"Não és homem, não és nada." A frase, repetida até à exaustão, porque se gosta de pintar os olhos, porque se rejeita o futebol ou as brincadeiras de lutas, porque não se é um corajoso temerário, vem acompanhada de muitas outras ideias enraizadas, desde o começo da formação. Tiago Rolino ataca logo a ideia. Tudo isto é verdade, mas não se sente nem "coitadinho" nem "vitimizado".
É um homem europeu, branco, heterossexual e cisgénero que se reconhece no topo da hierarquia do privilégio. O investigador do Centro de Estudos Sociais na Universidade de Coimbra, outrora advogado, reconhece, no entanto, que a desconstrução dos padrões de género surgiu-lhe por querer contrariar o "sistemas de caixinhas em que todos somos colocados". Um "sistema" que considera "menos homem" quem desafia a norma.
"O que é difícil para os homens é sair um bocadinho dessa caixa, querermos ter comportamentos que não são tipicamente masculinos, mas isso é difícil por causa dos outros homens. Os homens não são vitimizados, e, se são, é por causa dos outros homens."
As masculinidades mais rígidas, tradicionais, hegemónicas ou até "tóxicas" continuam a empurrar os homens para situações de limite: "Os homens morrem mais, não só porque são mais assassinados, mas também porque morrem mais em acidentes de trânsito, morrem mais em consequência do abuso de álcool e de outras substâncias, por comportamentos de risco, por falta de autocuidado, por suicídio."
Tatiana Moura, também investigadora no Centro de Estudos Sociais na Universidade de Coimbra e há anos envolvida com as questões de género, reconhece que, apesar de a desigualdade de género depositar o peso nas mulheres, há consequências que inevitavelmente têm atingido também os homens. "A desigualdade de género tem uma série de consequências. Uma delas é a discriminação das mulheres, é uma das mais óbvias, sendo a violência doméstica e o feminicídio, por parte dos seus parceiros ou ex-parceiros íntimos, duas formas mais extremas."
"Mas termos um sistema que é patriarcal e que atribui a mulheres e a homens determinados papéis sociais tem impacto tanto para mulheres como para homens", acrescenta. Tatiana Moura, especialista em masculinidades e violência, alerta: os papéis sociais levados ao extremo resultam em números dramáticos. Nota como num país como o Brasil, em que a liderança política não tem pudor em associar-se a valores misóginos, a violência tem aumentado. Mas a tendência de maior envolvimento do género masculino no crime e em comportamentos de risco é global. "Normalmente os homens são assassinados por pessoas que não conhecem na esfera pública, mas são também quem mais mata. Os homens são quem mais mata e quem mais morre em resultado de um sistema desigual que atribui ao homem o lugar do ser racional, do provedor, do que não pode demonstrar emoções, do que tem que mostrar que é forte..."
O machismo é um dos temas mais trabalhados por Clara Silva, a artista mais conhecida por Clara Não. Não aos estereótipos, não à desigualdade de género, racial, socioeconómica, não ao patriarcado. A artista de 27 anos lamenta ter ainda de pôr o dedo na ferida, e que os homens não sintam que o podem fazer, devido a um pacto social silencioso, e a uma uma masculinidade "muito fechada em si".
"A questão da masculinidade tóxica é um ciclo vicioso, porque muitas vezes os homens reclamam com as feministas por elas não falarem o suficiente sobre masculinidade tóxica, mas eles também não falam. Eles querem que nós falemos mas depois não falam porque a masculinidade tóxica não lhes permite que falem sobre os seus sentimentos."
Em consequência de trabalhos divulgados nas redes sociais, com frases e desenhos que contrariam ideias feitas da sociedade que habita, Clara Não consegue sentir o embate do machismo e da masculinidade tradicional. "Uns senhores - vamos dizer assim - diziam que as mulheres também estavam a pedi-las. Isto parece sempre uma coisa muito distante mas há muita gente jovem a pensar assim, maioritariamente homens, mas também mulheres. Vêm com aquela frase: 'Se queres respeito tens de te dar ao respeito.' Eu odeio, odeio de morte esta frase."
Além de trazer à luz do dia a existência de "chats entre homens, chats de masculinidade tóxica", Clara Não salienta que há, continua a existir, um machismo enraizado entre os mais jovens, que se evidencia sempre que a autora das obras recebe mensagens ofensivas. A artista tem procurado ao longo dos anos informar-se cada vez mais sobre os temas que trata. Na literatura sobre feminismo, encontrou o bastião e um reduto com que se escuda para poder transmitir conhecimento. Nos livros mais clássicos e nos mais recentes, Clara Não encontrou muitas explicações para o fenómeno. "O Estado Novo criou associações de mulheres para impor os valores de família às mulheres, para instituir valores patriarcais, ideais machistas. Esta monstruosidade passou de avós para filhas e para netas, está também enraizada nas mulheres. Enquanto as mulheres estavam a ser oprimidas pelos homens e por si mesmas, os homens faziam o que bem lhes apetecia."
Tatiana Moura, que também desenvolve projetos na área da paternidade e do cuidado, admite que é premente "desconstruir um conjunto de estereótipos de género" desde cedo, até porque uma "sociedade mais igualitária em termos de género beneficia homens e mulheres".
