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Não é todos os dias que se vê 7 ex-candidatos presidenciais, políticos, ex-governantes e académicos a subscrever um mesmo apelo, mas aconteceu: tornar as vacinas contra a Covid-19 num "bem de interesse comum". A iniciativa partiu de José Aranda da Silva, ex-presidente do Infarmed e fundador da Agência Europeia do Medicamento, que diz à TSF que sentiu a obrigação de "pressionar" António Costa "para que seja mais ativo na resolução desse problema".
A missiva que junta Ana Gomes, Manuel Alegre, Francisco Louçã e Maria de Belém, entre muitos outros, sublinha que "é agora o momento certo para que as vacinas sejam consideradas como um bem de interesse comum, cuja produção tem de ser controlada e alargada utilizando todos os processos para que a população seja rapidamente vacinada até ao verão".
Com passado militar, Aranda da Silva recorre às metáforas bélicas para descrever o momento que o mundo atravessa - uma guerra - e, quanto tal acontece, "para combater o inimigo, mobilizam-se as tropas, soldados, fábricas, transportes".
"Nós hoje estamos numa catástrofe que é uma guerra. Já morreu mais gente com Covid do que na nossa guerra colonial. O presidente Biden dizia, há dias, que já morreram mais norte-americanos com Covid do que na guerra do Vietname e nas duas guerras mundiais, e nós não estamos a usar as armas que temos disponíveis para combater esta catástrofe: as vacinas", diz à TSF.
É por isso que lança este apelo: "perante a catástrofe que estamos a viver, as vacinas devem ser consideradas como bem comum de utilidade pública".
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Desde logo, sublinha que é "preciso tomar medidas legais" que estão previstas na legislação comunitária e também nos Estados Unidos e que "permitem não deixar que as vacinas entrem na lei da oferta e procura como qualquer bem intangível e sejam tratadas como bem de interesse público".
"É esse o meu grande objetivo, não é fácil, é uma proposta que exige grande coragem política", reconhece o também ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos sublinhando que "tem de se fazer um levantamento exaustivo da capacidade produtiva que existe na Europa, as economias de escala que podem ser feitas, fazer parcerias regionais de maneira a que a capacidade produtiva não esteja dependente do jogo económico das companhias, mas esteja dependente do interesse nacional".
E numa altura em que Portugal está no centro das decisões europeias, Aranda da Silva sentiu uma necessidade ainda maior. Além de considerar que a Comissão Europeia mostrou que "está capturada por interesses que não são legítimos", Portugal pode ter um papel chave por estar a presidir ao Conselho da União Europeia. "Sinto-me na obrigação, como cidadão português, de pressionar o primeiro-ministro para que seja mais ativo na resolução desse problema", nota à TSF.
Bem conhecedor da indústria, Aranda da Silva sublinha que tem havido "situações que são pouco sérias", nomeadamente as empresas detentoras das vacinas dizerem que "é muito complicado fazer vacinas".
"O mais complicado foi o que se fez até agora: fazer dezenas de milhares de ensaios clínicos em vários países, avaliar com muita rapidez pelos reguladores e indústria farmacêutica e investir muitos biliões de euros e dólares. O mais difícil não é produzir, não enganem as pessoas. Produzir é complicado, produzir medicamentos biológicos não é fácil, mas não é tão complicado como o que se fez até hoje", aponta o farmacêutico.
Ao olhar para a lista de subscritores, é notória a presença de mais personalidades identificadas tradicionalmente no espetro político da esquerda, mas Aranda da Silva vinca que este assunto extravasa direita e esquerda. "Aqui não há questões ideológicas. Não venham com questões ideológicas, isso é criminoso. O que está em causa é travar uma pandemia que provoca mortos", conclui.
Aranda da Silva pretende que este apelo, transcrito abaixo, vá o mais longe possível nas instâncias internacionais e conta com o apoio de várias personalidades portuguesas como Maria de Belém, Ana Gomes, Marisa Matias, João Ferreira, Francisco Louçã, Manuel Alegre, Ana Jorge, D. Januário Torgal Ferreira, Constantino Sakellarides ou Eduardo Paz Ferreira.
Leia aqui o texto na íntegra:
Vacinas: Um bem comum
No último ano, como consequência da pandemia de Covid-19, morreram quase três milhões de pessoas e o mundo mergulhou numa grave crise económica e social que atirou milhões de indivíduos para o desemprego e a miséria. A situação é de catástrofe.
