrigam os passageiros, na maioria sem menção ao nome da localidade e sem qualquer indicação do sentido dos comboios. É o revisor que, simpaticamente, lá vai explicando aos utilizadores pontuais que "segue para Águeda... segue para Águeda". Outro aspeto que me deixou a pensar (até porque se repetiu no período da tarde na outra parte da linha) é que há passagens de nível com cancelas automáticas e depois há passagens de nível sem cancelas e sem guarda... à moda antiga, como quando não havia praticamente carros. A automotora trava a fundo, apita... volta a apitar... vai a passo e depois lá ronca de novo e acelera. Era escusado. Fica por explicar o critério... até porque em quase todas estavam carros parados à espera que passasse o Vouguinha.
Em Águeda paramos para um cruzamento com outra automotora em sentido contrário. Os poucos minutos que aqui ficamos dão para falar com alguns dos vários passageiros que ali se encontram à espera do próximo serviço. Três mulheres de três gerações (avó, mãe e filha) vão ao dia de apresentação da mais nova no Jardim de Infância. "Vamos sempre de comboio", asseguram-me. "Eu uso. É as nossas pernas", alerta-me Cremilde, a mais velha. Mas é da filha, Simone, que chega a mensagem que dá voz à população de Águeda: "houve aqui um tempo em que queriam tirá-lo e nós assinámos para isso não acontecer. As camionetas falham e este vem sempre à tabela". Para Simone, a velocidade mais reduzida não lhe interessa, só quer que não o "pintem" com graffitis. Quanto a promessas futuras, é bem simples: "Espero que mantenham o Vouguinha, senão aqui o povo faz guerra".
Este fantasma do fecho da linha que Simone traz à conversa é abordado mais tarde quando falo com Jorge Almeida, o autarca de Águeda. Porque as palavras são fortes e não quero perder pitadas aqui na intermediação, deixo-vos com a citação direta do que diz do presidente: "Desde que fui presidente de Junta de Macinhata do Vouga e que aprendi a ser perseverante na luta por esta linha, por diversas vezes enquanto autarca fui confrontado com a hipótese muito evidente de a linha ser pura e simplesmente encerrada. O que posso dizer é que alguns autarcas, que passaram noutros municípios, nunca olharam com grande interesse para a linha do Vouga. E, se não fosse esta luta, aquilo que está desativado entre Sernada e Oliveira também se teria expandido até, pelo menos, entre Águeda e Sernada. As tentativas de encerramento da linha, num passado recente, até pela própria CP, foram múltiplas".
Em relação ao traçado da ferrovia, a linha entre Águeda e Aveiro tem tido obras de manutenção. "Eu até diria que a linha nunca esteve tão bem, mas naturalmente que tem um potencial incrível para melhorar", diz Jorge Almeida, que em relação aos melhoramentos pede precaução na ousadia. "Nós defendemos a via estreita e é imperioso que se mantenha este tipo de bitola", algo que defende também o MCLV - Movimento Cívico pela Linha do Vouga, como contarei mais à frente.
Redonda para inverter marcha das locomotivas promete levar turistas a Sernada
Até agora, os muitos turistas que têm procurado os comboios históricos que a CP proporciona na linha do Vale do Vouga (ramal de Aveiro) ficam-se, sobretudo, pela estação de Macinhata (embora lhes seja dada a oportunidade de ir até Sernada do Vouga, a estação imediatamente a seguir). Isso acontece, porque Macinhata tem um Núcleo Museológico Ferroviário. Também eu desci nesta estação (mesmo não estando a fazer o comboio histórico, mas não se perde a oportunidade de conhecer um museu destes...).
À minha espera estava Pedro Marques, presidente da Junta de Freguesia local, também ele um apaixonado por comboios. Abrem-nos as portas do museu e José Matos leva-nos por histórias e memórias da linha do Vouga, material circulante, relógios, horários, utensílios vários. Tudo confinado a um espaço já interessante, mas que a autarquia de Águeda quer (e parece que vai) ampliar. Pela primeira vez, entrei numa carruagem de pagamentos aos trabalhadores ferroviários que, só em Sernada, chegaram a ser mais de 800. Estamos a falar de uma aldeia junto ao rio Vouga, onde hoje os residentes não chegam a este número. Aqui, nas oficinas, chegaram a construir-se automotoras, das quais duas estão neste espaço museológico.
Deixamos Macinhata e em poucos quilómetros, depois de atravessar a mítica ponte rodoferroviária de Sernada, estancamos junto à redonda. É a última notícia. A CP anunciou que vai colocar a funcionar, para virar as locomotivas do comboio histórico, a redonda que estava desativada desde que foram levantados os carris da linha do Vouga, entre Sernada e Viseu, depois do seu fecho definitivo em 1990. Está envelhecida, mas operacional, pois "estas coisas deterioram-se é com falta de uso", lembra Jorge Almeida, o presidente da Câmara Municipal de Águeda. Ao lado da redonda há uma casa, cedida agora pela IP, para a qual a Junta de Freguesia de Macinhata tem um projeto e candidatou a fundos comunitários, que servirá de edifício de apoio aos turistas do comboio histórico, mas também dos turistas que percorram, em bicicleta, a ecopista do Vouga, que aproveitou o canal da linha até Viseu (já existe no concelho de Sever do Vouga e vai agora avançar nos concelhos de Águeda e Albergaria-a-Velha).
Também de bicicleta se pode pedalar a partir das estações do ramal de Aveiro, no concelho de Águeda. "O projeto desenvolveu-se ao longo da linha e em todos os apeadeiros temos uma box de bicicletas elétricas que queiram chegar de comboio e depois ir a outro sítio de bicicleta elétrica", explica o autarca.
