Porto-Campanhã > Contumil > Guifões. Mochila às costas, bilhetes na mão, sentidos apurados, gravador preparado e embarcamos uma semana para uma viagem (inesquecível) de comboio. À janela, observamos o melhor e o pior das linhas de comboio portuguesas. Acertamos agulhas e tentamos perceber qual a "Próxima Estação" para a ferrovia nacional: o que vai evoluir o país com o plano ferroviário para 2030 e o que deixou para trás.
É final da manhã quando chego a Porto-Campanhã. À minha espera tenho, como combinado o José Carlos Barbosa, diretor de manutenção e engenharia da CP. Fazemos espera e entramos no regional em direção a Marco de Canaveses para sairmos em Contumil.
Assim que saímos, à nossa frente está parado o MiraDouro, o comboio que tem feito as "delícias" de quem quer apreciar o Alto Douro Vinhateiro, património mundial da humanidade. Quando saímos, desperto com um cheiro que me lembra a infância e das brincadeiras "estúpidas" que fazíamos junto à linha da Beira Alta, como colocar uma moeda de 20 escudos e esperar que o comboio a espalmasse. O cheiro de que me lembro é o da creolina. E a verdade é que me faltou nestas andanças, fruto do melhoramento das nossas vias, da evolução e do progresso.
Antes de subirmos ao topo do edifício de vidro da CP em Contumil, José Carlos Barbosa faz as honras da casa e leva-me ao "cérebro" das operações: é o posto de controlo e de ocorrências da CP, onde se fazem o registo de vandalismos, avarias, trocas de material ou gestão de carruagens. E, assim que chegamos, o técnico reporta algo que nunca pensei que ainda existisse em pleno século XXI: o apedrejamento de um comboio. Fico de tal forma estupefacto que esta incivilidade ainda aconteça que, perante o espanto, é-me apresentado o contexto: "perto das escolas continua a existir. A canalha não tem noção". Não tem mesmo... Aqui, a circulação é acompanhada em tempo real de Coimbra-B para cima, e incluindo a linha da Beira Alta.
Continuamos a subir até uma antiga torre de controlo, que estava desativada, e que foi reconvertida em escritório. É daqui que saem muitas ideias para o plano de recuperação do material circulante, desta torre envidraçada com vista para as dezenas de linhas que marcam a paisagem em Contumil. José Carlos Barbosa fala-me da aposta da CP na reconversão de material que estava encostado e abandonado e que davam uma "imagem de desleixo". Por exemplo, as carruagens napolitanas estavam paradas na estação do Tua, em estado de sucata, e era o postal que o turista levava e fotografava. "Essa não pode ser a nossa imagem", reage. Por isso, foi criada uma equipa de reparação de comboios históricos, uma vez que "o turismo ferroviário tem potencial em toda a Europa", as reparações representam custos relativamente baixos quando comparados a uma nova compra e sobretudo porque "a mão-de-obra já existia" e vai ser material "injetado na rede" que estava subnutrida de composições. Começa, por isso, passo a passo, a engordar. Duas das quatro napolitanas foram recuperadas e têm feito os comboios históricos da linha do Vouga. As outras duas estão em fase de recuperação, logo ali ao lado da locomotiva a vapor da Câmara de Ermesinde, quase pronta para devolver ao município, que a vai colocar em exposição, de cara lavada.
A aposta na recuperação destes comboios históricos é intermitente, ou seja, serve para aproveitar momentos de quebra nas oficinas, entre aquilo que são as reparações mais importantes, regulares e prioritárias do material circulante. As oficinas simplesmente não param: prestam serviços aos comboios históricos da CP ou mesmo trabalhos externos, como é o caso desta locomotiva. Porquê esta nova visão? "Os comboios históricos do Douro e do Vouguinha saíram sempre esgotados e muitos estrangeiros procuram a CP só pela oferta deste serviço". Apercebo-me que há grupos de estrangeiros a querer fretar comboios históricos da CP para tirarem fotografias. Estão em negociações. E mais houvesse para mais serviços. Neste momento, o serviço, durante o verão, por causa do perigo dos incêndios, pode ser assegurado por uma locomotiva Alsthom (vinda da linha do Tua), igual àquelas que foram vendidas para Madagáscar (lembram-se?). Felizmente há um segundo exemplar que está a ser reparado e que será colocado ao serviço para que possa existir alguma rotação entre ambas. E os comboios históricos têm fomentado a utilização dos comboios convencionais, pois quem vem até Aveiro para fazer o percurso histórico do Vouguinha, vem de IC ou de Alfa.