Um dos pontos que a investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra defende é o desenvolvimento da capacidade cuidadora do homem, um papel que ainda é atribuído maioritariamente às mulheres, para vantagem do género masculino. "Se atribuíssemos um valor económico - e há estudos que atribuem esse valor económico - a esse cuidado, e se esse cuidado fosse remunerado, não havia sistema capitalista que resistisse, não é? São precisas formas de trabalho voluntárias não pagas e informais para que a máquina continue a andar. Há muito trabalho que tem de ser feito para que os homens possam progredir nas suas carreiras."
À mulher, o lar. Ao homem, o sucesso. Apesar de ser cada vez mais uma ideia ultrapassada, a masculinidade tóxica continua a pressionar mulheres e homens contra a espada e a parede. Tiago Rolino repara como os homens crescem com outras expectativas sobre as suas cabeças. "Se não soubermos arrumar a casa, também não faz mal porque somos homens", confessa o investigador.
"O homem cuidador e pai, que está a dar um passo em frente para a igualdade, é visto pela sociedade como uma pessoa especial. As mulheres sempre o fizeram e nunca receberam uma palavra especial." À conversa com a TSF, a existência de "caixinhas sociais" de arrumar pessoas, mas com propensão para a bagunça de ideias, volta sempre a surgir.
Tiago Rolino é hoje mais consciente da liberdade que a masculinidade pode adotar, mas, enquanto homem, não nega o universo masculino ainda é reticente a outras formas de se expressar, por receio do julgamento social. "Torna-se complicado para os outros homens aceitarem que somos assim e que é possível ser assim, contraporem-se com a sua própria masculinidade. São os outros rapazes que te puxam um bocado para aí e que te fazem lembrar que tu não podes perder os privilégios como homem."
"Esta pressão que os rapazes recebem dos outros rapazes, para adotarem os comportamentos típicos masculinos, torna-os, não vítimas nem coitadinhos, mas alvo de consequências, que também sofrem", sustenta. Aos que choram e se entregam à vulnerabilidade humana, ainda são atribuídas caracterizações como "menos homens, meninas, ou então ligados à homossexualidade".
Desigualdade de género
Os modelos tradicionais de masculinidade contribuem para a discriminação e estigmatização de mulheres. Joana Topa, investigadora do departamento de Ciências Sociais e do Comportamento no ISMAI, nota como o machismo se manifesta além dos piropos lançados na rua. A autora de estudos sobre a desigualdade e os impactos nas mulheres estrangeiras ouviu discursos "daquilo que é este afastamento, nomeadamente mulheres a dizerem 'quando eu vim para Portugal, disseram-me para ter cuidado, porque havia muito a ideia da mulher brasileira como prostituta, como trabalhadora sexual', ao que respondiam 'mas isso são outras mulheres, eu não encaixo nesse estereótipo'". Joana Topa fala de uma aluna de pós-graduação na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, que, mal chegou a Portugal, sentiu-se inserida na mesma ideia preconcebida que à partida rejeitara, por não se identificar com ela.
Ainda que à partida se negue, os preconceitos acabam por ser revelados quando a conversa se aprofunda, revela Joana Topa. "Tentamos sempre fugir da discriminação. Uma das perguntas iniciais do meu guião de entrevista era se já se tinham sentido discriminadas em Portugal, e a maior parte das pessoas diziam 'não', mas, depois, no decurso da conversa, percebe-se que houve inúmeras discriminações por que a pessoa passou."
A investigadora garante que o ser humano "foge" de se sentir discriminado. "Toda a gente quer pertencer ao sistema, ninguém quer estar na margem, mas as mulheres continuam a barrar nestes 'ismos' e nestes sistemas de opressão", fundamenta.
Clara Não também não hesita: "Somos todas vítimas, quer tenhamos consciência ou não, de alguma forma de sexismo. Acho que já todas nós ouvimos um piropo na rua."
Com a arte que cria, Clara Silva quer um dia poder deixar de falar de desigualdade, o dia em que o tema esteja datado. "O feminismo só faz mal aos racistas, xenófobos e machistas. Faz bem a toda a gente, porque o torna o mundo mais justo", posiciona-se. O objetivo é que "as pessoas se tornem conscientes do machismo enraizado, do positivismo tóxico e de como vivemos no 'poderia ser pior', em vez de no 'poderia ser melhor'".
"Esta máquina do patriarcado foi muito bem feita. A máquina que pretende a supremacia masculina foi muito bem feita. Para saber como desconstróis tens de saber como construíste."
A investigadora Tatiana Moura lembra que o fardo do combate à desigualdade de género tem recaído sobre as mulheres, quer para conquistar o seu lugar na esfera de trabalho formal, como para "conquistar os seus direitos a pulso, desde os anos 1960, nos movimentos feministas internacionais". Os homens podem ser aliados, mas, para isso, têm de estar dispostos a abdicar dos seus privilégios, reforça. "Incluir os homens nesta luta não significa que eles ocupem o papel de mulheres que estão no campo da luta feminista há muitos anos. As vozes das mulheres sempre foram silenciadas e invisibilizadas, e os receios são legítimos, mas é um princípio que temos de assumir: os homens estão enquanto aliados, não para substituir as mulheres."
Tiago Rolino concorda e quer fazer parte da mudança. "É muito importante que os homens primeiro reconheçam o seu lugar de privilégio. E obviamente que não o reconhecendo, como não o reconhecem, porque não são educados para isso, não sabem que o têm, e torna-se muito fácil ser homem. O que eu tenho de fazer é usar esse privilégio, que tenho, e utilizá-lo para falar com outros homens e para que, em conjunto, possamos ter atitudes que sejam diferentes e igualitárias."