Jorge Almeida diz-se "apaixonado pelo património" e, por isso, acha que cada um deve olhar para as singularidades do território e, no caso de Águeda, a linha de bitola métrica é uma oportunidade. "Quem tem noção do que é isto dos comboios históricos percebe que temos aqui uma perfeita joia", refere, acrescentando que a aposta nesta indústria turística é para continuar.
A estação de Sernada do Vouga, para um amante de comboios é um encanto: via estreita, tem ainda oficinas em funcionamento (os as automotoras fazem reparações e manutenção de primeiro nível), assiste-se ao abastecimento dos comboios, e no edifício da antiga estação funciona um bar-restaurante, com pratos diários, petiscos e refrescos numa esplanada com vista para as várias vias da estação. Duas irmãs gerem o espaço e sonham com a chegada de mais turistas quando as locomotivas a vapor começarem a girar na redonda. "Isto é uma loucura quando há o comboio histórico. São centenas de pessoas aqui só para tirar fotografias. Devia era chegar até aqui e não ficar em Macinhata", desabafa uma delas, enquanto estou sentado à mesa com Pedro Marques, que é um anfitrião de mão cheia.
Estou de comboio, por isso não posso ir onde o comboio já não vai, mas o Pedro Marques convidou-me a entrar no seu carro e a percorrer alguns quilómetros do troço da linha desativado em direção a Viseu (fomos até Pessegueiro do Vouga). Os meus olhos ainda estão colados na ponte do Poço de Santiago. É qualquer coisa. Impossível não imaginar uma locomotiva a vapor a atravessá-la... impossível não imaginar o quanto pensámos tão pequeno quando desativámos estes quilómetros. Afinal de contas, hoje teríamos o comboio turístico a percorrer a parte mais bonita da linha, a molhar os pés no Vouga.
De táxi, mas não é sempre
Voltamos à parte desativada da linha do Vouga, entre Sernada e Oliveira de Azeméis. A CP assegura, desde 2013, transbordo aos passageiros, de táxi. Contudo, há dez comboios a chegar a Sernada diariamente e apenas dois transbordos, sendo que o primeiro, às seis da manhã não apanha qualquer passageiro precedente de Aveiro porque comboio antes não há. Ou seja, todos os passageiros dos comboios da manhã que queiram seguir viagem têm de esperar até às 14h43.
Acontece o mesmo no sentido oposto. Há oito comboios diários a chegar a Oliveira de Azeméis vindos de Espinho-Vouga, mas apenas duas ligações por táxi a Sernada. E acredito que, muitas vezes, nem haja passageiros para as viagens, porque não é convidativa. O tempo de viagem para fazer 21km demora entre 1h05 e 1h12.
Quando chego a Oliveira de Azeméis tenho à minha espera Vítor Gomes, do MCLV. "Queremos o troço entre Espinho e Aveiro totalmente renovado, mas em bitola estreita e ponto final, não vale a pena quererem transformar a linha do Vouga e optar por bitola ibérica. Em termos de manutenção, a bitola métrica é mais barata, com custos de manutenção mais baixos", assegura.
Vamos até ao final da estação local para ver a "fronteira" entre a parte operacional e a parte desativada. Assim que entramos no troço desativado, as travessas surgem carcomidas pelo tempo, a cor muda, a vegetação "come" a linha (muito embora não faltem ervas na via operacional). O mau estado da via é de tal ordem que, conta-me Vítor Gomes, "as automotoras quando vão às oficinas a Sernada sofrem descarrilamentos". Na verdade, na viagem de carro no percurso desativado, na parte em que na Branca a linha vai paralela à N1, vi placas que indicam aos maquinistas que devem ir a 5km/h. Leram bem 5km/h. Eu adoro correr trails e normalmente corro a 10 ou 11km/h, o dobro da velocidade que uma automotora pode percorrer algumas partes desta linha.
Os entraves podiam até ficar por aqui, mas não ficam. Na conversa com este elemento do MCLV lembramos que, noutros tempos, os passageiros do Vouguinha tinham direito a fazer o transbordo com os comboios da linha do Norte, diretamente na estação de Espinho. Podia ainda ser assim, não era? Só que não... quando fizeram as obras para colocar a linha do Norte subterrânea na zona da estação de Espinho não inseriram a linha do Vouga no projeto e cortaram esta ferrovia, deixando-a a uns (talvez... que não os contei) 500 metros da outra estação. Que se fazem? Isso, a pé! Estamos no verão, estava sol e calor bom.
O que mais me surpreendeu foi a quantidade de pessoas que estavam à espera de entrar para regressar a casa, vindas da praia. Aliás, dois revisores da CP, à entrada da estação (espera... acho que não podemos chamar àquilo uma estação... vejam as fotos e depois digam-me o que acham...), à entrada do edifício em ruínas que se despenha gradualmente (assim é mais condizente com o que lá está) improvisaram uma bilheteira, para conseguir, antes que a automotora parta, cobrar bilhete a toda a gente. Nada contra, atenção. Em Portugal, "a tropa manda desenrascar" e assim é mais fácil que não se perca dinheiro... só que não devia ser assim. Imaginem o que ficarão os estrangeiros que por ali passam a pensar de nós? Maravilhas, pois claro! Vítor Gomes já me tinha avisado uns minutos antes: "olhe que, agora no verão há uma procura louca nos primeiros comboios da manhã e nos últimos da tarde e os operadores de revisão não têm mãos para controlar tanta gente e aqui perde-se algum dinheiro".
Gente para andar de comboio existe. Venham daí os investimentos, que o Vouguinha agradece. Ou serão só promessas?