Na calha está também a recuperação de três carruagens Sorefame (produto nacional) para colocar na linha do Douro. Além da recuperação, vão ser adaptadas, retirando-lhe cerca de metade dos bancos, para colocar espaço para bicicletas. O Douro em comboio e bicicleta... Pode resultar...
Comecei por descrever o que vejo na mais pequena oficina de Contumil, a do material histórico (onde já esteve enfiado o trabalho da gigante oficina de Guifões... Já lá iremos), mas, na verdade, a minha visita começou pela oficina de manutenção dos comboios urbanos e regionais. As portas estavam abertas, mesmo em dia de feriado de São João, e reinava o amarelo, até porque aqui se fazem trabalhos de reparação e manutenção das UME 3400 (serviço urbano do Grande Porto) e às UTD, as apelidadas de "camelas". Para estas, como desenvolvi na crónica de ontem, já existe a reaberta oficina da Figueira da Foz, mas aqui fazem-se ainda trabalhos mais profundos.
Deambulamos pela oficina, tiro fotografias, subimos a esta ou àquela máquina, e não há como reparar que José Carlos Barbosa trata todos por tu e pelo primeiro nome. Não há quem connosco se cruze que não o conheça, mas mais importante que isso é que ele os conhece a todos. É um filho da casa. Ali criado, nas oficinas, depois de ter passado pela formação na Fernave.
E aqui permitam-me um parêntesis, mas tem de ser. Formação que era específica e direcionada para as necessidades da empresa e que fechou. Fechou porque o aluguer que a CP pagava à IP pelo centro de formação era exagerado e fechou. A nova mão-de-obra vem de fora, é enquadrada nos quadros da empresa, mas depois o tempo de aprendizagem é inevitável. Depois, há o segundo entrave. O profissional chega sem conhecimentos específicos de ferrovia, mas dois ou três anos depois ou gosta muito deste muito ou sai para quem lhe pague melhor. Problemas para os quais a CP tenta agora encontrar soluções, apostando de novo na formação.
"Isto é feito pelos comboios e pelo amor ao país"
Entre duas naves das oficinas de Contumil cruzo-me com um grupo de funcionários regressados da hora de almoço. Hermano Mota, Carlos Machado e Vitorino Ferraz são os mais faladores. Os outros, talvez por serem mais novos, tudo jovens que entraram já a partir de 2018 assistem ao "jogo" na bancada. Pergunto-lhes, em jeito de provocação se notam a diferença. Hermano, levanta a voz e repete a pergunta para ver se percebeu bem. "Se noto a diferença? Ui... Isso nem se fala". E depois, não houve frenagem que os contivesse. Era ao despique e eu a tentar agarrar tudo na memória para partilhar convosco. "No tempo do Passos Coelho, havia aí gente que trabalhava dois ou três anos e depois mandavam-nos embora". Contam-me que "isto agora é feito pelos comboios e pelo amor ao país". Hermano, por exemplo, garante que está na empresa há 40 anos e sente que agora não vai deixar "ninguém na mão".