Controlar a pandemia e as suas consequências implica, para além das consensuais medidas de contenção da infeção, a mobilização de apoio social aos mais afetados pela crise e a utilização em massa das vacinas contra a Covid-19.
Em Fevereiro último, o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas António Guterres lançou um apelo: "o mundo precisa urgentemente de um Plano Global de Vacinação, que reúna todos aqueles com energia, conhecimento científico e capacidade produtiva e financeira necessárias."
As vacinas, instrumento indispensável no combate global à pandemia, transformaram-se num bem de interesse público. Como tal, não podem estar sujeitas às leis de mercado da oferta e da procura.
Foi possível ter vacinas disponíveis num prazo excecionalmente curto. Isso deveu-se, no caso das vacinas hoje aprovadas pela Agência Europeia dos Medicamentos, ao investimento público efetuado na Europa e nos Estados Unidos. Esse investimento assegurou que companhias produtoras beneficiassem de condições extraordinárias para a investigação e a produção das vacinas. Também a existência de linhas de investigação então já em curso em países como a Alemanha, Portugal e o Reino Unido permitiram acelerar o processo de investigação e desenvolvimento e ganhar tempo.
As autoridades públicas reguladoras que garantem aos cidadãos a eficácia e segurança dos medicamentos puseram em prática novos procedimentos e mobilizaram enormes recursos científicos que, sem prejuízo dessa mesma eficácia e segurança, permitiram a avaliação das vacinas em tempo recorde.
Conseguiu-se o mais difícil: conduzir o processo de investigação e de realização de ensaios clínicos com centenas de milhares de indivíduos, nos vários continentes, até à aprovação por parte das autoridades reguladoras.
A produção e distribuição de vacinas é um processo complexo, mas muito mais simples do que as fases anteriores.
Existem na Europa cerca de oitenta fábricas de vacinas e, de acordo com sítio na internet vaccineseurope.eu, que agrupa diversos produtores de vacinas, em 2019 eram aqui produzidas para o mercado mundial 76% das vacinas (13% eram produzidas nos Estados Unidos, 8% na Ásia e 3% no resto do mundo).
Perante estes dados, é incompreensível a falta de vacinas hoje observadas em Portugal e na Europa, que colocaram os cidadãos europeus em situação de subalternidade em relação aos produtores de vacinas.
Os argumentos avançados pela Comissão Europeia relativamente à natureza dos contratos, à capacidade de produção existente e aos preços acordados não são aceitáveis.
É indispensável que a Comissão Europeia seja capaz de demonstrar cabalmente e definitivamente a sua capacidade de superar os interesses financeiros e industriais, sob a proteção de Estados-membros mais influentes, a favor do bem-estar das populações europeias.
Numa altura em que a presidência rotativa da União Europeia incumbe a Portugal, é urgente que os cidadãos portugueses tomem uma posição firme sobre uma matéria tão significativa para o presente e futuro dos europeus.
Em casos tipificados como de "catástrofe", a legislação europeia e nacional permite que os Estados-membros invoquem "motivos de interesse público" e de "primordial importância para a saúde pública ou para a defesa nacional" para adotarem medidas que obriguem à produção de vacinas em locais que não sejam as fábricas detentoras da patente.
O Diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde dizia no passado mês de fevereiro "que perante a situação de catástrofe devíamos usar todas as ferramentas para aumentar a produção, incluindo o licenciamento e a transferência de tecnologia e isenções de propriedade industrial. Se não é agora é quando?".
Nos últimos anos, os Estados Unidos utilizaram várias vezes essa prerrogativa.
Perante a catástrofe que estamos a viver, e perante a trágica insuficiência da resposta europeia, os cidadãos apelam a que sejam tomadas, com urgência, medidas capazes de proteger a saúde das populações. Essas medidas exigem a partilha transparente de informação, a utilização de legislação que foi prevista para situações de catástrofe e a mobilização de recursos e capacidades produtivas.
É agora a altura para a Comissão Europeia publicar os locais de produção de vacinas existentes na União, dando a conhecer a sua capacidade produtiva, o número de vacinas produzidas desde Novembro de 2020 e o seu destino.
É agora a altura para invocar a legislação europeia sobre propriedade industrial para permitir a produção em fábricas de diversos laboratórios que estão disponíveis, em vários Estados-membros.
É agora o momento certo para que as vacinas sejam consideradas como um bem de interesse comum, cuja produção tem de ser controlada e alargada utilizando todos os processos para que a população seja rapidamente vacinada até ao verão.