Tenho de vos contar (ou de lembrar) que foram estas pessoas, com esta garra, que hoje têm serviço à espera de entrar na oficina e que não param, a quem, entre 2011 e 2017, lhes tiraram o passe gratuito que a CP tinha há décadas destinado aos funcionários. "Estiveram aí duas doutoras, que vieram cá e que queriam saber onde eu morava e para me dizer, com quase 40 anos de serviço que me vinham tirar o passe. Eu nem as deixei falar. Eu sou ferroviário e tenho direito a um passe da CP. Queriam dar-me o passe daqui até casa e nada mais". Foi assim que os trataram durante anos. Não escondem a desmotivação, o definhar da empresa e as saudades que tinham dos tempos idos em que tudo funcionava a todo o vapor e que só agora recentemente se repete. É mais difícil erguer tijolo a tijolo uma casa destruída, por vezes até mais difícil que construir de novo. Ao meu lado, José Carlos Barbosa começa a fazer contas: "queriam dar-lhes 50 euros de subsídio, que se multiplicarmos pelo número de trabalhadores daria qualquer coisa como meio milhão de euros por mês. E isto tudo quando os comboios já circulam, ou seja, ninguém ia colocar na linha comboios só para servir os trabalhadores". É daquelas coisas que, de facto, nos deixam a pensar... Era gastar mais dinheiro e ferir o orgulho de trabalhadores com dezenas de anos de casa. Depois, Carlos Machado acrescenta que, "ainda por cima", o passe foi uma conquista de lutas dos trabalhadores nos anos 70 e 80, "que abdicaram de aumentos salariais, em troca de passes para eles e para as famílias". Quase em coro dizem-me que foi "inadmissível. Foi uma época muito má. Foi um período mau demais".
E, desta altura, lembram-se ainda com amargura dos momentos que viveram, ao chegarem, pela manhã às oficinas, e não terem trabalho para fazer. Ao que a CP chegou. "Eu chegar de manhã, olhar e dizer: o que é que eu vou fazer? Cuidado com isso... Cuidado com isso... É doloroso... Nós não tínhamos trabalho", desabafa.
Foi difícil deixá-los para trás. Já trabalhavam os motores da velhinha e forte 1408, na qual estão a instalar ar condicionado, para maior conforto dos maquinistas da linha do Douro, quando Hermano Mota volta à carga, me aborda e diz: "Você escreva aí." (E estou a escrever, senhor Hermano... Estou a escrever...) "Este senhor engenheiro José Carlos Barbosa é uma ótima pessoa e é um ótimo técnico de produção, de vida, de ferroviário, é dos meus. Temos de defender o que é nosso, os comboios e o país."
O tempo aperta-se, temos de ir para Guifões, e não há na linha que une os dois centros oficinais serviço de passageiros, por isso, temos de ir de carro. Mas antes de Guifões, a história do Luís Melo, um jovem técnico de instalações elétricas. Vem, todos os dias, de Caíde. "Ainda é um bocadinho", mas chegou a fazê-lo mesmo de muletas quando partiu um pé e não se arrepende do esforço porque "é trabalhar para o país e para os portugueses e estrangeiros que nos visitam". Nasceu em família de ferroviários, chegou para estagiar há quatro anos "sozinho e à nora", mas depressa se apaixonou pelo trabalho, que até tem o seu "que lhe diga", sobretudo pela "responsabilidade que é de garantir a segurança de quem vai circular nos comboios".
Cheira a vida em Guifões e o "Rossio conseguiu sair da Betesga"
O fecho das oficinas de Guifões foi mais uma, das muitas, machadadas que a CP e a ferrovia nacional levaram na primeira década do milénio. Tem 13 linhas ativas de manutenção profunda e "mais houvesse", como me diz o diretor Manuel António Pereira.
Foram reabertas a 15 de janeiro de 2020, já pelo atual ministro Pedro Nuno Santos. A decisão de fechá-las, no anterior governo, surgiu porque a renda da utilização das instalações que a CP pagava à IP era extremamente elevada. Muitos de vocês saberão, mas nunca será demais relembrar, até com umas pitadas de ironia: a CP, logo ESTADO, pagava uma renda exorbitante pelas instalações à IP, logo ESTADO. Duas empresas, debaixo da mesma tutela, em que uma é obrigada a fechar uma oficina extremamente essencial à manutenção e circulação dos nossos comboios, porque tem de pagar demais à outra. É como se tivéssemos dinheiro em dois bolsos das calças, mas cosêssemos um dos bolsos para meter o dinheiro todo no outro: nesse caso, diriam: que atitude parva se o bolso estava bom e funcionava... É isso... Basta fazer a analogia.
Hoje estão reabertas e reforçam (de que maneira) a manutenção e reabilitação de composições. Impõe-se uma pergunta: como faziam antes, em todo aquele período em que estiveram fechadas? Já ouviram falar naquele ditado em que tentamos "enfiar o Rossio na rua da Betesga"? Pois bem... Foi o que aconteceu. Neste período, a enorme oficina de Guifões foi "enfiada" e executou trabalhos "num cantinho" (palavras minhas) que existe em Contumil, com apenas três linhas. Resultado? Acho que não precisa de explicações, mas ainda assim digo-vos que houve quem batesse com a porta por frustração, quem pedisse reformas antecipadas e, claro, quem também se tivesse conformado.
Com Manuel Pereira subimos a uma varanda onde temos vista privilegiada para toda a produção da oficina: assistimos à recuperação e intervenção do material circulante, sendo que a especialização deste posto é motores a diesel e rebocados (carruagens). E à frente dos meus olhos tenho uma 450, uma 9630 da linha do Vouga, 2 carruagens arco (daquelas que foram compradas a Espanha), uma 9300, que é espólio do museu e que será colocada ao serviço na linha do Vouga, e, na última pista, uma Schindler, pintada de azul (até agora a única), com a cor original, "que deve entrar em circulação dentro de um mês".
As carruagens arco até há pouco tempo "cheiravam a Espanha, mas agora estão a ficar lindas". São 36 carruagens, capazes de suportar 200 km/h e outras 15, que permitem atingir 160 km/h, que vão permitir realimentar a ferrovia nacional e que estão em diferentes fases de reabilitação (em breve, em antena, na TSF, iremos mostrar o processo de reconversão destas unidades, compradas à RENFE). Vemos de tudo: algumas ainda de branco sujo e listas arroxadas, tal como vieram de Espanha, outras (estas as que mais interessam) já de um azul e vermelho brilhantes. Diria até que, muito brilhantes, por causa do verniz que lhes é aplicado, antigrafitti. Nas linhas estão: uma carruagem ainda em fase inicial, mas outra em fase final "quase pronta para ensaios", que podem começar já na próxima semana.
Depois dos trabalhos terminados serão colocadas ao serviço regional e interregional da linha do Minho, "mas à medida que for havendo material para fazer a linha do Minho, estas passarão para longo curso". Confesso, faz sentido. Vieram como sucata e estão a sair topo de gama. Em cada fase sairão três carruagens em simultâneo: uma de primeira classe, outra de segunda, e a terceira é chamada de "mista" e permite o transporte de oito bicicletas (O Pedro Gil, que encontrei na estação de Portalegre na linha de Elvas, vai gostar de saber disto).
O interior cheira a novo, tem bagageiras espaçosas, entradas USB, sistema de informação ao passageiro, casas de banho adaptadas a pessoas com mobilidade reduzida. É uma. Intervenção "que vai ao osso", "é uma intervenção que vai até à carcaça". Estas primeiras três foram os protótipos, por isso houve avanços e recuos e "demoraram mais tempo". As próximas já serão reconvertidas em velocidade cruzeiro.
E Portugal poderá vir a comprar mais 4 destas carruagens, que os espanhóis têm encostadas em Málaga.
Porque falamos de recuperação, não posso terminar sem falar-vos do comboio operário, que foi recuperado, ou melhor, voltou aos carris. Com a abertura de Guifões havia duas hipóteses, uma vez que a linha de Leixões deixou de ter serviço de passageiros, ou se alugavam autocarros para levar os trabalhadores do Porto para esta oficina (um belo contrassenso) ou se colocava um comboio nos carris para fazê-lo. A CP esteve bem. Agora, falta unir esforços para voltar a abrir esta linha, encerrada a passageiros desde 1987. É uma linha urbana e tem, por exemplo, uma estação a 500 metros da porta de entra do Hospital de São João (é só o maior a Norte...).
A crónica vai longa, o dia também... Tenho de regressar (de carro) a Porto-Campanhã, para um Urbano em direção a Aveiro, onde faço espera e ligação com o regional para Coimbra-B. Uma viagem que, encerra esta primeira parte das crónicas, e da qual vos falarei amanhã.